domingo, 18 de dezembro de 2011

Uma viagem por Coloane

Ponte-cais de Coloane. Anos 60 do século XX

Ká Hó, Coloane. Anos 60 do século XX

Povoação de Ká-Hó, Coloane. Cerca de 1970

Fotografias de Lei Chiu Vang, do álbum Visita ao Passado

Coloane nos anos cinquenta do século passado. Eis uma crónica de Ninélio Barreia sobre uma viagem pela ilha, entre a Vila de Coloane e a povoação de Ká Ho.

"(...) De passagem para Coloane. Aqui, esperando a chegada dos barcos, estacionavam num terreiro fronteiro ao cais, velhos carros de passageiros que nos transportavam até às praias de Hac-Sá, Choc-Van ou Ká-Hó onde, iríamos, finalmente, encontrar as tão desejadas águas tépidas e acariciadoras em que nos banhávamos com sofreguidão.
Mas, para alcançar essas almejadas praias, tínhamos de sofrer o martírio duma viagem tremendamente incómoda naqueles velhos "machimbombos".
Uma dessas atribuladas viagens, em que foram inúmeros os incómodos, inspirou-me uma crónica que transmiti no Rádio Clube de Macau, crónica que viria, posteriormente, a provocar uma justificação da empresa rodoviária e que, até certo ponto, foi útil, porquanto vieram depois a ser tomadas medidas tendentes a evitar os transtornos apontados.
A encerrar este capítulo, aproveito para a transcrever, salientando que essa crónica se subordinava ao tema (quase sempre humorístico) "Coisas que podem acontecer... aqui".
Não sei se o ouvinte já teve como eu a infeliz ideia de fazer a viagem Coloane-Ká Hó, numa "caranguejola" a que teimam em chamar autocarro e ao qual ficaria melhor o nome de carroça.
Aconteceu que numa manhã de temporal as minhas obrigações de serviço me levaram à povoação de Ká-Hó, naquela ilha.
Já indisposto pelos balanços da lancha, foi assim que entrei para a velha carripana que nos aguardava e onde se encontravam também meia dúzia de sacas de arroz já amontoadas ao longo de toda a coxia central. Como é sabido, estes veículos têm a particularidade de a entrada e a saída se fazerem pela mesma porta, a do lado do fundo. Os bancos de madeira, cuja cor se torna difícil distinguir, tal a amálgama de poeiras e de outras sujidades acumuladas - situam-se ao través, deixando entre eles apenas uma estreita passagem.
Após um autêntico exercício de alpinismo por sobre a sacaria empilhada consegui ainda alcançar um lugar sentado. Soou o apito e a carripana pôs-se em movimento.
E já me preparava para me deleitar com o encanto da paisagem que iria desfrutar quando, cem metros decorridos, avistei um grupo de passageiros que ali aguardava a sua vez de entrar. Com eles vinham ainda as malas, os cestos, as alcofas, as redes e as sacas. E até um porco numa gaiola de bambu!
Numa algaraviada altissonante, aquele grupo furava, espremia-se, empurrava e machucava-se para tentar obter um lugar na carripana, onde a lotação parecia ilimitada. O porco grunhia (reivindicando, talvez, os seus direitos), os homens lutavam, as mulheres gritavam e eu... aguardava, pacientemente.
Afinal tudo entrou, até o porco. Passou a ser meu companheiro de viagem, mesmo por cima do assento da frente, junto à janela.
Mas, ou por causa do mau piso da estrada ou das molas da carripana, os solavancos começaram. Os passageiros - pescadores chineses, velhas, crianças e bagagens - amontoavam-se e comprimiam-se para conseguirem caber num espaço tão reduzido.
(...)
A meu lado sentara-se uma velha chinesa com uma criança às costas e, a cada solavanco, éramos atirados um de encontro ao outro; a criança berrava, a velha barafustava. Só o porco se conservava mudo e quedo. Cheguei a ter inveja dele, porque de todos os passageiros era o único bem instalado e, ainda por cima, com melhor vista panorâmica!.
(...)
Tento descortinar algo da estrada, na expectativa vã de apreciar a paisagem. Mas só consigo ver alguma coisa por entre as orelhas do porco.
Sucedem-se as curvas e contracurvas, as subidas e descidas, numa rapidez que causa vertigens (rapidez nas descidas, claro). A estrada é tão estreita que, dificilmente, alguém poderá passar junto à carripana. À esquerda, as encostas íngremes pejadas de rochedos, à direita, a costa escarpada a pique sobre o mar. A cada volta da estrada um calafrio, a cada descida mil suspiros de emoção.
Sinto o corpo moído sobre o assento rijo de madeira, sem almofadas. A estrada acidentada e esburacada faz-nos saltar sobre o banco duro ou atirar-nos contra o vizinho; a bagagem desequilibra-se e cai de onde a onde sobre nós. Os passageiros barafustam, a criança chora, a velha geme, o porco grunhe. Chegaremos ao fim desta viagem?
Uma subida tão estreita e tão íngreme, que dir-se-ia o caminho para o céu, surge bruscamente à nossa frente. A caminho do céu vamos nós - pensei - se a carripana se desvia dez centímetros que sejam. A estrada é, de facto, tão estreita que nada mais ali pode passar.
Lá no fundo, roçagando penhascos e rochedos tenebrosos o mar, aquele mar tremendamente calmo.
Estamos quase a alcançar o ponto mais alto da ilha. O motorista executa todas as manobras possíveis para tirar do motor o rendimento necessário; por instantes pára e de novo arranca, num esforço supremo.  O carro vence, enfim, a subida.
Agora entramos num declive em curvas e contracurvas. Mais solavancos, mais encontrões, mais saltos sobre o assento e arremetidas contra a velha. A estrada volta a estreitar; quase roçamos pela parede, Galhos de  árvore são arrancados à passagem até que, finalmente, entramos na recta que vai direita a Ká-Hó.
Respiramos, enfim, aliviados. Toda a gente fala agora alegremente. O porco, esse, vai calado.
A carripana parou. Estamos na povoação, na zona da praia.  Sai toda a gente. E o porco também, meu desventurado companheiro de viagem. Viagem atribulada que espero não ter de voltar a fazer nestes tempos mais próximos. O que valeu foi o tão desejado banho de mar; só por ele mereceu a pena este sacrifício.
Fico-me pela praia. O porco seguiu o seu destino. Só que ele é o único que não vai amanhã protestar nas colunas do jornal da terra."
Ninélio Barreira. "Um Passeio às Ilhas". in Ou-Mun. Coisas e Tipos de Macau. ICM, 1994

