sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Loja encerrada

No Mercado de S. Domingos: tendinha de venda de artigos de culto encerrada durante os feriados do Ano Novo Lunar. Fevereiro de 2011
Macau sã assi...

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Traços Impressionistas de Macau

"(...) as nobres ruínas de S. Paulo que, duma eminência, um memento moris, dominam, entre tantas coisas risonhas e belas, a cidade." (Bella Sidney Woolf)

Panorama da cidade de Macau, incluindo ruínas de S. Paulo e Fortaleza do Monte. 
Cerca de 1930.
in João Loureiro. Postais Antigos de Macau.



Bella Sidney Woolf (1)
Traços Impressionistas de Macau 


"Terras há que se impõem à nossa atenção por certa feição particular. Macau acha-se neste caso, - com o exotismo que a caracteriza. Além disso, Macau sugere-nos a acção de todos esses velhos navegadores portugueses por mares desconhecidos, como o grande Vasco da Gama. A Inglaterra é também uma nação de navegadores e esta circunstância leva-nos a sentir que um elo nos prende a eles. E quanto de interessante há em ver, em mais dum ponto do Extremo Oriente, associados, com os vestígios e as recordações dos seus feitos, aos nossos compatriotas, os velhos nautas lusitanos! A dentro da sua baía, como nas colinas que a cercam, - Macau tem mantido apesar do seu exotismo um puro espírito português que ao longo dos séculos tem conservado inalteravelmente os seus traços. Assim, ao percorrer as suas ruas, numa breve visita, os meus olhos pousando nas frontarias das casas, de graciosas taboínhas verdes corridas sobre as janelas, me ocorreu este velho dizer: Il ne change pas de pays celui qui voit toujours le soleil."
Os portugueses fizeram de Macau, tão cheia de sol, uma pequena réplica da sua pátria. E a verdade é que é deveras admirável que, a poucas horas de jornada, se possa encontrar naquelas colónia um ambiente completamente diverso. Macau vibra de sonoros nomes portugueses; são os das ruas, ao longo das quais fizemos algumas milhas, a Praia Grande, Estrada de Flora, rua de S. Lourenço; e as denominações de certas instituições, como a Escola de Artes e Ofícios, o Orfanato da Imaculada Conceição, a Santa Casa da Misericórdia. A despeito da vizinhança do vasto país que é a China, a que geograficamente está ligada, - Macau não perdeu nenhuma das suas características rigidamente portuguesas, tanto que hoje, como à data da sua fundação, isto é, há quatro séculos aproximadamente, - não deixa de ser uma colónia em absoluto portuguesa. Os confortáveis salões do palácio, onde o Governador e a sua esposa (2) nos fazem uma recepção amável e cortês, - ainda mais avivam, na nossa imaginação, a encantadora sugestão dos países do sul da Europa. Sobre o brunido pavimento em mosaico dessas salas, decoradas de mobília dourada e de velhos brocados, - homens e mulheres, que, pelos nomes que usam, representam algumas das famílias mais ilustras de Portugal, passam conversando na sua língua de sonoro timbre - espectáculo este que tem o que quer que seja dum estranho e fascinante sonho.
Sonho que prossegue... cá fora, ao percorrer-se as ruas, ao observar-se o admirável panorama que proporciona a Praia Grande, sob cujas frondes, ao longo de esbeltas avenidas, muitos moços de barba negra passeiam a par de raparigas de negros olhos; e ao visitar as nobres ruínas de S. Paulo que, duma eminência, um memento moris, dominam, entre tantas coisas risonhas e belas, a cidade. De resto, esplêndidos hotéis, escolas, hospitais, estabelecimentos de comércio. Tudo isto vão vendo os nossos olhos, até que chegamos a um jardim de recolhido aspecto, onde as árvores dizem uma venerável velhice, de longos ramos frondosos. Diante de nós está o busto de Camões, o grande cantor dos Lusíadas, que, neste local, longe dos seus, na solidão, compôs aquele poema mundialmente famoso. Da árvore que ensombra o monumento mão amiga ofereceu-me então uma vagem contendo umas sementes castanhas, luzidias, a que os botânicos, na sua peculiar indiferença, pela beleza, dão o nome de Sterculia Lanceolata ...
Para mim, - que me importa? - representa Macau, - a leal cidade, que através dos tempos brilha, forte e altiva como o génio dos homens que a fundaram.
Bella Sidney Woolf. "Traços Impressionistas de Macau", in Boletim Geral das Colónias,  nº 53, Vol. V, 1929.


