Autocarro de dois pisos da carreira do 21A com destino à praia da Areia Preta, em Coloane.
Anos 70 do século XX. Fotografia de Lei Chiu Vang.
Colecção "Memória Colectiva dos Residentes de Macau - Imagens Antigas de Macau".
"(...) desdobra-se um curiosíssimo aglomerado de casario, a parte central e mais comercial de Macau, junto do Porto Interior, ao fundo do qual se avista a ilha da Lapa e a imensidão da terra china.
Este retalho garrido da policromia tão característica das terras portuguesas constitui uma verdadeira nota de arte puramente nacional, jóia perdida naquele Oriente onde os grandes centros europeus e cosmopolitas oferecem um conjunto de tonalidades bem diferentes, banais e sombrias, onde falta a alegria das cores de Macau".
"A Rua 5 de Outubro é o coração do bairro china de Macau, onde ressalta, com extraordinário brilho, todo o pitoresco desconcertante da vida chinesa das ruas, alacre de cores, com as suas casas de tabuletas características que são um dos atractivos que nos enfeitiçam nos meandros do Bazar"
"As varandas das janelas, com vasos de flores, que os chineses tanto apreciam, um jerinxá ao sol, tudo mergulhado num dia de esplêndida luz, constitui um singular documentário da vida chinesa onde há muito que observar e aprender.
O quadro da velha Rua do Bazar, como que nos transporta a um outro mundo, o mundo chinês de antanho - é um documentário precioso, pode dizer-se, uma relíquia de Macau".
"Finalmente, vamos parar ante um quadro (...) que representa um aspecto nocturno daquilo a que podemos chamar a Baixa de Macau, num canto de luz e de prazer.
É estupenda de interpretação e de verdade chinesa!
Só um artista da sensibilidade de Fausto Sampaio, que soube sorver, aspirar e dar-nos em notas de cor estes cambiantes do mistério da China, poderia apresentar-nos a realidade nocturna deste grande, do maior coulau de Macau.
A nossa necessidade e sensação de prazer da luz, comparadas com iguais fenómenos passados com os chineses, podem representar-se pelo confronto estabelecido entre a claridade duma vela acesa e duma luz de incandescência, e encontra-se bem patente nesta tela pela intensidade luminosa que se concentra naquele bocado de passeio - e só assim se satisfaz aquela verdadeira adoração que os chineses tributam à luz.
Das janelas dos andares emerge luz do interior, por toda a parte há muita luz - pois se até os telhados dos coulaus os chineses chegam a iluminar! - e deste delírio de luz com que eles - os epicuristas - sabem tingir o prazer evolam-se as notas arrastadas, doloridas, das cantigas das pi-pa-t'chai...
Noites da China, noites de Macau..."
"(...) Cais do porto com chuva, onde se vê um interessante tipo de barco fluvial chinês - um flower boat, ou barco de flores - uma novidade que não existia há dez anos no Porto de Macau mas tradicional no Porto de Cantão, onde se encontravam, às dezenas, formando um verdadeiro bairro aquático de prazer, cujo acesso aos europeus nem sempre era livre de escolhos.Dentro daqueles barcos era um cenário de fantasia, daquela fantasia que a gente aqui sonha que seja tudo na China e que tanta desilusão nos acarreta quando lá chegamos; uma fantasia mergulhada num mar de luz - da luz tão querida dos chineses - em sedas brilhantes, em cores garridas, em decorações vermelhas e doiradas, lanternas, música e pi-pa-t'chai galantes que servem aos chineses para dissipar as agruras da vida (...) "
" (...) São uns barcos típicos (as lorchas), estranhos, que à primeira vista parecem andar para trás, de excelentes qualidades náuticas, onde os mestres chinas realizam prodígios de manobra, e que imprimem uma nota muito típica e de extraordinário interesse artístico à paisagem marítima de Macau.
As lorchas constituem uma indelével nota nostálgica da China, principalmente para quem lá passou a vida no mar."
"(...) Sob o ponto de vista artístico, Macau não só é diferente das nossas colónias europeias, pela originalidade única do seu ambiente, como até das restantes colónias europeias na China, onde falta a pátina do tempo, o sugestivo da lenda e da tradição.
Está neste caso o famoso Pagode da Barra, ou Ma-Kok-Miu, aqui representado em três soberbas telas (...) que é como um símbolo, um brasão, um ex-líbris, de Macau.
