sexta-feira, 3 de outubro de 2014

“Aconteceu em Mong-Há”, uma história de Macau

“Aconteceu em Mong-Há” é uma história de Macau narrada por Ana Maria Amaro, publicada na revista MacaU de Julho de 1996


Foi há muitos, muitos anos…
Um dia, ao fim da tarde, um bul-bul de dorso verde azeitona, manchado de amarelo, fugiu de uma das gaiolas de bambu de hastilhas finas, onde o seu dono acabara de prender um lindo bebedouro em porcelana pintada. A ave voou para um dos ramos da maior árvore do Largo do Arvoredo, em Mong-Há, e ficou a balouçar-se assustada, errando à toa, sem saber para onde ir, ignorante dos caminhos da liberdade. Saltava, de ramo em ramo, entontecida, alheia ao desespero do seu velho dono, que a adquirira por bom preço e a via agora aparecer e desaparecer entre a folhagem verde escura da árvore de gondom (1).
Um rapaz azougado da aldeia, que assistira à cena, subiu lesto à árvore para apanhar o pássaro fugitivo. Porém, quando agarrou a ave, o tronco onde se apoiava cedeu ao seu peso e, desamparadamente, veio despenhar-se, de muito alto, sobre o velho banco de pedra onde os anciãos se reuniam a jogar cheong kei (2).
A queda foi fatal. Nenhum remédio foi eficaz para o curar. Foi chamado o mais famoso médico tradicional da aldeia, que achou a cura impossível. Veio a man-héong-pó. Veio o bonzo de Tou, famoso pelas suas artes mágicas curativas, que morava para as bandas de San Kiu. Tudo em vão. O rapaz morreu nos seus verdes anos, desastrosamente, sem ter cumprido a sua missão na terra. Para mais, era mau filho; não cumpria os seus deveres para com a sua velha mãe, obrigando-a a trabalhar arduamente para o sustentar, enquanto passava os dias a divagar pela cidade, jogando dados e cartas de pau (3), sem nada fazer de útil.
A partir de então, aquela árvore passou a ser temida. Na sua densa ramagem passara a habitar uma alma faminta, um espírito errado, um kwâi.
Os aldeões de Mong-Há evitaram, desde aí, passar, de noite, pelo Largo do Arvoredo fronteiro ao Kun Iâm Ku Miu, onde se encontrava aquela árvore malissombrada, a mais frondosa do terreiro.
Contavam-se várias histórias…
Á-Fai, um aguadeiro da aldeia, que residia perto do chi tei (4) do Kun Iâm Ku Miu, possuía, para o transporte da água que vendia aos moradores da cidade, uma pequena zorra de madeira, onde levava os môk tong (5) cheios do precioso líquido. De noite, este pesado carro ficava na rua, diante da sua casa. O kwâi da árvore fronteira divertia-se, então, a deslocá-lo, por vezes para enormes distâncias, as quais, no dia seguinte, o aguadeiro tinha de percorrer, antes de iniciar a sua faina. E isto porque um dia Á-Fai troçara dos aldeões que acreditavam naquele kwâi que residia na grande árvore, a mais velha de Mong-Há.
De outra vez, o lou lei pak (6) da aldeia, homem já muito idoso, ao passar a desoras pelo Largo do Arvoredo, viu alguns garotos a trepar e a brincar perigosamente empoleirados nos ramos da famigerada árvore. Receoso de alguma queda desastrosa, incentivou-os, mandando-os para casa. Eram horas de dormir. Não eram horas de brincar! Como resposta, foi agredido por uma saraivada de pedras. É que aqueles garotos eram kwâis que vinham brincar com o outro que ali residia há muitos anos.
Não só os chineses, porém, eram alvo das diabruras daquela pobre alma penada. Um dia, um militar português, seguindo, de noite, em direcção à chácara da família Senna Fernandes, quando subia a chamada ladeira de San Tei num jerinxá manual, ao aproximar-se do Largo do Arvoredo, foi quase arremessado ao chão, porque o jerinxá parou bruscamente. O cule sentiu, de repente, que não podia avançar, porque o peso do seu carrinho de um só lugar aumentara inexplicavelmente, ultrapassando a capacidade de tracção dos seus braços. O militar, irritado, pensando ser manha do condutor, deu-lhe um pontapé, com certa violência. Imediatamente recebeu uma forte bofetada dada por mão invisível. É que se tratava do kwâi que vivia na árvore mofina e que se apoiara no jerinxá, fazendo-o assim parar mercê do peso adicional. A bofetada dada pelo kwâi foi de tal ordem que o militar ficou em estupor e com a boca torta (7).
Com a abertura da Avenida Coronel Mesquita o grande largo do Kun Iâm Ku Miu foi amputado e, com ele, as suas velhas árvores, entre as quais a malissombrada, que ninguém ousara, até ali, abater.
Árvore com leng… árvore respeitável. Mas também árvore onde morava um kwâi.
Vieram os bonzos. Queimaram-se papéis. Fizeram-se orações para que os deuses não se ofendessem com as transformações impostas à aldeia. E houve, ainda, quem se lembrasse do rapaz que, há muito, muito tempo, por causa de um bul-bul, passara a viver no imaginário colectivo da população pacífica de Mong-Há
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(1) Nome de Macau dado às árvores-de-pagode (árvores do género Ficus, cujos frutos têm a forma de pequenas esferas).(2) Xadrez chinês.(3) Dominó chinês. (4) Pequeno altar exterior dedicado a Tou Tei, o Espírito do Solo.(5) Baldes chineses de transporte de água, feitos em madeira.(6) Guarda-nocturno e marcador de períodos horários.(7) Forma local de referir acidentes vasculares cerebrais.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Altar dedicado a Tou Tei

