terça-feira, 29 de maio de 2012

Amacau



AMACAU 
Meu sonho  de povo cumpriu-se
em ti e por ti Amacau
não me lembro das naus em que vim
nem dos cais das outras partidas
nem das ondas revoltas do mar
naufragando minhas outras vidas 
só sei que aqui estou Amacau
tão longe de tudo o que fui
tão perto de tudo o que sou
minha barca meu berço veleiro 
meu túmulo talvez meu amor primeiro
porque primeiro é sempre o amor
que habita mais perto do sonho
e nos surpreende ainda com vida 
não me lembro das naus em que vim
nem dos cais das outras partidas
nem dos lutos das minhas outras mortes
nem das cores das minhas outras vidas 
meu sonho de povo cumpriu-se
em ti e por ti Amacau
meu berço e meu túmulo de pedra
minha nau. 
Dos Rios e Suas Margens. Macau, 1998.  
Poema de Carlos Frota e ilustração de Carlos Marreiros.

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (IX)

IX
Ao romper do dia


Emergindo da linha do infinito, o Sol apresentava-se claro e brilhante nessa manhã primaveril.
Já há muito tempo que a azáfama era grande na Bonzaria do Templo de "Tin-Hau" e a primeira refeição frugal, servida no jardim do templo, atraía, até junto de um bambual, grande número de bonzos, que rodeavam o Superior.
Este, abençoando as frutas de que consistia o primeiro repasto, dava início à refeição, provando um suculento pêssego. E a conversa iniciou-se, versando o tema de maior interesse do momento, o caso da imagem da Deusa do Céu.
Já nada há que recear! - disse o Superior. - Guardada como está a imagem na arca-forte do meu quarto, não creio que haja quem lhe chegue.
- E guardaste lá, porventura, a cautela da casa de penhor? - perguntou o bonzo Chan.
- Guardei-a, juntamente com mais algumas relíquias do Templo, como o célebre olho do Dragão perdido, pérola a que os entendidos nunca conseguiram estimar o valor - continuou o Superior.
- O roubo, no meu entender, teve apenas o carácter de devoção e nunca o interesse do valor - disse o bonzo Cheong. - Não achei, portanto, de necessidade o cuidado que tiveste mandando desprover a imagem dos brilhantes, que eram parte integrante do seu todo. - Perdoai-me, Senhor, que vos diga que a Imagem, que tendes guardada, não possui já o seu próprio valor espiritual que, residindo no todo, também residia nas partes. E, de resto, ornada de pedras falsas, ela será como um excelente campo de semeadura, que jamais produzirá, por lhe faltar a luz do Sol.
- Tendes razão! - atalhou o Superior. - Chan, na melhor intenção, deu-me o conselho, que de momento segui, por mera precaução, mas vejo agora que não nos cabia o direito de nos atrevermos a um tal procedimento. Para mais, segundo nos informou o guarda A-Chan, quem se encontra nesta cidade, vindo da terra do Templo de Á-Má, é um polícia e não um ladrão.
- Mas Senhor! - atalhou o bonzo Chan. - Quem se encontra nesta cidade é um polícia, é facto, mas um polícia que procura reaver o que foi roubado. Não lhe ficará mal à sua dignidade profissional usar de todos os meios ao seu alcance para apoderar-se da imagem. De resto, eu sei, por assim o ter ouvido dizer, que o polícia em questão é dos mais astutos e ousados, não sendo de estranhar, portanto, que a imagem possa ser roubada por ele, ou por alguém que venha do seu mando.
- E, admitindo a hipótese de que a imagem é roubada novamente deste Templo, - disse o Superior - de que nos servem os brilhantes que temos empenhados? Se a imagem for roubada, volta para o Templo de Á-Má e aí, em todo o seu esplendor, continuará a sua obra milagrosa. Mas, incompleta como está, - por um interesse que a nossa leviandade aconselhou, - pode perder o seu valor divino e não ser de utilidade a este ou a qualquer Templo que venha a possuí-la.
E, pensando, acrescentou: - Dizei vós todos, cujo conselho peço, se a imagem deve ou não ser conservada em todo o seu esplendor, com os dois brilhantes de real valor, que primitivamente ostentava?
Todos os bonzos se conservaram de cabeça baixa, e o mais velho, depois de fixar a fisionomia dos restantes, disse ao Superior: - Deve.
Então, o Superior, olhando o bonzo Chan, que não se atrevia a levantar os olhos do chão, disse:
- Chan! O teu conselho foi originado por uma intenção digna do maior louvor, porém, puseste os interesses da Terra acima do interesse do Céu. Desfaz a transacção, que ontem fizeste, e que amanhã, por esta hora, a imagem se nos mostre, como outrora, bela e esplendorosa.
Três fortes pancadas, dadas no gongo da Bonzaria, puseram termo à conversa, e os bonzos, precedidos do Superior, dirigiram-se, de cabeça baixa e olhos no chão, ao Templo, para darem início às orações da manhã.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Vila de Coloane: Rua dos Navegantes