Ao Pagode da Barra, interessantíssimo espécime de arquitectura chinesa, que se nos apresenta como um polo oposto de crenças e civilizações, em confronto com as majestosas ruínas de S. Paulo, o mais imponente monumento da fé cristã em todo o Oriente, ao Pagode da Barra está ligada a curiosa lenda da deusa A-Ma - uma das encarnações, chamemos-lhe assim, da deusa da Misericórdia, a criação mais humana e doce das crenças chinesas.
É curta a lenda e, por certo, muitos a conhecem.
(...)
O Pagode da Barra foi construído, ao que parece, na época dos Mings - entre os séculos XIV e XVII - em sítio muito pitoresco, e é revestido, tanto interior como exteriormente, de magníficas ornamentações, pinturas representando cenas da vida chinesa e inscrições sínicas, embelezamentos para os quais contribuíram artistas célebres entre os quais se citam: Ho tam Sham, Kuan Lou Hin, Su Lok P'ang, etc.
Os telhados deste pagode, que serviu de inspiração e foi reproduzido na tela por vários artistas europeus, são duma magnificente beleza.
Dele disse o falecido Dr. Silva Mendes, que à China e a Macau dedicou entranhado culto: "É a residência ideal de todo aquele que aspire a viver com a Natureza, com a poesia, com os deuses...".
(...)
Assim se explica porque o Pagode da Barra, ou Ma-Kok-Miu, se encontra representado nesta exposição, em três quadros (...). Ali se observam as duas lorchas gravadas a cores, nas rochas que servem de alicerce, por assim dizer, a uma parte daquela construção, e que simbolizam a lendária interferência da deusa A-Ma na origem do santuário".
"(...) As suas impressões oscilavam entre as grandes panorâmicas da cidade e o enfoque de estreitas ruas ou monumentos importantes, entre o longínquo e o próximo, entre uma espacialidade bem determinada e a proximidade de um plano que captava o instantâneo de um momento, assinando estes seus trabalhos com um pincel chinês e "tornando memória viva o desconhecido, normalmente envolto em particularidades estranhas e diferenciadas emoções, numa visão variada do Oriente. Grandes panorâmicas da cidade e aspectos do porto de Macau, numa dimensão bem proporcionada, envoltas por uma atmosfera rarefeita e uma particular sensibilidade de suaves tonalidades azuladas, tal como na Vista da Praia Grande, imagens muito próximas de clichés fotográficos pela visão alargada da paisagem, mas diferenciada da fotografia pelos matizes cromáticos e efeitos de luz, de outro modo estudados em Manhã nevoenta, de impressões subjectivadas em brumas, quase monocromáticas.
Em Macau produz intensamente e regista uma "odisseia citadina" no ritmo movimentado das "ruas, becos e escadinhas em que inúmeros estabelecimentos ostentavam tabuletas com complicados caracteres chineses, as casas de chá, as centenas de tendas, nas ruas, onde se preparavam deliciosas iguarias de cozinha tradicional, os curandeiros e as típicas farmácias, os leitores de sina, os escribas, peritos em transcrever em belos caracteres as missivas dos clientes, as casas de Fan-tan, os fumatórios de ópio, a gente do mar, que nascia, vivia e morria nos airosos juncos (...)".
"O Beco das Galinhas, a Rua 5 de Outubro, a Rua do Bazar, a Avenida de Almeida Ribeiro à noite e as imagens do Pagode da Barra revelam a preocupação pelos valores da luz e da cor, de tal modo que, mais importante que a representação, importa ao artista exprimir-se através da pincelada e das manchas de cor, afastando-se da hábil exactidão que já explorara, especialmente no retrato de encomenda e na representação de uma ideia colonial. Uma luz brilhante, explosões de cor e uma espécie de impressionismo e uma marcação expressionista, por vezes com fortes pinceladas curvilíneas e gestuais, provavelmente influenciadas pela observação de obras chinesas, como nos labirínticos traços negros da ramagem das árvores do pagode da Barra."
" (...) Aspectos diferenciados, entre Tancareiras, retratos anónimos de figuras serenas de bairros de pescadores, pormenorizadamente descritas, Lorchas e Tancares, Cais do Porto com chuva, onde se avista o "bairro aquático de prazer (...) fantasia mergulhada num mar de luz", também uma movimentada cena no porto, de ilustrativos quotidianos, e ainda uma sala de jogo expõem a diversidade dos aspectos tratados em Macau. Neste Fan Tan, algumas figuras, calvas e de uma inexpressividade própria de jogadores, em fantasmagóricos jogos de luz, representam um poderoso e dinâmico mundo, observado numa visão crítica."Excertos do texto de Maria Aires Silveira para o catálogo da exposição "Fausto Sampaio (1893-1956). Viagens no Oriente". Fundação Oriente, Lisboa, Maio de 2009