Pormenor do chi tei ou altar exterior  dedicado a Tou Tei , que se encontra à entrada do templo de Kun Iam na vila de Coloane. 
Tou Tei é o espírito protector dos lugares, o deus da rua, do bairro ou da povoação e encontra-se nas ruas, à entrada das casas e dos templos, em pequenos nichos ou em altares - chi tei - com a estátua do Tou Tei ou, por vezes, uma simples pedra simbolizando o deus.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

A Festa da Lua no Macau do século XVII

"Aproximava-se o mês de Outubro e com ele a festa da nona Lua, denominada "lua do crisântemo". De acordo com a tradição, as casas enfeitavam-se de balões vermelhos e as ruas de estandartes, cartazes e luminárias à noite. Foi a primeira festa na cidade realizada após o regresso de D. Catarina, que com saudosa satisfação revia aqueles enfeites alusivos ao acontecimento, distribuídos por toda a parte e com maior profusão no Bazar chinês, no largo do Senado, no largo de S. Domingos e em frente à Sé. Durante três a cinco dias, jovens e adultos compravam bolos da lua para oferecer aos amigos, cumprindo um voto tradicional de amizade entre os moradores, com base numa história em que o exemplo da cooperação e boa vizinhança salvara Macau de ser tomada pelos inimigos. Admirada de ver as ruas todas engalanadas, Ana Maria exclamou:
-- Grande festa bonita! É também para mim, nhónha mãe?
-- É sim, minha pequerrucha. É para toda a gente. Todos os anos, quando chega a nona Lua, a cidade inteira faz esta festa.
-- É festa de casamento?
-- Não! É para lembrar uma história antiga que salvou a cidade de ser atacada por homens maus.
-- Conta essa história...
-- Dizem que certa vez, um boca de rua* achou maneira de enviar a todos os vizinhos uma mensagem, metendo um papel escrito dentro de cada bolo, que distribuiu de porta em porta. No bilhete pedia a todos os homens que se reunissem com as suas armas, à mesma hora e no lugar marcado para defesa da cidade, que estava prestes a ser atacada por um malfeitor.
-- E os homens foram lá, a esse lugar?
-- Foram, e não deixaram o pirata fazer mal aos moradores.
-- O pirata veio de noite?
-- Não sei minha filha. Porque perguntas isso?
-- Ah! Porque tem muitos balões com luminárias. Como é que não se queimam?
(...)"
Maria Helena S.R. do Carmo. Uma Aristocrata Portuguesa no Macau do Século XVII. Nónha Catarina de Noronha. Inquérito e Fundação Jorge Álvares, 2006

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* Porta voz dos moradores de uma rua ou bairro


NOTA: Existem diversas lendas associadas à festa da lua e, em particular, no que respeita à lenda do bolo lunar ou "bolo bate-pau" são conhecidas várias versões, como por exemplo esta narrada por Luís Gonzaga Gomes.

