segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Maria Ondina Braga: Natal Chinês

A senhora Tung chegava dois dias antes da consoada. Costumava vê-la logo de manhã, com a irmã jardineira, no pátio maior, a admirar as laranjeiras anãs nos vasos de loiça. Via-a casualmente a contemplar, embevecida, o presépio do convento. Encontrava-a por fim à mesa. 
A senhora Tung viajava todos os anos da Formosa para Macau, na época do Natal, a fim de festejar o nascimento de Cristo na companhia da sua primogénita, a irmã Chen-Mou.
 Nesses dias, com as meninas em férias, o refeitório do colégio parecia maior e mais desconfortável: só eu e Miss Lu nos sentávamos à mesa comprida das professoras. Daí a presença da senhora Tung, que noutra ocasião passaria talvez despercebida (estirada a sala entre pátios de cimento e plantas verdes), se tornar nessa altura notável.
Baixa, seca de carnes, de olhos atenciosos, pensativos, a senhora Tung sorria constantemente, falava inglês, gostava de comer, de fumar, de jogar ma-jong. As criadas cortejavam-na nos corredores, preparavam-lhe pratos especiais, levavam-lhe chá ao quarto. Além de ser mãe da subdirectora, tinha fama de rica e distribuía moedas de prata a todo o pessoal na noite de festa.
Nessa noite assistiam três freiras ao nosso jantar (a regra não lhes permitia comer connosco): a directora, a subdirectora e a mestra dos estudos. E muito empertigada, segurando com ambas as mãos um tabuleiro de laca coberto com um pano de seda, a senhora Tung recebia-as à porta do refeitório, entregando cerimoniosamente o presente à filha, que por sua vez o oferecia à directora. Eram bolos de farinha fina de arroz amassada com óleo de sésamo. Toda de vermelho, de sapatos bordados e ganchos de jade no cabelo, a senhora Tung, quando a superiora colocava o tabuleiro dos bolos na mesa, dobrava-se quase até ao chão. Rezava-se, depois. Para lá dos pátios, à porta da cozinha, as criadas espreitavam, curiosas. 
Nem no primeiro, nem no segundo, nem no terceiro Natal que passei em Macau, a senhora Tung era cristã, mas todos os anos se nomeava catecúmena. A seguir ao jantar falava-se nisso. A directora, uma francesa de mãos engelhadas que noutros tempos frequentara a Universidade de Pequim, perguntava em chinês formal quando era o baptizado. Inclinando a cabeça para o peito, a senhora Tung balbuciava, indicando a irmã Chen-Mou. A filha... a filha sabia. Talvez se pudesse chamar cristã pelo espírito, mas o coração atraiçoava-a. O coração continuava apegado a antigas devoções... Todavia, vestira-se de gala para a festividade da meia-noite, tinha no quarto o Menino Jesus cercado de flores, e a alma transbordava-lhe de alegria como se cristã verdadeiramente fosse. 
Com um sorriso meio complacente meio contrariado, a irmã Chen-Mou desconversava, passando a bandeja dos bolos à superiora, que separava uns tantos para o convento. Os restantes comê-los-iamos nós, ao fim da Missa do Galo, com chocolate quente.
O chocolate era a esperada surpresa da directora. A senhora Tung chamava-lhe, em ar de gracejo, «chá de Paris». No fim das três missas vinham outra vez as três freiras ao refeitório do colégio para trocarem connosco o beijo da paz e nos oferecerem a tigela fumegante do chocolate. Vinham e partiam logo (tarde de mais para se demorarem), e Miss Lu, fanática terceira-franciscana, sempre atenta aos passos das monjas, sorvia à pressa o líquido escaldante, como quem cumprisse um dever, e saía atrás delas.
Ficávamos, assim, a senhora Tung e eu, uma em frente da outra. À luz das velas olorosas do centro de mesa, os seus olhos eram dois riscos tremulantes. Sorríamos. Finalmente, o reposteiro ao fundo da sala apartava-se. Uma das criadas entrava, silenciosa. Servia-se vinho de arroz.