______________________________
(1) Autora de diversas obras, tais como The Twins in Ceylon (1909) e  How to See Ceylon (1914),  Bella Sidney Woolf (Lady Bella Southorn) - irmã de Leonard Woolf -  era casada com Wilfril Thomas Southorn que, de 1925 a 1936, desempenhou funções de Secretário do Governo da Colónia de Hong Kong.
(2) Artur Tamagnini Barbosa, no seu segundo mandato (1926-1931) e Maria Ana Acciaioli Tamagnini.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Chácara ou Vila Leitão

"A Vila Leitão"
Fotógrafo não identificado, 1908
in Illustração Portugueza de 14 de Dezembro de 1908


Ficava situada junto da Estrada de Cacilhas e era propriedade de Francisco Filipe Leitão.
Chácara é sinónimo de quinta, casa de campo ou chalet. Era "o nome atribuído às propriedades que a elite macaense possuía nas ilhas junto a Macau, como a Ilha da Montanha. Aparentemente não davam qualquer rendimento, serviam apenas para descanso e divertimento. Um documento do Leal Senado de 19 de Julho de 1690 faz referência a um problema relativo às estâncias de António Mesquita Pimentel, Catharina de Vargas e dos Padres de Santo Agostinho. (...) A palavra estância pode também aparecer sob a forma de chácara. Contudo, esta designação provém do Brasil, através do étimo do dialecto quíchua chacra." (in DITEMA - Dicionário Temático de Macau, vol, 1, 2010)

Wenceslau de Moraes: O Ano Novo

"Adultos e jovens junto a uma banca de coloridos peixes-dourados".
Fotografia de José Neves Catela (cerca de 1930-40) do catálogo da exposição
Macau - Memórias Reveladas. Museu de Arte de Macau, 2001



O Ano Novo

"Temos festa hoje, aqui. Acaba o ano velho, começa o ano novo. Mas não vão imaginar que seja do ano novo de que rezam os nossos calendários, a comemoração; tal comemoração, aqui, no fim do mundo, no seio desta colónia nostálgica, passa insípida, quase sem alvoroços íntimos de família, limitada à troca banal - troca sem cedilha e com cedilha - de algumas dúzias de bilhetes de visita, com as competentes boas-festas escritas, da pragmática. Trata-se do ano lunar que finda, do ano lunar que principia, o ano chinês enfim, a ampulheta que marca para o povo amarelo as suas horas de existência; vamos entrar no ano XXII do reinado de sua majestade imperial celestial, Kuang-Su."

*

"Temos festa hoje, aqui. A alma chinesa manifesta-se, evidencia-se, domina, hoje; ofusca, pela grande maioria dos rabichos, o pálido reflexo da civilização do Ocidente que logrou chegar a este Macau, a este exíguo penedo asiático, onde Portugal implantou a sua bandeira.
Meia noite. Ao meu obscuro albergue, chega, de além dos bazares, o ruído da bombardada amotinadora dos foguetes, e das mil e mil embarcações fundeadas no porto o clamor ovante das bátegas, vibradas pelas mãos rudes das companhas. Que irá lá por esses bazares, a esta horas, santo Deus!... Eu não me arredo do meu canto. Bem sei que a febre das massas sugestiona, contamina todos. Bem sei que não se dorme hoje; que não há chapéu de coco de amanuense ou kepi de militar, direi mesmo chapelinho de pelúcia com laçarotes de cetim e o seu competente pássaro empalhado, de menina, que não vá correr as vielas, perder-se na onda, confundir-se com os rabichos, gozar com eles. Mas está tanto frio, e as bagas de água zurzem-me tão desapiadamente os vidros das janelas... E, pior do que isto, é o frio da alma, é a apatia enervante do meu espírito, é o sorriso amargo que me enruga os lábios, provocado por esse mesmo jubilo do enxame, que aqui me retêm e me impedem de também ir galhofar.
Não, decididamente não serei da festa. Imagino-a daqui. Imagino essas ruas lamacentas, coalhadas de povo sujo, com as cabais negras ensopadas dos chuviscos; e imagino os lumes tremeluzentes das lanternas de papel, acendendo nas poças, pelo reflexo... grandes labaredas efémeras, ziguezagueando. As lojas estão escancaradas ao público; frutos, flores, doces, carniças, bonecos, coisas santas, estendem-se pelos caminhos em prodigiosas teorias, em coloridos quase estonteantes; e é comprar, e comprar já, porque não tarda em romper o glorioso dia de descanso, o único na China em que o camponês, o artífice,  o vendilhão, todos, cruzam os braços, não trabalham; e nem a peso de ouro se encontraria um linguado, uma caixa de fósforos, qualquer ínfimo objecto nos mercados. As espeluncas de jogo, em galas desusadas, oferecem-se, tentam a onda; e até pelas ruas o tabuleiro de azar se estende ao passeante. Que pechincha, se se apanha para a festa um acréscimo de pecúlio não esperado! O china adora o jogo - era preciso que ele adorasse alguma coisa! - mas hoje todos jogam, todos são chinas, e é isto um exemplo interessante da influência sugestiva das grandes maiorias; a mão mais circunspecta de funcionário, a mão mais mimosa de dama (de nhônha, em dialecto vulgar desta colónia) avançam sem pejo, arriscam à sorte vária umas pratinhas...
Quando bate meia noite; quando, junto do altar dos penates, se curvaram em piedosas adorações milhares de cabeças agradecidas, e se queimaram papéis místicos, e se acederam pivetes odoríficos; quando em plena rua um brado de aleluia os ecos acordou; dirige-se então a onda humana para o lar, já mercas feitas, já bolsas esvaziadas; e vai surgir um grande dia votado inteiro ao descanso, votado à glorificação dos deuses, cuja magnânima assistência se exalta pelas graças concedidas e pelas graças que vão esperar-se!...
(...)"
*