Festa da Lua


O redondo
da fruta redonda
no arredondado
de um prato
ao luar

a gema circular
no interior
do bolo lunar
guardado em cada mão

e na praia nua
crianças luzindo
na escuridão
luzinhas a fingir de lua

Jorge Arrimar. Secretos Sinais. ICM, 1992

sábado, 19 de julho de 2014

No Museu de Macau: uma exposição de fotografias da China de John Thomson: Colotipia ‧ Retorno - Perspectivas Convergentes de John Thomson e Wong Ho Sang



A exposição Colotipia Retorno - Perspectivas Convergentes de John Thomson e Wong Ho Sang, organizada pelo Museu de Macau, sob a égide do Instituto Cultural, será inaugurada no dia 29 de Maio, às 18:00, da parte da tarde, convidando o Museu residentes e turistas a visitá-la entre os dias 30 de Maio e 31 de Agosto.

Esta exposição contém duas secções. A primeira exibe os trabalhos do fotógrafo britânico John Thomson (1837-1921) na sua primeira visita ao Extremo Oriente no séc. XIX. Thomson viajou pela China entre 1868 e 1872, registando a vida e os costumes locais através da fotografia. Estas fotografias tornaram-se preciosos materiais de referência de investigação da sociedade chinesa da época. O álbum colecção Illustrations of China and Its People (Londres, 1873-1874), exibido na exposição, foi publicado em Londres através da técnica da colotipia, compreendendo mais de 200 fotografias obtidas por colódio húmido, tiradas em Macau, Hong Kong, Guangzhou, Shantou, Fuzhou, Xiamen, Taiwan, Shanghai, Ningbo, Nanjing, Sichuan, Tianjin, Beijing e Pequim, entre outros locais.

Não satisfeito com a qualidade proporcionada pela técnica de impressão tradicional da época, Thomson recorreu à colotipia, o mais avançado e inovador método de impressão na altura capaz de produzir imagens de elevada resolução. Para garantir uma boa impressão, ele próprio supervisionava todo o processo. O colotipo é categorizado com litografia, e um dos primeiros exemplos de foto-litografia. Em geral, sobre uma matriz constituída por uma chapa de vidro, estendia-se uma capa de emulsão fotossensível constituída por gelatina bicromática, a qual era cozida e depois impressa mediante contacto com o negativo fotográfico, e por tal também conhecida como “impressão por chapa de vidro”.
Para tornar mais compreensível aos visitantes a técnica fotográfica oitocentista utilizada por John Thomson no século XIX, a segunda secção da exposição exibe trabalhos obtidos pelo processo de colódio húmido realizados especialmente para a exposição pelo fotógrafo contemporâneo de Macau Wong Ho Sang. Tendo Macau como tema, esta série de fotografias inclui retratos, paisagens, construções e naturezas-mortas. O artista produziu um conjunto de obras de arte fotográficas nas quais coexiste o antigo e o moderno, integrando o velho e o novo, através da combinação de técnicas primitivas de fotografia e de conceitos criativos contemporâneos. Além das fotografias por colódio húmido, será também exposto o equipamento que o fotógrafo usou, que inclui três câmaras em madeira de grande formato, respectivamente das décadas de 1890, de 1960 e, a mais recente, de 2013.