Creio que o vinho de arroz figurava entre as bebidas proibidas no colégio e que chegava ali por portas travessas. O certo, contudo, é que ambas o bebíamos, a acompanhar os bolos de sésamo, no grande e deserto refeitório, na noite de Natal.
O vinho de arroz queimava-me a garganta e fazia-me vir lágrimas aos olhos. Quanto à senhora Tung, saboreava-o devagar, molhando nele o bolo, e, como mal provara o «chá de Paris», bebia dois cálices.
Entretanto, Aldegundes, a criada macaense mais antiga do colégio, aparecia com as especialidades da terra: aluares, fartes e coscorões, dizendo que aluá era o colchão do Minino Jesus, farte almofada, coscorão lençol. E eu traduzia em inglês para a senhora Tung, que achava isto enternecedor e gratificava a velha generosamente.
Quando por fim atravessávamos a cerca a caminho de casa, sob uma lua branca, espantada, anunciadora do Inverno para a madrugada, a senhora Tung abria-se em confidências.
A menina sabia... ― a «menina» era a irmã Chen-Mou, a subdirectora do colégio ―, sabia que ela continuava a venerar a Deusa da Fecundidade. Tratava-se de uma pequena divindade, toda nua e toda de oiro. Fora ela quem lhe dera filhos. Estéril durante sete anos, a senhora Tung recorrera à sua intercessão divina quando o marido já se preparava para receber nova esposa. Não podia portanto deixar de a amar. Toda a felicidade lhe provinha daí, dessa afortunada hora em que a deusa a escutara.
Parava a meio do largo átrio enluarado, de olhar meditabundo, mãos cruzadas no colo. E as palavras saíam-lhe lentas e soltas, como se falasse sozinha.
... E aquele mistério da virgindade de Nossa Senhora! Virgem e mãe ao mesmo tempo... Não se lia no Génesis: «O homem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher e os dois serão uma só carne?» Não era essa a lei do Senhor? Porquê então a Mãe de Cristo diferente das outras, num mundo de homens e de mulheres onde o Filho havia de vir pregar o amor? A Deusa da Fecundidade, patrona dos lares, operava milagres, sim, mas racionalmente, atraindo a vontade do homem à da sua companheira e exaltando essa atracção. Como o Céu alagando a Terra na estação própria.
Retomávamos a marcha em direcção aos nossos aposentos. Difícil para mim responder às dúvidas da senhora Tung, nem ela parecia esperar resposta. Mudava, rápida, de assunto, aludindo ao tempo, à viagem de regresso, às saborosas guloseimas da criada macaísta.
Já em casa, convidava-me a ir ver o seu presépio. O quarto cheirava fortemente a incenso. Em cima da cómoda, entre flores, lá estava o Menino Jesus, de cabaia de seda encarnada, sapatinhos de veludo preto, feições chinesas.
Depois, timidamente, a senhora Tung abria a gaveta... e surgia a deusa.
O Menino Jesus era de marfim. A Deusa da Fecundidade era de oiro. O Menino, de pé, de um palmo de altura, trajando ricamente. A deusa, sentada, pequenina, nua.
Os olhos da senhora Tung atentavam nos meus, como se à procura de compreensão, mas as suas palavras prontas (a deter as minhas?) eram de autocensura. Não, não devia fazer aquilo. A filha asseverara que o Menino Jesus entristecia, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. E quem sabia mais do que a filha ?
Eu já sentia frio, apesar da aguardente de arroz. O Inverno, ali, chegava de repente. A senhora Tung, no entanto, tinha as mãos quentes e as faces afogueadas.
Despedíamo-nos. Eu sempre me apetecia dizer-lhe que estivesse sossegada, que de certeza o Menino Jesus não havia de se entristecer, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. Mas nunca lho disse nos três anos que passei o Natal com ela. Palpitava-me que a senhora Tung se enervava com o assunto. E que, de qualquer jeito, não me acreditaria.
Maria Ondina Braga, A China Fica ao LadoLisboa, Unibolso, Bertand.