"Para o ano novo, tudo se prepara com antecedência, em prodigiosa azáfama; é para todos uma ocupação incessante e desusada, durante as últimas semanas do ano que vai findar. Lavam-se os covis, lavam-se as pobres mobílias. É o pó de um ano que se sacode, é a lama de um ano que se deita fora, é o piolho e é a pulga de um ano que se afogam na onda das barrelas; porque, durante os labores de cada dia, nunca a ideia de limpeza preocupou os espíritos durante um só instante.
 (...)
Conceda-se pois, por excepção, a este bom povo celestial, o capricho de lavar uma vez cada ano o antro onde se abriga. Depois, é ver a faina de colar pelas paredes, pelas portas, pelas janelas, papéis de bela cor escarlate, com negras inscrições cabalísticas, que são votos de ventura e de riqueza, que são preces aos deuses. E chega a ocasião de se adornarem os altares, de se irem comprar junquilhos em flor, que se dispõem em vasos gentis com água e seixos alvos, e assim vão enfeitar os aposentos, levando o viço e o perfume, por um dia, aos negrumes das alcovas. No meio do complicado rito das usanças, algumas práticas enternecedoras, de ingenuidade primitiva, interessam o curioso. Reparem por exemplo nas enormes celhas expostas pelos mercados, onde enxames de pequeninos peixes negros, carpas barbudas, estrebucham na gota de água do improvisado cativeiro; o povo compra-as, e vai lançá-las em seguida nas ribeiras, gozando na acção do resgate, por certo grata aos deuses, e que redundará em benefícios..."

Wenceslau de Moraes. "O Ano Novo".  Paisagens da China e do Japão. Lisboa, Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso, 1906


terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O Corpo de Bombeiros de Macau

Edifício do Museu dos Bombeiros na Estrada Coelho do Amaral. 
Macau, Janeiro de 2011