A fim de permitir aos visitantes aprenderem mais sobre técnicas fotográficas da época e sobre as obras de John Thomson, o Museu de Macau irá ainda promover uma palestra sobre o assunto no próximo dia 31 de Maio, pelas 15:00 horas, no Auditório do Museu. O célebre académico, fotógrafo e designer inglês Michael Gray irá proferir esta palestra subordinada ao tema “Além dos Negativos de Vidro-John Thomson e Fotografia na China”. Esta palestra irá fazer uma introdução à história da invenção da fotografia e à contribuição da Inglaterra e da França para esta arte; irá também examinar o conceito fotográfico de John Thomson através de registos e manuscritos e apresentar a tecnologia de impressão por colódio húmido que adoptou. A mesma será conduzida em inglês com tradução simultânea para cantonense. Caso os cidadãos tenham interesse na palestra, podem contactar a Sr.ª Leong através do telefone n.º 8394 1218 para fazer a sua reserva.
O Museu de Macau encontra-se aberto diariamente das 10:00 às 18:00 horas (a bilheteira encerra às 17:30 horas). No entanto, no dia 29 de Maio, a bilheteira o Museu irá encerrar às 16:00 horas devido aos preparativos da cerimónia de abertura desta exposição temporária.
Para mais informações sobre a presente exposição e outras actividades conexas, é favor ligar para o tel. (853) 2835 7911 durante as horas de expediente ou visitar: www.macaumuseum.gov.mo ou www.icm.gov.mo.



http://www.icm.gov.mo/pt/News/NewsDetail.aspx?id=11586

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Teatro D. Pedro V






Teatro D. Pedro V. Macau, Novembro de 2013

Situado no Centro Histórico de Macau, junto ao Largo de Santo Agostinho, e classificado Património Mundial, o Teatro D. Pedro V foi construído em 1858, com risco do macaense Pedro Germano Marques. A sua fachada actual, com colunas neoclássicas, foi desenhada pelo Barão do Cercal, em 1873. 

“(…) passaram pelo seu pequeno palco os mais diversos tipos de espectáculos, récitas, teatro, óperas — com destaque para as companhias de ópera italianas que, no século XIX, se deslocavam até Macau —, concertos, bailados e sessões de cinema, conferências, sessões solenes, festas de homenagem, etc.. Ficaram famosas, nos anos cinquenta e sessenta do século XX, as récitas em Patuá, o dialecto macaense, que se realizavam quase sempre no Carnaval e enchiam o Teatro D. Pedro V de gente de Macau, agradada e divertida. No início dos anos de 1980, o teatro acolheu, durante vários anos, até o espectáculo ser transferido para o Hotel Lisboa, o Crazy Horse Club Show, com bailarinas vindas directamente de Paris, com pouca ou nenhuma roupa, entretendo um público quase todo chinês, predominantemente vindo de Hong Kong (…)”
António José Graça de Abreu, “Teatro D. Pedro V”, DITEMA, Dicionário Temático de Macau, Vol IV.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Pátio da Eterna União

Macau, Setembro de 2011



PÁTIO DA ETERNA UNIÃO

Toponímica vontade
à hora do sol já não ser

talvez já só reste
- ou resto -
quociente liso
deixado no cinzento do pátio
pela divisão subitamente angular
da parede pelo passo

- ou talvez não - 

e afinal passe 
União 
ainda molhada de ser
Eterna
até amanhã à hora de outros sóis
que me não restam

porque pelo meu dividendo
já só eu me resto

João Rui Azeredo. Pátio das Palavras. Edições Mar-Oceano, Macau 1995

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Por portas e travessas (3)







Travessa da Porta. Macau, Novembro de 2013

Com as suas bancas e lojecas de venda de artigos de culto, carnes fumadas e peixe salgado a Travessa da Porta é a mais movimentada de todas as artérias - travessas dos Alfaiates, dos Mercadores, dos Becos e Beco das Caixas - que ligam as ruas de Camilo Pessanha e dos Mercadores.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Por portas e travessas (2)



Travessa do Fogão. Macau, Novembro de 2013

Muito curta e estreita, a Travessa do Fogão liga a Rua dos Ervanários à Rua de Nossa Senhora do Amparo.