Natal Sã Festa Grándi

Natal Macaense

NATAL SÃ FESTA GRÁNDI

"Quelora piquinino, iou muto contente esperá dia di Natal. Têm rópa co sapato nôvo pa usá, lôgo achá tánto pisente, na casa têm bom-bom ancuza pa comê, quim nádi contente?
Natal sã unga festa divera grándi pa nôs cristám.
Dia 24 anôte, tudo gente crescido lôgo vai Missa-Galo. Quelê frio, quelê sono tamêm ilôtro nádi faltá. Cavá missa, sã ta corê vai casa ravirá co laia-laia comizaina, fazê cea. Nôs quiança-quiança sã trepá cáma durmi, ánsia esperá manhã-cedo chegá. Educado pa pai-mai cristám, nôs nunca crê na estória di pai-natal vem largar pisente na chaminé, j'olá? Nós sômente crê qui Natal sã dia qui Jesus já nacê; sã dia qui Jesus fichá áno. Quim bom quiança, obibiente, nunca fazê tánto arvirice, Jesus Piquinino lôgo ficá contente, lôgo nós achá tudo pisente qui nôs más gostar.
Chegar Natal pramicedo iou costumado quelê azinha erguí di sono, sai di cáma, corê vai diante di pesépio pa rezá. Si nom têm ninguim na perto, ioulôgo conversá co Minino Jesus; lôgo falá co Êle qui iou, na róda di ano, já ficá unchinh arviro na-más; quánto vez já falá mentira, já tasquinhá ancuza comê. Cavá pedi Minino Jesus nunca-bom reva, iou lôgo prometê qui náda más falá mentira, lôgo ficá bom quiança."
(...)
"Dia di Natal, cási tudo casa di cristám lôgo armá pesépio. Lôgo tem bom-bom ancuza pa comê. Alua, impada, coscorám com fárti sã ancuza qui nádi pode faltá. Chegá ora di jantá, qui bom olá: Pai-Mai co tudo catravada, co Chacha, Avô-cong juntado, sentá na roda di mésa saboreá laia-laia carniça, frutázi co merenda. (...)"
José dos Santos Ferreira."Natal Sã Festa Grándi". in Poéma di Macau. Fundação Macau, 1996


********
Ancuza - Coisa; alguma coisa. Seléa ancuza: semelhante coisa.
Arvirice - Brincadeira; maldade; partida de crianças.
Arviro - Mauzinho; brincalhão; que gosta de fazer partidas.
Bafá - Abafar; cozer. Bafá aroz: cozer arroz; Bafá na casa: Fechar-se em casa. Bafá é também o nome de um jogo com pedras de dominó.
Catravada - Grupo de pessoas, geralmente todas da mesma família.
Carniça - conjunto dos pratos de carne (perú, capão, faisão, presunto, carne de vaca, lombo de poco, etc.)
Cavá - de "acabar". Depois; em seguida; acabar; terminar.
Chacha - Avó; mulher idosa. Chacha-chacha: velhinhas.
Coscorám - Coscorões. Doce de farinha com melaço, em forma de concha, próprio da quadra do Natal.
Cristám - Cristão; católico. Cristám-novo: chinês feito católico, quando adulto. Língu cristám; língua portuguesa ou dialecto macaense.
Fárti - Doce próprio do Natal, feito com farinha (massa) e com recheio de pinhões, amêndoas e coco.
Frutázi - Várias espécies de fruta.
J'olá - Já olá: ver, no passado. Viu? compreendeu?
Laia - Espécie; maneira. Laia-laia: de várias espécies; de muitas maneiras; Tudo laia: toda a sorte; toda a qualidade. D'estunga laia: desta maneira; deste modo.
Na-más - Não mais; apenas
Nunca - Não. Indica o passado na forma negativa. Êle nunca fazê: ele não fez. Nôs nunca olá: nós não vimos.
Pramicedo - De manhã cedo.
Quelê - Qual; qualquer; que.
Quiança - Criança; Quiança-Quiança: Crianças
Ravirá - Revirar; virar; correr de ponta a ponta; fartar-se.
Reva - Zangado; amuado. Ne-bom reva: não se zangue.
- Verbo ser. Iou sã filo di Macau: sou natural de Macau; Macau sã assi: Macau é assim. Nós sã gente bem-fêto: somos gente séria.
Tasquinhá - De tasquinhar, mas com significado diferente. Furtar; subtrair; tirar às escondidas.
Unchinho - pouco; muito pouco; poucochinho. Já faltá unchinho: faltou muito pouco