Data de 1883 o primeiro Regulamento dos Serviços de Incêndio de Macau. E, embora a história dos Bombeiros de Macau comece, oficialmente, a 2 de Maio de 1883 com a criação do referido regulamento, existiam já serviços de incêndios que, tal como descreve Gonzaga Gomes no seu texto "Os Primitivos Bombeiros de Macau", eram prestados pelos próprios moradores, bem como pelo pessoal das fábricas e lojas. Existiam lugares próprios para guardar o material então existente de combate aos incêndios e o  pessoal afecto aos serviços de incêndios era recompensado com "um leitão assado e dois almudes da melhor aguardente chinesa".
Em 1851, já existia a figura de inspector de incêndios que dirigia as operações de combate aos incêndios; existia, também, uma bomba no quartel do Batalhão de Artilharia de S. Francisco e encontravam-se já estabelecidos os sinais de aviso de incêndio, dado por dois tiros de canhão, na Fortaleza do Monte. A bomba seria transferida, em 1874, para o Convento de S. Domingos em cujo edifício se instalou a Inspecção de Incêndios em 1883.
O Regulamento dos Serviços de Incêndio (publicado a 10 de Agosto de 1883) deu início à criação de um serviço organizado. Instalado no Convento de S. Domingos e constituído por um corpo activo de 60 pessoas, os serviços de incêndio possuíam quatro bombas, duas em Macau, uma na Taipa e a outra em Coloane. Num edital de 15 de Março de 1875, determinava-se a implementação de várias medidas, entre elas a identificação das casas que possuíssem poço, através da colocação de uma tabuleta com a palavra poço em chinês, a seguir a um P.
Em 1909, já existiam postos de incêndios junto das estações da Polícia, nomeadamente, na Rua da Caldeira, em Santo António e em Mong Há.
Em 1914, é publicado o Regulamento Orgânico da Direcção das Obras Públicas, cujo director exercia também, desde 1901, o cargo de Inspector de Incêndios. Contudo, em 1915, os serviços de incêndios são desvinculados das Obras Públicas e a sua reorganização fica a cabo do Major de Infantaria João Carlos Craveiro Lopes, sendo os elementos do Corpo dos Bombeiros recrutados entre os voluntários para a Polícia.
Em 1916, existiam em Macau três estações, estando a Estação nº 1 (Central) localizada em S. Domingos, e as outras duas na Avenida do Almirante Sérgio (Estação nº2) e Avenida Horta e Costa (Estação nº3).  A Taipa e Coloane possuíam os seus Postos de Incêndio.
O Regulamento Orgânico do Corpo dos Bombeiros é aprovado em Abril de 1919 e definidos os objectivos da corporação: prevenção e socorro de incêndios, desastres e calamidades; lavagens sanitárias e regas da cidade; execução de serviços em que fosse necessária a utilização do material da corporação.
Em 1920 é aprovado o projecto para a construção de novas instalações na Estrada Coelho do Amaral, cujo quartel seria inaugurado oficialmente a 3 de Outubro de 1923. Nesse ano de 1923 passou a designar-se por Corpo de Salvação Pública, saindo da dependência do Leal Senado (os serviços da cidade de Macau) e da Câmara Municipal das Ilhas (serviços da Taipa e Coloane) para regressar à dependência do Governo da Província.


Museu dos Bombeiros - Sala Principal
Logótipo dos Bombeiros Municipais de Macau e 
viatura de fabrico inglês, marca Denis de 1949: pronto socorro com bomba e escada.

Em 1939, o Corpo de Salvação Pública passa a ser uma corporação militarizada, transitando novamente, em 1946, para a tutela do Leal Senado (sem a brigada sanitária) e designando-se Corpo de Bombeiros Municipais.
A 1 de Janeiro de 1976, são criadas as Forças de Segurança de Macau que passaram a incluir o Corpo dos Bombeiros.

Na década de 1990, o edifício do Corpo dos Bombeiros - construído em 1920 e oficialmente inaugurado em 1923 - foi remodelado para nele se instalar o espaço museológico dedicado aos Bombeiros de Macau. Inaugurado em Dezembro de 1999, ocupa uma área de 350 m2, repartido por duas salas. Possui duas bombas manuais de fabrico chinês - de 1884 e 1908 -, uma bomba de fabrico inglês de 1877, duas viaturas de fabrico inglês, dos anos 50, bem como diversos objectos de grande interesse, para além fotografias, logótipos e bandeiras da Corporação, maquetes e manequins. O edifício do Museu encontra-se classificado como "edifício de interesse arquitectónico".




Fontes:
Anabela Nunes Monteiro. "Corpo de Bombeiros". Ditema. Dicionário Temático de Macau, Vol. 1, 2010
João Azeredo. "À Conquista do Fogo". in revista Macau de Maio de 1995.
Corpo de Bombeiros: http://www.fsm.gov.mo/cb/portugues/UntitledFrameset-22.htm

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Macau de Henrique de Senna Fernandes: Largo de S. Domingos

"Banca de um velho adivinho chinês, que ainda sem clientes descansa despreocupadamente". 
Fotografia de José Neves Catela (cerca de 1930-40) do catálogo da exposição
Macau. Memórias Reveladas. Museu de Arte de Macau, 2001