Rua de Tomás Vieira







Rua de Tomás Vieira. Macau, Novembro de 2013

A rua começa junto da Praça Luís de Camões, na Rua de Coelho do Amaral, e termina na Estrada do Cemitério.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Por portas e travessas (1)




Travessa dos Alfaiates. Macau, Novembro de 2013

Travessa dos Algibebes. Macau, Novembro de 2013


Estreita e comprida, a Travessa dos Alfaiates liga a Rua de Camilo Pessanha à Rua dos Mercadores. Aqui, e do lado oposto da rua, começa a Travessa dos Algibebes, cujo altar se encontra já no topo da travessa onde esta se entronca com a Rua de S. Paulo.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Taipa antiga

Rua de Fernão Mendes Pinto. Vila da Taipa. Novembro de 2013
À direita, o muro da antiga fábrica de panchões Iec Long e, à esquerda, o templo de Sam Po (classificado Património Cultural)


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O Museu Luís de Camões, por Luís Gonzaga Gomes


Museu Luís de Camões, 1963
Aguarela sobre papel de Herculano Estorninho (1921-1994)



“O Museu Luís de Camões é assim denominado por se encontrar situado no Jardim da Gruta de Camões, decerto um dos mais aprazíveis locais de Macau.
Está instalado em vetusto palacete, um dos raros exemplos de construção arquitectural dos meados do século XVIII, que sobrevive ao camartelo inexorável do incessante progresso.
Foi dono, tanto deste edifício como do amplo parque que o rodeia, o abastado negociante, Manuel Pereira, Fidalgo Cavaleiro da Casa Real do Conselho de Sua Majestade, Conselheiro da Fazenda, Comendador das Ordens de Cristo e da Senhora da Conceição de Vila Viçosa, um dos fundadores da Casa de Seguros de Macau e seus Vice-presidente e Tesoureiro. Tendo-se radicado nesta cidade, aqui constituiu família, casando três vezes e aqui faleceu em 10 de Março de 1826, tendo sido sepultado na igreja do extinto Convento, hoje Quartel de S. Francisco.
Entretanto, como os chineses não consentiam a estadia permanente dos comerciantes estrangeiros, nem dos seus barcos, em Cantão, foi-lhes permitido, finda a época das transacções comerciais nesse porto, isto é, de Outubro a Março, domiciliarem-se em Macau, em moradias que os portugueses lhes alugavam, não obstante a terminante proibição em contrário do Vice-rei da Índia.
Tinha, assim, Manuel Pereira o seu palacete alugado à Companhia das Índias, inglesa, quando, em 1792, chegou a Macau Lorde George Macartney, primeiro embaixador enviado pelo Rei da Inglaterra à corte do Imperador K’in-Long (1736-1795 AD).
Servia o palacete de Manuel Pereira de residência ao Superintendente da Comissão Selecta da referida Companhia das Índias e, nas suas amplas salas luxuosamente mobiladas e com fina e requintada elegância, se aposentou o ilustre enviado de S. M. B. Jorge III, quando, em 1794, regressara, exausto e acrimonioso da corte do Filho do Céu, pelo acabrunhante desaire da sua gorada missão.
Lorde Amberts consumiu, também, merencoriamente, nas salas desse palacete, amargas horas de decepção, pois, infrutuosa foi, igualmente, a missão de que fora incumbido, em 1816, pelo mesmo Jorge III, junto de Ká-Heng (1796-1821).
Ora, já em 1883, se aventara a ideia de se adquirir esse palacete para ali se instalar um museu colonial.
Em 1885, propuseram-se os jesuítas franceses (1) comprar o palacete e o parque, para instalarem ali um sanatório. Embora o Comendador Lourenço Marques, que era, nessa ocasião, seu proprietário, por ser matrimoniado com a filha do Conselheiro Manuel Pereira, pudesse ter vendido o imóvel por belo preço, preferiu cedê-lo ao Estado, apenas por $30 000 patacas, ou seja metade da oferta proposta pelos jesuítas franceses (2). A transacção foi efectuada, no governo de Tomás da Rosa, e sancionada pelo, então, Ministro da Marinha e Ultramar, o escritor Manuel Pinheiro Chagas (3), evitando-se destarte a consumação de um sacrilégio que a História não teria perdoado, porquanto, foi na chamada “gruta”, que encabeça um morrozito, transformado em edénico jardim pelos ingleses, seus arrendatários, que, segundo a tradição, Luís Vaz de Camões, o poeta máximo da Lusitanidade, se acolhia, fugido da materialidade mundanal e da afanosa veniaga que ia pelo incipiente burgo para, solitário e meditabundo, se entregar à evocação das esplendorosas gestas nacionais, fixando-as em imperecíveis e rutilantes estrofes que vieram a constituir “Os Lusíadas”, a Bíblia sagrada da Pátria Portuguesa.
O palacete em questão sofreu, no seu interior, profundas modificações, devido às obras que houveram de se fazer, no decurso do tempo, para o adaptar às necessidades de diversos serviços que foram ali, subsequentemente, instalados: Depósito de Material de Guerra, Repartição das Obras Públicas, Repartição das Obras dos Portos, Imprensa Nacional, e, finalmente, após apropriados restauros, aberto ao público, em 25 de Setembro de 1960, em cerimónia integrada nas Comemorações Henriquinas.
Tal como se encontra, presentemente, o Museu Luís de Camões compõe-se de um vestíbulo e onze salas”.
Luís Gonzaga Gomes, "Boletim do Instituo Luís de Camões", Vol. VII, nº 3, Outono de 1973, citado pelo P. Manuel Teixeira, Toponímia de Macau, Vol I, Imprensa Nacional, 1979, pp. 226-228.
***
(1) Nota do Pabre Manuel Teixeira: “Não foram os jesuítas, mas os Padres das Missões Estrangeiras de Paris, Cf, P. M. Teixeira. A Gruta de Camões em Macau, pp. 54-54”.
(2) Nesta segunda nota o P. Manuel Teixeira  afirma que “os Padres das M. E. P. só ofereceram $35 000 e não $60 000”.
(3) Tomás de Sousa Rosa (1844-1918), 86º Governador de Macau (de 23 de Abril de 1883 a 7 de Agosto de 1886);  Manuel Joaquim Pinheiro Chagas (1842-1895) foi ministro da Marinha e Ultramar de Outubro de 1883 a Fevereiro de 1886.


