"Homem com cachimbo e caixa de fósforos na mão".
Macau, anos 1930-40 do século XX
"(...) E lá continuaram o seu passeio, parando aqui e ali, apreciando as lojas, as tendinhas das flores e dos enfeites para as casas. Séries de balõezinhos chineses, estilo luzes de árvore de Natal, quadros com frases auspiciosas, figuras em cartão irradiando vermelho e dourado, talismãs, cartões de boas festas, pacotes de lai si, almanaques para o novo ano e papéis vermelhos com o carácter de felicidade a dourado. Talvez por este ser o mais visto à porta de todas as casas, e mesmo colado nas janelas interiores, foi o que gerou um diálogo imediato.
- Mas por que é que o carácter de felicidade colado nas portas está sempre de cabeça para baixo?
- Ó Rubi, é para dar sorte!
- E fica tudo explicado, não é? Para o Zé é tudo muito fácil, é para dar sorte e pronto! - apontou o Jotê, esperando uma justificação mais convincente que isso do "dar sorte!" estava muito bem mas, já agora, se fosse possível saber o por quê da cabeça para baixo...
- É muito fácil - disse Lao com a firmeza de quem sabe.
- É fácil porque tu sabes... mas nós não... já ouvi tanta história... umas com um espelho... outras dizendo que estando ao contrário a felicidade não foge... eu sei lá! Mas... verdade, verdadinha, acho que ninguém sabe lá muito bem o por quê...
Lao respondeu à reflexão da Marei e, levantando os dois braços como que pedindo atenção, com ar de sôtor, calmamente explicou:
- Estar virado ao contrário, é estar invertido, não é meus meninos? Ora bem... os verbos inverter e chegar têm, em chinês, a mesma pronúncia, o mesmo som... e assim... tudo se explica não é verdade?
- Cá para mim parece-me que não se explica nada! - foi a vez de Guta entrar na onda.
- Ah não? Então quando chegas a casa de alguém e vês o carácter de felicidade de pernas para o ar, o que dizes?
- Não digo nada, se as pessoas o puseram assim, aliás todos o fazem da mesma maneira, é porque é seu uso, eles lá sabem porque o fazem...
- Bom, está bem. Pois claro, tirando isso, se dissesses alguma coisa, o que dirias?
- Está bem, está bem... pronto... já que queres faço-te a vontade... Pois diria: oh senhor! - e virando-se para a assistência - ou senhora, não é? Olhe que a sua felicidade está invertida! E depois?...
- Ora que espertinho que é o nosso Guta, é isso mesmo, como o som é igual tu disseste: A Felicidade chegou! (...)"
Fernando Sales Lopes. Terra de Lebab. Instituto Português do Oriente, 2008
"Ainda pela cidade andam no ar as músicas de Natal, e já as melodias tradicionais chinesas anunciam a chegada do Ano Novo Lunar.
Nos arcos festivos, nas fachadas dos prédios e hotéis faz-se a troca de Pais-Natal por deuses de boa sorte, Meninos Jesus por meninos e meninas de garridas cores e luzidias tranças com as mãos sobrepostas em sinal de agradecimento, estrelas por sapecas douradas, velas por carpas, carneirinhos por coelhinhos, palmeiras por frutas das mais variadas, fitas por panchões a fingir. E milhares de coloridas lâmpadas alternando com autênticas cortinas de prata, descendo dos prédios em fios de pequeninas luzinhas.
Mais uma vez chega a festa da renovação, que aqui marca o fim do Inverno e o início da Primavera. Por isso esta festividade também é conhecida como o Festival da Primavera e daí as flores serem tão importantes. Pelas ruas começam a surgir tendinhas vendendo hastes e ramos floridos de pessegueiro, camélias, bolbos de narcisos, crisântemos amarelos, brancos e vermelhos. E também laranjeiras e tangerineiras em miniatura.
O, por vezes ensurdecedor, rebentar constante de panchões que deixam as ruas atapetadas de vermelho - da cor da alegria, da felicidade, da festa. A cor com que se afugentam o espíritos e se vestem as noivas.
É o Kung Hei Fat Chói, para a direita e para a esquerda, numa azáfama de sorrisos, compras, renovações totais, e cara lavada em tudo quanto é casa, estabelecimento ou espaço comum. Nada de velho para o que é novo. Aí vem o novo ano. Há que recebê-lo limpo, renovado, honrando homens e deuses. Não se pode andar devagar - o mês que dura a quadra parece pequeno para tanto que tem de ser feito, preparativos que têm de ser cumpridos à risca (...)".
Fernando Sales Lopes. Terra de Lebab. Instituto Português do Oriente, 2008
KUNG HEI FAT CHOI!*
E o panchão* estoira poderoso
a afastar o mau espírito
de ver este universo imenso em derredor
com o óculo estreito
da longínqua Europa
KUNG HEI FAT CHOI!
O meu ano novo não é o teu ano novo
e o envelope vermelho do lai si*
é para dizer-te que recomeço contigo este caminho
de um novo ciclo da vida a percorrer
Carlos Frota. Dos Rios e suas Margens. Macau, 1998