Natal ta chegá - Consoada co Missa-Galo

Natal Macaense

NATAL TÁ CHEGÁ

"Ta faltá sômente três dias pa chegá Natal. Na casa di Venáncio  tudo ta quelê ocupado.
Títi Chai, co quánto gente ajudá êle, cavá fazê unga porçám di fárti co coscorám, agora tá começá sai mám pa fazê quánto tachada di alua. Impada sã lôgo ficá pa dia 24 pramicedo. Quelê-môdo pôde  passá Natal si nom-têm bom-bom pitisquéra na casa? Sã têm-qui matá-morê, fazê laia-laia ancuza pa tudo ficá contente. Sômente Maria nunca muto contente. Êle têm-qui ficá na casa pa ajudá su mai, j'olá? Ficá quánto dia prendido, ramendá unga pastro na cajola, nom pôde vai rua olá su Juám.
Chico-Chai já vai gafinhá caxotám guardado na dispénsa, tirá tudo ancuza di pesépio vêm fora, pa armá na sala. Êle co Avô-công abrí pacote, contá qui contá, buscá vai, busca vêm, dá falta di unga ancuza: nom pôde achá image di Nos'Sióra, Mai di Jesus.
- Vai sossegá vôs, Chico-Chai - Avô-công ta rabujá. - Pesépio qui nom-têm Santa Maria, sã qui laia pesépio?
Chico-Chai virá respondê:
- Avô!  tamêm nôs têm Nos'Sióra na pesépio... Quelê-modo estunga  áno já disparecê? Ne-bom falá já perdê!
- Nos'Sióra têm na nôsso pesépio áno-passado, áno-trazado, tudo áno! - avô fala. - Quelora vôs nunca nacê, nôs já tem estunga pesépio. Únde têm Nos'Sióra, iou querê sabe!
Maria já uví papiaçám, já vêm perto ri, chapá bóca falá:
- Nos'Sióra nom sã têm na Ceu? Únde más lôgo têm?
- Aia, fila, nôs ta buscá image qui já disaparecê... Nom-têm na pacote...
- Nunca disaparecê! Iou sabe têm na únde! - Maria respondê.
- Ah?! Vôs sabe? Vai panhá, quiança! Bom-quiança, azinha vai panhá!
- Iou têm pisente di Natal? Si têm, iou ta vai panhá...
- Uví, fila! - Avô-công respondê - Qualunga Natal avô já isquecê dá pisente pa vôs? Azinha vai panhá image vêm!
Maria sai mám fazê festa na rosto di avô, azinha corê vai riva.  Unga estánte vêm di volta sala, co image di Nos'Sióra na mám.
- Ah?! Já vêm di únde estunga image?
- Têm na altar di Mamá, desdi áno-passado - Maria respondê. - Pó cósa di cai unchinho cor, Tio Padre já pegá pintá, cavá já botá na altar.
Avô-công co Chico-Chai, suspirá aliviado, agora começá armá pesépio. Siviço di Venáncio sã vai horta panhá arêa co fóli-fólia pa fazê chám di pesépio."

CONSOADA CO MISSA-GALO

"24 sã dia di consoada. Tudo na casa têm-qui lembrá qui sã dia di jenjum, nom pôde comê carne. Unga dia intéro sã ravirá co sópa di lacassá co camarám, comê laia-laia verdura crú champurado. Têm rodela di batata cozido, cenóra, rabo com cincomáz pa quim querê. Titi Chai cumprí su religiám com devoçám bem-fêto, sã lôgo viziá, olá quim astrevê panhá carne comê. Masquí êle assim jambulám duro, tamêm Venáncio, emado, já corê vai cozinha tasquinhá pisunto, pa capí com pám comê. Ai, si Títi Chai sabe...
Perto chegá mea-nôte, tudo já têm na Greza Sant'António pá uví missa-galo, dessá Chacha Sabina, Chacha Ambrósia co Mui-Mui tomá conta di casa.
Frio di rachá, ántis di vai, unga-unga já gafinha baul tirá rópa grôsso-grôsso pa encapelá, com lám pa enroscá na piscoço. Maria mêdo su Avô-công panhá frialdade, já obriga vêlo usá capotám pesado qui fazê êle nom sabe andá.
No meo-meo di missa, tentaçám di Venáncio dá quánto cabeçada, já cai co sôno. Chai, quelora repará qui êle tá concá, ramendá águ ta fervê  na panela, já arcuá su braço zinguá unga cotovelada na pêto di su nhum. Estunga môno soltá unga "Ai!" assi fórti, qui Sium Padre na altar tamêm já uví, faltá unchinho entorná vinho di cáliz. Padre virá cara, olá cuza já sucedê.
Chegá fim di missa, tudo cavá bezá Minino Jesus, ilôtro azinha corê vai casa, cartá ramatá  Títi Dinha co Lolita pa comê ceia. Intrá na casa, priméro ancuza qui ilôtro fazê sandê vela, vai diánte di pesépio rezá pa pedí graça co Filo di Dios co Virge Maria, Su Mai. Sigundo ancuza, sã Venáncio sentá uví papiaçám di siara.
Cavá pregá sarabanda, Títi Chai dá voz Maria pa ajudá vai cozinha panhá pirú, capám co pisunto botá na mésa pa tudo comê. Querola ta retalhá pisunto, Tití Chai, ôlo vivo, já sentí qui vánda-basso di pisunto já ficá lambiscado. Nancassá priguntá, êle sabe qui sã obra di su Venáncio. Lembrá qui sã Natal, dia grándi, êle abrí unga ôlo, fichá unga ôlo, já dessá vai-ia.
Cavá comê, barriga enchido, unga-unga já virá vai casa, ilôtro fichá bêm fêto tudo janela, trancá porta, apagá lampiám co candia-cera, cadunga recolê na sua quarto. (...)".