terça-feira, 12 de novembro de 2013

Casa Garden







Casa Garden. Macau, Outubro de 2013


“O palacete oitocentista localizado no número 13 do Largo Luís de Camões, freguesia de Santo António, foi adquirido pela Fundação Oriente em 18 de Maio de 1989, para lá instalar a sua delegação em Macau. Apesar da Gruta de Camões, um dos lugares mais emblemáticos de Macau, ter feito parte da propriedade onde se encontra o edifício, as referências ao mesmo são vagas e insuficientes. Originariamente, era uma quinta que englobava a casa e uma vasta propriedade onde se localizava a Gruta, na realidade três penedos de granito dispostos em dólmen no meio de zona muito frondosa. O edifício foi construído provavelmente em 1750, e por um português, devido à sua traça ocidental e por não ser possível, na época indicada, que europeus construíssem casa de habitação em Macau. A autorização para arrendamento de residência a estrangeiros só se obteve a partir de 1757, fruto de uma petição do Senado de Macau ao governador e vice-reinado de Goa. A Companhia Inglesa das Índias Orientais instalou-se na Casa, em 1771, tendo sido a residência do presidente do Select Committe da referida instituição. A mesma já existia em Macau, na Rua da Praia Grande, antes dessa data. O seu mais antigo proprietário conhecido foi o Conselheiro Manoel Pereira, e, aparentemente, em 1815 o palacete já era sua propriedade. No entanto, ele nunca lá viveu. Manoel Pereira faleceu em 1826, quando a sua filha herdeira tinha apenas onze meses de idade. A casa ficou conhecida não só pela sua beleza exterior e interior, como também por ter servido de alojamento a inúmeras personalidades portuguesas e estrangeiras que visitaram Macau.(…) Quando a filha  do Conselheiro Manoel Pereira, Maria Ana Pereira, se casou com o primo Lourenço Caetano Marques em 1838, a casa foi ocupada pelo casal. O mesmo tornou-se proprietário da quinta, a respeito da qual, já no século XVIII, existia a convicção que o poeta Luís de Camões tinha estado em Macau e visitado a gruta que teria servido de refúgio para as suas divagações poéticas. (…) Aparentemente, enquanto Lourenço Marques foi titular da zona da gruta, realizou uma série de obras de restauro sobre a mesma, que foram destruídas após a passagem de toda a propriedade, incluindo o palacete, para a posse do Governo.  Com efeito, prevaleceu a tese de que a área devia ser conservada o mais natural possível. Os padres Jesuítas franceses fizeram uma proposta para comprar a casa e apesar de Lourenço Marques se encontrar em dificuldades económicas preferiu vender ao Estado português por metade do preço. Era de opinião que um palacete como a casa e a gruta de Camões era património nacional e não devia ser alienado. (…)"
Anabela Nunes Monteiro. "Casa Garden", in Ditema - Dicionário Temático de Macau, Volume I, 2010.