"(...) O Largo de S. Domingos, além de pertencer ao meu caminho para a Escola Primária, também me entretinha. Por baixo das suas arcadas, alinhavam-se os cegos adivinhos que "cantavam" a sina e os escribas que respondiam às cartas dos clientes analfabetos, depois de longas conversas. Eram letrados e escreviam os caracteres sínicos com elegância, possuídos duma caligrafia impecável, segundo os entendidos. Ainda se vêem hoje, nos lugares tradicionais, mas em número muito reduzido.
No Largo, estava instalada a Livraria Po Man Lau, à esquina para a Travessa de S. Domingos, ponto de paragem praticamente obrigatória para todo o aluno da Primária, o que a Livraria Progresso, à Rua do Campo, representava para o Liceu.
A Po Man Lau, mais papelaria que livraria, vendia livros para o ensino primário, como o Livro de Leitura de Ulysses Machado, da 1.ª à 4.ª classe, a Gramática do mesmo autor, a Geografia de Figueirinhas, a História de Portugal, de Jaime Séguier, a Tabuada e o Sistema Métrico, e uma obra muito interessante para os estudantes do último ano, denominada Coisas Geográficas, de cujo autor não me recordo o nome. (...)".
Henrique de Senna Fernandes. "Rua das Mariazinhas". in Mong-Há. Instituto Cultural de Macau, 1998

Macau de Henrique de Senna Fernandes: A loja do A-Chai na Rua da Palha


"(...) Na Rua da Palha, quase na embocadura para a Rua de S. Domingos, abria-se a popular loja do A-Chai que satisfazia fielmente a freguesia macaense, no domínio do paladar e da lambarice desta.
Vendia balichão, peixe esmargal e limão de Timor tratado, todos de fina qualidade, condimentos imprescindíveis para acompanhar as iguarias de Macau. O café de Timor, em grão ou em pó, cujo aroma embriagava. Latas de perada e goiabada e potes de barro do doce da camalenga (abóbora), de confecção caseira.
Manhã cedo, aglomerava-se um pequeno ajuntamento à espera dos tabuleiros de chilicotes, uma especialidade da casa, que vinham estaladiços e quentinhos directamente do forno e se esgotavam num abrir e fechar de olhos. Chegavam também rissóis e pães recheados, mas não tinham a voga dos chilicotes. Também vendia gostosa bolacha-manteiga, doce ou salgada, mas eu sempre preferi a que se vendia na Padaria Vo-Long, à Rua do Campo. O que a minha glutonice apreciava e tem saudades de crescer a água na boca, era do pão-de-casa, fofo e doirado, do fula-fula do A-Chai, um bolo de grãos de arroz tostado, em forma de cubo, amarelado com a doçura da calda de jagra. E também das broinhas de Macau, loiras e aveludadas, a desfazerem-se na boca, que nada têm que ver com as broas de Portugal (...)".
Henrique de Senna Fernandes. "Rua das Mariazinhas", in Mong-Há. Instituto Cultural de Macau, 1998

Macau de Henrique Senna Fernandes: a Travessa dos Anjos


"(...) A Travessa dos Anjos que comunica directamente a Rua do Campo com a Rua de S. Domingos, era no meu tempo da Primária* uma via típica de casario chinês, mas atapetada de calçada portuguesa. Paredes de tijolos cinzentos, portas de espaldar, casebres alternando-se com edificações de dois pisos, teia de vielas estreitas escoando para ela, muros cercando pátios interiores com outras tantas residências, formando verdadeiras ilhas que se isolavam, quando o portão se encerrava, às tantas da noite.
Como acontece ainda hoje, era um trilho movimentado e ideal para quem quisesse encurtar caminho. Os peões palmilhavam-no à vontade, embaraçados apenas pelos vendilhões ambulantes, o homem dos tin-tins e pelas aguadeiras de trança comprida que iam buscar água aos poços dos pátios. Uma ou outra lojeca mal amanhada quebrava a nota residencial. Casas de pasto não havia, pois a Rua de S. Domingos ficava mesmo à volta da esquina. A travessa era, em conjunto, um bocado de cidade chinesa encravado no coração da "cidade cristã".
Nalgumas portas, porém, velhinhas se sentavam, vendendo em tabuleiros rebuçados e achares chineses, amendoins e pevides de casca preta ou branca, tacos de cana-de-açúcar, cortados com mestria para serem iguais em comprimento. Eu tinha os meus tabuleiros favoritos. Um pelos achares, outro pelos tacos de cana-de-açúcar e outro pelos amendoins. As velhinhas conheciam-me. Tudo se pagava com cobres ou cens que pesavam incomodamente nas nossas algibeiras, cheirando mal. Uma moeda de prata de vinte avos tinha, pelo menos, vinte a trinta cobres ou pouco mais, conforme o câmbio do dia. A garotada só possuía cobres, uma moeda de prata era excepção e uma nota de uma pataca era sentir-se rei. (...)"
Henrique de Senna Fernandes. "Rua das Mariazinhas". in Mong-Há, Instituto Cultural de Macau, 1998