Da novela "Estória Di Maria co Alféris Juám". in José dos Santos Ferreira, Macau di Tempo Antigo. Edição do Autor, Macau 1985




*********
Ancuza - Coisa; alguma coisa
Azinha - Depressa. É termo português antigo. Azinha-azinha: muito depressa.
Baul - Baú; Arca; Mala de madeira de tampa convexa.
Capí - Entalar; apertar. Capí mám: acenar com a mão. Capí mám na porta: entalar a mão na porta. Capí pám co pisunto: introduzir presunto entre fatias de pão.
Cartá - Transportar; trazer ou levar. Carté vai: levar. Cartá vêm: trazer.
Cavá - Vem de acabar: terminar, acabar; depois; em seguida
Cajola - Gaiola. Pastro na cajola: pássaro na gaiola
Champurá - Misturar; guisar. Champurá bredo co vaca: guisar hortaliça com carne de vaca.
Emado - Guloso
Encapelá - Cobrir-se com capa ou outra roupa qualquer. Agasalhar.
Estunga - Este ou esta.  Estunga quánto: estes ou estas. 
Fólia - Folha. Fólia-Fólia: folhas. Também significa página ou jornal. Já  sai na fólia: foi publicado no jornal.
Gafinhá - Procurar; esgravatar
Jambulám - Nome de uma fruta; jambulão
J'olá - Já Olá: ver (no passado). J'olá? Viu? ou então, compreendeu?
Lacassá - Aletria.
Laia - Espécie; maneira; casta. Laia-laia: de várias espécies; coisas sortidas. Tudo laia: toda a sorte; toda a qualidade. D'estunga laia: desta maneira; deste modo.
Mám - Mão. Mám fichado qui fichado: mão sempre muito fechada, avarento, mesquinho. Mám-tanto: aquele ou aquela que mexe em coisas que não lhe compete.
Masqui - Termo que vem do malaio e significa apesar de, embora. Masqui seza: embora seja.
Matá-morê - Esforçar-se muito; trabalhar até se cansar; aplicar-se; esmerar-se.
Nacanssá ou Nuncassá - Não é preciso; não esteja com. Nancassá cerimónia: não esteja com cerimónias. Nancassá inventaçám: não venham com mentiras.
Nhum - Rapaz, homem novo. Nhum nutrido: gordo, robusto. Nhu-nhum: senhores ou homens.
Papiá - Papear; papaquear; Falar, dizer. Papiá bem-fêto: falar bem. Qui cuza vôs ta papiá? Que está V. a dizer? Papiá nôsso língu: falar a nossa língua.
Papiaçám - Papiá originou papiaçám. Significa: fala, paleio; o falar. Um-cento papiaçám: muito paleio. Sã nosso papiaçám: é o nosso falar.
Qualunga - Qual; qual deles.
Quelê - Qual; qualquer; que.
Quelê-modo - Como; de que modo; de qualquer modo.
Quelê-tanto - Qualquer que seja a quantidade; grande quantidade; muito.
Quelora - Qual hora; quando; no momento em que.
Quiança - Criança. Quiança-quiança: crianças
Ramatá - Rematar; concluir; acabar.
Ramendá - Parecer; semelhante a; tal como. Ramendá unga pastro na cajola: Tal como um pássaro na gaiola.
Ravirá - Revirar. Virar; correr de ponta a ponta; fartar-se. Comê qui ravirá: fartar-se de comer. Ravirá cabéça: dar voltas à cabeça.
Riva - Cima; em cima.
Siara - Senhora; mãe de família; dona de casa. Esposa.
Títi - Tia. Títi-títi: Tias. Títi-dinha: tia madrinha. 
Unchinho - Poucochinho; muito pouco. Já faltá unchinho: faltou muito pouco. Iou querê unchinho na-más: quero apenas poucochinho. Unchinho-unchinho ora: de volta e meia.
Únde - Onde. Únde já vai? Onde foi? Únde lôgo têm? Onde estará? ou onde haverá? Nôs sabe sã únde: nós sabemos onde é.
Unga - Um ou uma.
Vánda - Banda; lado. Pa estunga vánda: por estes sítios. Vánda di trás: parte traseira; parte posterior.
Zinguá - Zingar; golpear; desfechar golpes; arrear.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Feliz Natal