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Os Vendilhões Ambulantes

Vendedor ambulante numa rua da cidade
Vendedor de galinhas e patos
"(...) Durante o dia, giram também pelas ruas da cidade os vendedores das mais diversas mercadorias e oficiais de diversos ofícios. Temos, assim, os vendedores de fogões e de panelas de barro; os homens dos iáu-tchi-sin (leques de papel oleado) e k'uâi-sin (leques feitos de folhas secas de palmeira, isto é, se for no Verão); os im-máu-lou (castradores de gatos); os vendedores de ovos; de galinhas, com os papos cheios de areia para ganharem mais peso; de achares e de diversas gulodices (...)". Luís Gonzaga Gomes. "Os Vendilhões Ambulantes", in Chinesices. ICM, 1994

Vendedor ambulante de comidas
"(...) À medida que o dia vai avançando, vão-se animando as ruas da cidade com uma infinidade de pregões (...); agora passam os de sá-hó-fan (bela sopa de alvíssima massa de farinha), cortada às tiras, e acompanhada de bocados de tich'á-siu (carne de porco assada); os do tchu-tch'éong-fan (a mesma massa, mas enrolada e cortada aos bocadinhos) e que se comem regados de si-iâu (molho de feijão de soja); os do pák-t'óng-kou (pudins de açúcar branco); os do kâu-tch'áng-kou (pudinzinhos de nove camadas); os má-nun-sá (sonhos); os de ngâu-u (queijo); os de tâu-fu-mâi (queijadas de feijão de soja); (...) enfim um nunca acabar de petiscos próprios para satisfazer por todas as formas a glutonaria da classe trabalhadora (...)". Luís Gonzaga Gomes. "Os Vendilhões Ambulantes", in Chinesices. ICM, 1994

Vendedora ambulante de louças
"(...) Entretanto, porque as donas de casa precisam sempre de adquirir peças isoladas de baixela que, por serem feitas de frágil porcelana, se partem constantemente, à hora certa, passará pelas suas portas o pó-lêi-pui com completo sortimento de copinhos, taças de porcelana, pires, colherinhas e tudo o quanto é possível fazer-se em cerâmica". Luís Gonzaga Gomes. "Os Vendilhões Ambulantes", in Chinesices. ICM, 1994

Fotografias - datadas dos anos 30-40 do séc. XX - da autoria de José Neves Catela do catálogo Macau. Memórias Reveladas. Museu de Arte de Macau, 2001

domingo, 4 de dezembro de 2011

Macau de Henrique de Senna Fernandes: A penteadeira

"Cabeleireiro de Rua"
Fotografia de Kan Heng Fok. 1946
in Cinquenta Anos Num Olhar. 1958-2008. Associação Fotográfica de Macau.

"(...) O único luxo ou requinte de vaidade estava nos cabelos compridos, arrumados numa única trança que escorria até ao fim das costas, o penteado uniforme de todas as raparigas do povo, de classe operária. Era uma sedução contemplar essas tranças negras e luzidias, de madeixas enroladas em corda grossa, atadas quase no termo por um cordel vermelho. 
Aparentemente simples, o penteado exigia muito cuidado e muito tormento, mas elas entregavam-se docemente àquele masoquismo. Os fios de cabelo eram repuxados e esticados para trás, a ponto de arder o couro cabeludo. Passava-se e repassava-se o pente duro, embebido de óleo de madeira, as mãos da penteadeira também untadas do mesmo óleo, para dar à cabeleira o lustro e a resistência necessários. Os pequenos fios que ficavam no alto da testa e que não obedeciam, espetando-se como finos arbustos agrestes, eram eliminados à linha, um processo de desbaste doloroso que não arrancava, porém, um gemido ou protesto da estóica rapariga que se submetia àquele trato de polé.  (...)".
Henrique de Senna Fernandes. A Trança Feiticeira. Fundação Oriente, 1993