* anos 30 do século XX

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Ano Novo Chinês - Fotografias de José Neves Catela

Mercado de Flores no Ano Novo Lunar
Bancas de venda de produtos para o Ano Novo Lunar

Fotografias de José Neves Catela (anos 30-40 do século XX) do catálogo da exposição Macau. Memórias Relevadas, Museu de Arte de Macau, 2001

José Neves Catela nasceu em Alpiarça, Ribatejo, em 1902 e faleceu no Hospital de S. Rafael, em Macau, apenas com 49 anos, em 1951.
Chegou a Macau em 1925, como oficial da Marinha Mercante Portuguesa, para comandar uma embarcação que efectuava a ligação entre Macau e Saigão. Com a mudança de bandeira dessa embarcação, Catela ingressa nas Obras Públicas, nos serviços de Obras do Porto e Propaganda.
Foi fundador do Círculo Cultural de Macau, onde chefiou a secção de fotografia. Desenvolveu uma intensa actividade ligada à fotografia, não apenas no Círculo Cultural, mas como repórter fotográfico, colaborando com diversos jornais e revistas inglesas e americanas.
"Catela fotografou a cidade de Macau nas suas múltiplas dimensões: o património, as gentes e os costumes, conservando assim em imagens de prata as características da cidade que habitou e amou" (Margarida Saraiva, no catálogo da exposição).
A "Foto Arte Capela" ficava situada na Rua do Conselheiro Ferreira de Almeida, no nº 89-A.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

"Bombero di Macau"

 Doca de Lamau, 1970.
Fotografia de Ou Ping do catálogo da exposição 
Uma Viagem no Tempo - Fotografias de Macau por Ou Ping, 2005


Bombero di Macau
Téng-téng! Téng-téng!
Caréta vemêlo,
Tôsco, cumprido, vêlo,
Inchido di nhu-nhum bombero,
Ta corê dizenfreado,
Ramendá elefánti assanhado,
Pa vánda di Tarafero

Téng-téng! Téng-téng!
Caréta dizengonçado,
Arto, largo, pesado,
Nom-têm fim di corê.
Nhu-nhum rópa-ganga azulado,
Ramendá chonto di sodado,
Ta vai guéra combatê.

Téng-téng! Téng-téng!
Quim sentado, quim empê,
Ninguim susto morê.
Fio na mám, gonchông, gonchông,
Sinéta cantá téng-téng,
Gente na rua corê vai-vêm,
Fuzí di caréta volontrôm.

Capacete cubrí cabéça,
Quinzéna botoado péssa-péssa,
Bota arto, grôsso na pê,
Machado marado na cintura,
Nhu-nhum inchido di bravura,
Sabe cuza ta vai fazê.

Comandánte Sium Capitám
Gaudêncio Conceição(*),
Inculido na charéta
Di su motoçáica ligéro,
Tá vai diánte di bombero,
Sai mám badalá sinéta.

Quelora ilôtro chegá,
Olá fogozarám ta quimá
Casa arto qui arto,
Co porta, chám di sobrado,
Janela na diánte, na lado
Co unga porçám di quarto-quarto.

Gente encafulado na casa, 
Mêdo morê assado na braza. 
Jóvi-jóvi botá fuzí, 
Vê-lo-vêlo cai sentado; 
Quiança-quiança na chám pinchado,   
Tudo gritá "cudí!"  
(...)

Sã assi nôsso bombero,
Roda di áno intéro.   
Sol, chuva, tufám, 
Anôte, dia-dia, madrugada, 
Bombero, nôsso ánjo-guarda, 
Pronto pra fazê salvaçám.

Um-cento áno di vida, 
Ocupado cudí gente-sua vida. 
Sodado di paz, sacrificado, 
Um-cento vez isquecido; 
Herói disconhecido, 
Gente di nómi apagado.
(...)
José dos Santos Ferreira (Adé). Macau Sã Assi. Fundação Macau, 1996


(*) Gaudêncio da Conceição foi Comandante da Corporação dos Bombeiros de 1921 a 1935.  Foi também Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau (1924-25, 1926 e 1930-31).