Feliz Natal e Próspero Ano Novo 

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Um pagode pitoresco

Templo junto às Portas do Cerco (Templo de Tin Hau)
Auguste Borget (1808-1877). Litografia colorida por Eugène Cicéri.
(in Quadros Históricos. Colecção do Museu de Arte de Macau)

"22 de Setembro de 1883 - Fui hoje, sob um calor intenso, inspeccionar os hidrómetros instalados. Às três horas da tarde dirigi-me ao da enseada de D. Maria II, acompanhado por Cinatti, Talone e Cunha. Para se chegar a este hidrómetro, assente na extremidade de uma restinga, foi mister entrar em uma pequena champana de pescador, onde o mar nos molhou a todos. Foi agradável aquele banho.
Há ali um sítio encantador. Pequenas cabanas de pescadores orlam a costa. Muito próximo, sobre umas rochas cortadas a prumo e batidas pelo mar, olhando para a enseada e para as nove ilhas, fica o pitoresco pagode chinês cercado de muros pintados de amarelo e com um pequeno jardim ensombrado por alguns formosos exemplares da árvore do pagode. É esplêndida de mimo e de poesia aquela situação do modesto templo. (...)"
Adolfo LoureiroNo Oriente, de Nápoles à China. in Carlos Pinto Santos e Orlando Neves. De longe à China. Macau na Historiografia e na Literatura Portuguesas. Tomo II. ICM, 1998

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Monumento da Vitória

Praça e Monumento da Vitória. Ca. de 1900.
in Fotografias Antigas de Macau, Instituto Cultural de Macau e Museu de Macau, edição de 1999

Monumento da Vitória

 
Monumento da Vitória. Macau, Dezembro 2010


Inaugurado a 26 de Março de 1871 pelo Governador António Sérgio de Sousa, na então designada Praça da Vitória*, o monumento é da autoria do escultor Manuel Maria Bordalo Pinheiro (1815-1880).

Nele encontra-se a seguinte inscrição:

"No mesmo local onde uma pequena cruz de pedra comemorava 
a acção gloriosa dos portugueses mandou 
o Leal Senado levantar este monumento 
no ano de 1864**".

Numa outra inscrição, lê-se:

"Para perpetuar na memória dos vindouros 
a vitória que os portugueses de Macau
por intercessão do Bem Aventurado S. João Baptista
a quem tomaram por padroeiro 
alcançaram
sobre oitocentos holandeses armados
que de treze naus de guerra capitaneadas pelo almirante Roggers
desembarcaram na Praia de Cacilhas
para tomarem esta cidade do Santo Nome de Deus de Macao
em 24 de Junho de 1622"


* A Praça da Vitória - hoje, Jardim da Vitória - situava-se no prolongamento da Avenida Vasco da Gama rasgada em 1898, com cerca de 500 metros de extensão, que ía desde a Calçada do Gaio até à Rua da Fonte da Inveja. Ficava entre a Estrada da Flora (actual Avenida Sidónio Pais) e a Estrada da Vitória.


** O Padre Teixeira - A Voz das Pedras de Macau, Imprensa Nacional, 1980 - corrige esta data, pois "o monumento foi erecto não em 1864, mas 1871".

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Quartel de S. Francisco

O Quartel de S. Francisco e, no topo da colina de S. Jerónimo, o Hospital de S. Januário.
Fotografia publicada na Illustração Portugueza de 28 de Dezembro de 1908


"O Quartel de S. Francisco, no extremo da Praia Grande, mandado edificar pelo benemérito governador Coelho do Amaral, espaçoso, bem arejado, em excelentes condições, é ocupado pelo batalhão do Regimento do Ultramar destacado em Macau. Mais acima, no alto de uma pequena colina assenta o Hospital S. Januário, magnífico e elegante estabelecimento que Macau deve, entre outras muitas coisas, à larga iniciativa do conde de S. Januário". 
Conde de Arnoso. "Em Macau", Jornadas pelo Mundo* (1894). in Carlos Pinto Santos e Orlando Neves. De longe à China. Macau na Historiografia e na Literatura Portuguesas. Tomo II. ICM, 1998

