quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Uma viagem a Cantão na canhoneira Tejo (1)

O texto que se segue, da autoria de Artur Lobo D’ Ávila, tem por título “A Cidade de Cantão” e descreve a viagem a essa cidade, em Dezembro de 1876, do então governador de Macau ao Vice Rei da província de Cantão / Guangdong. Nos primeiros parágrafos deste artigo o autor descreve a saída do Porto Interior da canhoneira Tejo e a sua viagem ao longo do “vastíssimo estuário do rio de Cantão”.


Vista panorâmica de Macau da Colina da Penha, 1870
 Rise & Fall of the Canton Trade SystemMIT. Visualizing Cultures.


A Cidade de Cantão 

por Arthur Lobo d’Avilla

Em uma formosa manhã de Dezembro de 1876, a canhoneira Tejo, do comando do chefe da estação naval de Macau, o sr. Ferreira do Amaral, largava d’este porto levando a seu bordo o governador da colónia, dirigindo-se a Cantão, onde o representante de Portugal ia não só visitar o vice-rei Liu, governador da província de Quang-Tung ou dois Quangs, mandarim de botão de coral, mas tratar  com esse alto funcionário vários assuntos relativos aos postos fiscais das proximidades de Macau.
Esta quadra do ano em que na Europa o inverno se acentua, é pelo contrario a mais bela n’esta região da China. É o tempo em que, passada a monção do sul, geradora dos terríveis tufões, dominam os ventos do norte, mas não já com a violência dos primeiros dias da mudança da monção, pelos fins de Outubro. É uma estação como a da Primavera na Europa, tempo claro, céu anilado e sol brilhante, divergindo apenas na temperatura, que é frigidíssima, aproximando-se às vezes ao zero. 
A Tejo, saindo do porto interior, onde tinha o seu ancoradouro em frente da fortaleza da Barra, singrou cautelosamente, contornando a Praia Grande, entre a qual e a fortaleza da Taipa fica a célebre Pedra d’Areca da tão assoreada entrada de Macau, e dentro em pouco podia-se admirar o panorama completo da cidade do Santo Nome de Deus de Macau na China, à qual pela vez primeira abordou o navegador português Perestrelo, em 1516, quando o reinado do Monarca Venturoso tocava o zénite na glória dos descobrimentos.
A península de Macau, extremo da província de Cantão em que esse português fundou a colónia, desenhava-se nitidamente no horizonte, coroada pelas suas numerosas fortalezas, do Monte, de D. Maria, de Mong-ha, e sobranceira a todas, sobre as ribas à beira mar, a da Guia, em que foi construído o primeiro farol a alumiou mareantes na China, tendo a meia encosta, d’um lado, o cemitério parse, com os seus túmulos escalonados em anfiteatro, do outro o belo hospital S. Januário, de caprichosa arquitectura. 
Agora já em plena rada a formosa canhoneira portuguesa, navegando mais rapidamente, aproxima-se da ilha do Lantau, seguindo quase a igual distância dela e da costa da província de Cantão, divisando-se a povoação da Casa Branca, fronteiriça a Macau, e entre o limite da colónia marcado pelo arco das Portas do Cerco e aquela sede mandarina, sobre uma pequena elevação, a fortaleza de Passa-Leão, famosa por um feito de armas da guarnição de Macau, depois do assassínio do governador Ferreira do Amaral, pai do oficial distinto sob cujo comando a Tejo vai fazendo derrota. 
A manhã é toda consumida em sulcar o vastíssimo estuário do rio de Cantão, em que por vezes chega a perder a terra de vista, rio enorme, que mais parece um mar, semeado de numerosas ilhas, percorrido sempre por lorchas e juncos alterosos que vão a Batávia e a Singapura, em longas e arriscadas navegações, rio que só parece tomar a nossos olhos este aspecto de mais limitadas proporções, quando chegamos à Boca do Tigre, em chinês Hu-Mun. Aqui forma uma verdadeira garganta guarnecida pelas célebres fortalezas que as tropas e esquadras aliadas da França e Inglaterra por duas vezes, em 1839 e 1859, tomaram de assalto e bombardearam. O rio de Cantão daqui até à cidade, num longo e caprichoso percurso de muitas milhas, serpeia entre várias povoações, Amug-hoy, Watong, Ticok-tao, e Whampu, célebre não só pelas suas docas, mas por ser o ponto donde vem todos os dias a carne de vaca para Macau no vapor que faz carreira diária entre a colónia portuguesa e Cantão. As margens ora elevadas, de escuros granitos, apresentando sepulturas dispostas em anfiteatro, ora vestidas de bambuais, ora finalmente de arrozais extensos e planos, são altamente pitorescas; e quando são formadas pelas várzeas de arroz, cortadas por numerosos canais que vêm dar ao rio, e sulcados por embarcações de que só se percebem as velas de esteira discorrendo entre a verdura, semeada aqui e acolá de granjas chinesas, ou pagodes em vistosos e brilhantes torres, com a sua ornamentação característica de telhas e figuras de louça, tomam, arquitectura à parte, um aspecto de país baixo e alagado, que faz recordar as descrições da Holanda. Nuvens de garças brancas e patos bravos pousam nos campos ou atravessam os ares em bandos, e por entre a vegetação, em tractos de terreno mais seco, vêem-se chinas lavrando a terra com charruas primitivas arrastadas por búfalos. 
Whampu, cerca de 1850
Rise & Fall of the Canton Trade SystemMIT. Visualizing Cultures.

O sol vai subindo nesse horizonte anilado e sereno do céu nos mais formosos dias desta região, e lá no estremo, em que dentro em breve se há-de perceber o começo da cidade flutuante de Cantão, vai-se esbatendo suavemente em um tom lilás delicadíssimo, que se casa bem com a atmosfera embalsamada e dormente peculiar no Oriente. 
Mais algumas milhas percorridas nos ziguezagues que o rio descreve, e a proximidade da cidade começa a ser acusada por maior movimento de embarcações pequenas chinesas, e pelos barcos de recreio dos europeus residentes na concessão estrangeira, denominada Sha-Myen, e na margem esquerda do rio, em que fica o Canton Hotel, que será a nossa residência.
(…) 
Arthur Lobo d’Avilla. “A Cidade de Cantão”. Revista Portugueza Colonial e Marítima, Vol. III,  nº 18, 1899

sexta-feira, 4 de outubro de 2013