terça-feira, 5 de novembro de 2013

“Um quadro de casas velhas em vermelho-escuro"

Beco dos Fatiões. Macau, 2013

“(…) Terra de mágoa, de sono, de poesia."
"(…) lembra uma pintura, Macau, um quadro de casas velhas em vermelho-escuro de algum talento impressionista. Vermelho-escuro e arruivado de árvores anosas e invernais (…)”
Maria Ondina Braga. Passagem do Cabo. 1994

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Uma viagem a Cantão na canhoneira Tejo (1)

O texto que se segue, da autoria de Artur Lobo D’ Ávila, tem por título “A Cidade de Cantão” e descreve a viagem a essa cidade, em Dezembro de 1876, do então governador de Macau ao Vice Rei da província de Cantão / Guangdong. Nos primeiros parágrafos deste artigo o autor descreve a saída do Porto Interior da canhoneira Tejo e a sua viagem ao longo do “vastíssimo estuário do rio de Cantão”.


Vista panorâmica de Macau da Colina da Penha, 1870
 Rise & Fall of the Canton Trade SystemMIT. Visualizing Cultures.


A Cidade de Cantão 

por Arthur Lobo d’Avilla

Em uma formosa manhã de Dezembro de 1876, a canhoneira Tejo, do comando do chefe da estação naval de Macau, o sr. Ferreira do Amaral, largava d’este porto levando a seu bordo o governador da colónia, dirigindo-se a Cantão, onde o representante de Portugal ia não só visitar o vice-rei Liu, governador da província de Quang-Tung ou dois Quangs, mandarim de botão de coral, mas tratar  com esse alto funcionário vários assuntos relativos aos postos fiscais das proximidades de Macau.
Esta quadra do ano em que na Europa o inverno se acentua, é pelo contrario a mais bela n’esta região da China. É o tempo em que, passada a monção do sul, geradora dos terríveis tufões, dominam os ventos do norte, mas não já com a violência dos primeiros dias da mudança da monção, pelos fins de Outubro. É uma estação como a da Primavera na Europa, tempo claro, céu anilado e sol brilhante, divergindo apenas na temperatura, que é frigidíssima, aproximando-se às vezes ao zero. 
A Tejo, saindo do porto interior, onde tinha o seu ancoradouro em frente da fortaleza da Barra, singrou cautelosamente, contornando a Praia Grande, entre a qual e a fortaleza da Taipa fica a célebre Pedra d’Areca da tão assoreada entrada de Macau, e dentro em pouco podia-se admirar o panorama completo da cidade do Santo Nome de Deus de Macau na China, à qual pela vez primeira abordou o navegador português Perestrelo, em 1516, quando o reinado do Monarca Venturoso tocava o zénite na glória dos descobrimentos.
A península de Macau, extremo da província de Cantão em que esse português fundou a colónia, desenhava-se nitidamente no horizonte, coroada pelas suas numerosas fortalezas, do Monte, de D. Maria, de Mong-ha, e sobranceira a todas, sobre as ribas à beira mar, a da Guia, em que foi construído o primeiro farol a alumiou mareantes na China, tendo a meia encosta, d’um lado, o cemitério parse, com os seus túmulos escalonados em anfiteatro, do outro o belo hospital S. Januário, de caprichosa arquitectura. 