*Jornadas pelo Mundo, editado em 1894, resultou de uma missão diplomática de Tomás Rosa a Pequim, da qual o Conde de Arnoso fazia parte. Bernardo Pinheiro Correia de Melo (1895-1911), Conde de Arnoso, título com que foi agraciado em 1895, era também conhecido como Bernardo Pindela, por ser filho do visconde de Pindela. 
"O Sr. conde de Arnoso tem colaborado em diversos jornais, e está publicando actualmente uns artigos na Arte e a Natureza, publicação quinzenal do Porto, editores Biel & C.ª. Nas Novidades inseriu as suas notas da viagem a Pequim, em 1887, as quais reuniu depois num livro com o título de Jornadas pelo mundo, que publicou em 1895. É uma obra curiosíssima em que descreve a China e o Japão. A edição foi feita pela casa editora Magalhães & Moniz, do Porto. Pelo decreto de 28 de Setembro de 1895 foi agraciado com o título de conde de Arnoso. Até então assinava-se sempre Bernardo Pindela em todos os seus trabalhos literários. O primeiro livro que publicou têm por titulo Azulejos, impressões da sua vida de estudante na Universidade Coimbra. De braço dado, escrito de parceria com o primoroso poeta Sr. Conde de Sabugosa, edição da livraria Gomes, Lisboa, em 1894; A primeira nuvem, comédia em 1 acto, representada no teatro D. Amélia em Maio de 1902, editada pela casa Ferin, de Lisboa, Suave milagre, em 6 quadros, de colaboração com o distinto escritor Sr. Alberto de Oliveira. É um delicado trabalho, baseado num conto de Eça de Queirós, que se representou no teatro de D. Maria, pela primeira vez, em 28 de Dezembro de 1901, e se repetiu em bastantes noites, obtendo sempre aplausos. O Suave milagre foi também publicado, pela casa editora Feriu, em 1902, numa bela edição adornada de lindas ilustrações."

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Colégio D. Bosco


 Colégio D. Bosco. Macau, 2010


Os salesianos chegaram a Macau em 1906, para cuidar do Orfanato da Imaculada Conceição, inicialmente apenas para órfãos chineses e, a partir de 1941, também para órfãos portugueses. Em 1939, o bispo D. José da Costa Nunes concede licença para os salesianos erigiram uma "Casa Salesiana em Macau". Com o lançamento da primeira pedra a 6 de Fevereiro de 1949, o Colégio Dom Bosco era inaugurado a 10 de Fevereiro de 1951. Ainda nesse ano, a 30 de Novembro, foi lançada a 1ª pedra da nova ala do colégio, a qual incluía oficinas, salão de teatro e refeitório. Sendo o Colégio fundamentalmente uma escola industrial (oficializada em Julho de 1960), nele funcionaram todos os níveis de ensino não superior e, inclusive, até 1997, o ensino pré-escolar em português, data em que docentes e crianças foram transferidos para o Jardim de Infância D. José da Costa Nunes.
Encerrou a secção portuguesa no final do ano lectivo de 1998/99, passando dos salesianos portugueses para os salesianos chineses. Designa-se, actualmente, Colégio Dom Bosco Yuet Wah, tendo apenas a secção inglesa e chinesa, tal com o Colégio de Santa Rosa de Lima.


Estátua de S. João Bosco no Jardim da Montanha Russa. Macau, 2010

João Bosco (Castelnovo de Asti, 16 de Agosto de 1815 - Turim, 31 de Janeiro de 1888), fundador da Sociedade de S. Francisco de Sales (1859), conhecida por salesianos, composta por sacerdotes e leigos e vocacionada para a educação infantil, juvenil e ensino profissional, foi criador do designado "sistema preventivo" em educação. Foi canonizado em 1934.


Fontes:
Amadeu Gomes Araújo. Diálogos de Bronze. Memórias de Macau. Livros do Oriente, 2001
Aureliano C. da Rosa Barata. "Colégio D. Bosco" in Ditema. Dicionário Temático de Macau, Vol.I, 2010

domingo, 5 de dezembro de 2010

Gravura Antiga di Macau

Nhonha recebe com chá
E sab'roso surang-surave
As amigas do bafá,
Chacha-chacha nos seus dós,
De jeito gentil e grave,
Que chegam de riquexós.

Nhonha veste um baju leve
Moldando os limões do peito,
A que a mão do nhom se atreve.
Não receia as pei-pá-chais:
No escurinho do leito,
Ambos são risos e ais.

Nonha deixa o arrebique
Com face de loiça fina.
Passo breve, tique-tique,
Vai à janela, abre as reixas.
E, entre a boa e a má sina,
Diz amores e escuta queixas.

Nhonha compõe a saraça,
Sentadinha na cadeira,
Toda atenta ao que se passa,
Alegre de malinguar
Pés na frecura da esteira
Que a bicha cansa a esfregar.

(Que saudade, esta Macau
Que eu adivinho feliz,
Morando ali ao Lilau,
Com respeito, dengue e ardor:
Jardim de mulher-raiz
Com chiste de mulher-flor.)

Glossário:
Arrebique - toucador
Bafá - antigo jogo de cartas chinesas de Macau
Baju - blusa de pano fino
Bicha - criada ou escrava
Chacha-Chacha - mulheres velhas
Dó - manto ou mantilha preta
Malinguar - fazer má-língua
Mulher-flor - prostituta
Nhom - filho de europeu e de filha da terra
Nhonha - senhora filha da terra
Pei-pá-chai - cantadeira profissional
Saraça - pano de seda estampada que servia de saia
Surang-surave - doce típico de Macau 

António Manuel Couto Viana. Gravura Antiga di Macau 
in RC - Revista de Cultura, Nº 25 (II Série), Outubro / Dezembro, 1995

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

"Era quase uma ilha..."

Pormenor de um desenho de Carlos Marreiros 
para "O Topos Sagrado" L.S.C.
Mitografia de Macau (Série "A Cidade e o Poeta"), Macau, 1997
publicado na RC- Revista de Cultura, nº 34 (II Série) Janeiro / Março de 1998. 


" (...)
Para o "Porto de Macau na China", há especiais factores que confluem à necessidade  de sagraçõe do lugar, de projectar o céu e a terra, de convocar forças benéficas e repudiar influências nefastas. De fundar  a continuidade na mais remota memória.
Há, em primeiro lugar a consciência do estatuto precário do estabelecimento, que é constante ao longo dos séculos. A terra não é portuguesa. A cartografia refere Macau "nas partes da China". O senhor da terra é o Imperador da China. "Não estamos aqui em nossa terra, conquistada por nós, como são as mais fortalezas da Índia onde somos senhores (...) senão em terra do Rei da China, onde não temos um palmo de chão (...)" (Carta do Leal Senado de 1637). O chão tem de ser garantido pelo pagamento de um foro, sempre sujeito à negociação e à volubilidade do arrendatário."
(...)
"Assiste à origem do topos macaense a regra de que o que sacraliza um lugar é o seu isolamento (de isola, ilha)."Ce qui sacralise avant tout un lieu c'est la fermeture", Gilbert Durand. 
A tentação do isolamento é a tentação da pura razão. Delinear um círculo é concluir o receptáculo próprio à manifestação divina". 
(...)
"Toda a ilha é redonda, e idealmente se presta ao símbolo, à viagem da imagem para o conceito, por oposição contrastante ao elemento caótico que a circunda, da indiferenciação e do que não tem forma, das "águas inferiores" que não foram ainda penetradas do supremo espírito movente. Na ilha se dá a representação ou actualização do arquétipo, e as urbes, como outros microcosmos, são a projecção de geometrias celestes e expandem-se na declinação de círculos infinitos, sempre pressupondo a referência ao centro original."
"Depois de tantas deambulações por sedes efémeras, por certo que a escolha de Macau para o lugar do "assentamento", com expectativas de continuidade, obedeceu a razões de carácter e condições práticas. Oferecer o recorte adequado ao abrigo portuário, o acesso a abastecimentos, e a aguadas - foram com certeza as primeiras vantagens pragmáticas vistas na terra."
"Fisicamente, a geografia não é a de uma ilha, mas de uma península, cujo pequeno istmo lhe dá configuração de minúsculo pseudópode estirado à entrada do Rio das Pérolas."
"Mas figura na cartografia primeva, vulgarmente, como "ilha de Macau" ou "quase-ilha" (presqu'ile) de Macau.  A nosso ver, com clara intenção política de inculcar tranquilidade ao centro político do Império chinês; substante à cedência dos mandarins de Cantão residia o receio de intrusão dos fulangi em terra do continente, pelo que a autorização de fixação num lugar de comércio era dado para as ilhas do estuário. Pesados os factores, a península oferecia mais necessárias condições e era quase uma ilha..."
Excertos de "O Topos Sagrado. Esboço de Mitografia Macaense" de Luís Sá Cunha. RC - Revista de Cultura, nº 34 (II Série), Janeiro / Março, 1998.

Partie De L'Isle De Macao

Planta da Cidade e Porto de Macau, início do século XVII.
"Le Petit Atlas Maritime", 1767.
(in RC- Revista de Cultura, nº 34, 1998)