Agora já em plena rada a formosa canhoneira portuguesa, navegando mais rapidamente, aproxima-se da ilha do Lantau, seguindo quase a igual distância dela e da costa da província de Cantão, divisando-se a povoação da Casa Branca, fronteiriça a Macau, e entre o limite da colónia marcado pelo arco das Portas do Cerco e aquela sede mandarina, sobre uma pequena elevação, a fortaleza de Passa-Leão, famosa por um feito de armas da guarnição de Macau, depois do assassínio do governador Ferreira do Amaral, pai do oficial distinto sob cujo comando a Tejo vai fazendo derrota. 
A manhã é toda consumida em sulcar o vastíssimo estuário do rio de Cantão, em que por vezes chega a perder a terra de vista, rio enorme, que mais parece um mar, semeado de numerosas ilhas, percorrido sempre por lorchas e juncos alterosos que vão a Batávia e a Singapura, em longas e arriscadas navegações, rio que só parece tomar a nossos olhos este aspecto de mais limitadas proporções, quando chegamos à Boca do Tigre, em chinês Hu-Mun. Aqui forma uma verdadeira garganta guarnecida pelas célebres fortalezas que as tropas e esquadras aliadas da França e Inglaterra por duas vezes, em 1839 e 1859, tomaram de assalto e bombardearam. O rio de Cantão daqui até à cidade, num longo e caprichoso percurso de muitas milhas, serpeia entre várias povoações, Amug-hoy, Watong, Ticok-tao, e Whampu, célebre não só pelas suas docas, mas por ser o ponto donde vem todos os dias a carne de vaca para Macau no vapor que faz carreira diária entre a colónia portuguesa e Cantão. As margens ora elevadas, de escuros granitos, apresentando sepulturas dispostas em anfiteatro, ora vestidas de bambuais, ora finalmente de arrozais extensos e planos, são altamente pitorescas; e quando são formadas pelas várzeas de arroz, cortadas por numerosos canais que vêm dar ao rio, e sulcados por embarcações de que só se percebem as velas de esteira discorrendo entre a verdura, semeada aqui e acolá de granjas chinesas, ou pagodes em vistosos e brilhantes torres, com a sua ornamentação característica de telhas e figuras de louça, tomam, arquitectura à parte, um aspecto de país baixo e alagado, que faz recordar as descrições da Holanda. Nuvens de garças brancas e patos bravos pousam nos campos ou atravessam os ares em bandos, e por entre a vegetação, em tractos de terreno mais seco, vêem-se chinas lavrando a terra com charruas primitivas arrastadas por búfalos. 
Whampu, cerca de 1850
Rise & Fall of the Canton Trade SystemMIT. Visualizing Cultures.

O sol vai subindo nesse horizonte anilado e sereno do céu nos mais formosos dias desta região, e lá no estremo, em que dentro em breve se há-de perceber o começo da cidade flutuante de Cantão, vai-se esbatendo suavemente em um tom lilás delicadíssimo, que se casa bem com a atmosfera embalsamada e dormente peculiar no Oriente. 
Mais algumas milhas percorridas nos ziguezagues que o rio descreve, e a proximidade da cidade começa a ser acusada por maior movimento de embarcações pequenas chinesas, e pelos barcos de recreio dos europeus residentes na concessão estrangeira, denominada Sha-Myen, e na margem esquerda do rio, em que fica o Canton Hotel, que será a nossa residência.
(…) 
Arthur Lobo d’Avilla. “A Cidade de Cantão”. Revista Portugueza Colonial e Marítima, Vol. III,  nº 18, 1899

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A festa da Lua no Japão - "Ó-Tsukimi", por Wenceslau de Moraes








publicado na revista Serões, nº 6 de Dezembro de 1905