A Rua dos Navegantes. Coloane, Maio de 2012


A Rua dos Navegantes, na Vila de Coloane, liga o Largo do Matadouro ao Largo do Cais. Nela fica situado o pequeno templo de Sam Seng, dedicado a três divindades: a Kun Iam, a deusa da Misericórdia, a Kam Fá, a deusa das flores douradas, protectora das mulheres e das crianças, e a Va Kuong, o deus do Fogo e patrono da ópera chinesa. 
Do lado do rio, as casas - espécie de palafitas - apoiadas em estacas, avançam pela água. Na rua, e também no Largo do Cais, dois ou três estabelecimentos de venda de peixe e marisco seco e salgado. Há também uma pequena mercearia. Numa porta, encerrada, perdura uma placa que nos indica que em tempos esteve ali um dos "lanes" de peixe ("lanes" ou "lán" são estabelecimentos que se destinam a servir de depósito de géneros alimentícios - fruta e legumes, peixe e marisco, etc. - e à sua venda por grosso).
À porta de uma das casas, um cão dorme. De dentro, chega-nos o ruído das pedras do mah jong. Ali joga-se, mas, mais à frente, há quem prefira colocar a cadeira no passeio, cavaquear com o vizinho ou simplesmente ler o jornal. 

 
Coloane, Maio de 2012


Vila de Coloane

Entardecer. Marginal da Vila de Coloane.
Maio de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (VIII)

VIII
Durante a noite

Lau-Sin, atravessando cautelosamente as ruas da cidade, regressou aos seus aposentos e, após uns ligeiros preparativos, que denunciavam uma intenção qualquer, apagou a luz e deitou-se.
De fora vinha o som dos mil e um pregões característicos das cidades chinesas, e a lua, rasgando a ténue cortina de humidade, projectava-se em lingueta de luz, pela estreita janela dos aposentos, deixando distinguir os objectos no claro-escuro do ambiente.
O polícia não dormia. Os seus pensamentos iam distantes, da realidade à conjectura, e as horas... passavam rapidamente.
Eram quase três horas da madrugada quando, muito suavemente, foi aberta a porta do quarto e, pé ante pé, alguém caminhou para o leito onde era de supor que Lau-Sin estivesse deitado. Um braço forte levou ao ar um punhal que com violência foi cravado no vulto, que se encontrava na cama.
Num instante, porém, o assassino caía de costas sobre o desconjuntado sobrado e, debaixo da cama, o hábil polícia, como um felino, lançava-se sobre ele, algemando-o depois de ligeiros momentos de luta.
Erguido de repelão, o assaltante foi forçado a sentar-se numa cadeira, que estava junto ao leito, e Lau-Sin, depois de tê-lo esmurrado com os seus punhos hercúleos, apontando-lhe uma pistola ao peito, falou-lhe assim:
- Julgavas que me apanharias desprevenido? Como te enganaste. Agora que estás aqui em meu poder e à mercê da sorte que eu te quiser dar-te, vais dizer-me o que desejavas deste quarto e porque vieste aqui tentar contra a minha vida.
Quis ainda o prisioneiro do hábil polícia resistir e conservar-se em silêncio mas, ante a determinação de Lau-Sin, ainda que hesitando, disse:
- Há anos, em Macau, fui preso devido aos eus esforços. Estive cinco anos preso e... quando me vi em liberdade jurei que poria termo à tua vida, quando tivesse oportunidade para tal.
Lau-Sin, rapidamente, atalhou:
- Foste tu, então, quem me seguiu na tarde de ontem por volta das 3 horas, na "Tai-Ma-Lou"?
- Enganas-te - respondeu o interrogado - Eu segui-te logo após a tua chegada.  Perdi-te de vista por entre a multidão... e só depois consegui averiguar que estavas aqui hospedado. Quis certificar-me se eras tu o homem que eu procurava; fiz uma rusga aos teus aposentos e, se bem que nada tivesse encontrado, que me desse a perceber que eras tu quem aqui se encontrava, certo que a minha memória não me atraiçoava, vim agora cá para te matar. Foste previdente, e mais do que eu esperava e, assim, só resta que me entregues à polícia local para que eu tenha o fim que têm os homens da minha qualidade.
Lau-Sin, num relance, mediu a situação e viu o partido que poderia tirar desse homem pela gratidão e, agarrando-o pelos ombros, disse-lhe cara a cara:
- Se eu te deixasse ir livre e não te entregasse à Polícia serias capaz de ficar ao meu serviço durante a minha estadia nesta cidade?
Dominado pela força hercúlea do polícia e pela sinceridade da sua pergunta, o homem respondeu:
- Ficarei ao teu serviço e espero que cumpras a tua promessa.
Lau-Sin, abrandando a sua expressão severa, disse então:
- Vou deixar-te em liberdade; mas se tentares fugir ou voltar a vingar-te de mim, matar-te-ei pelas minha próprias mãos.
- Eu nunca falto à minha palavra - disse o homem receoso de que o polícia se arrependesse da promessa feita.
- Pois bem! - disse Lau-Sin, tirando-lhe as algemas. - Amanhã, às 10 horas da noite, estarás no mesmo fumatório de ópio onde hoje estiveste. Lá nos encontraremos e receberás as minhas ordens.
O homem, vendo-se solto,não se retirou sem que dissesse admirado:
- Mas como sabes tu que eu hoje estive no fumatório de ópio?
Lau-Sin, dando-se ares de mistério, exclamou:
- Eu sei tudo quanto queira saber. - Vai! E amanhã te espero no local indicado.
Mal o homem se retirou, o astuto polícia, falando consigo próprio, disse:
- "Não me enganei na minha primeira conjectura. O homem, que me seguiu na "Tai-Ma-Lou", não era este e, portanto, há quem saiba na Bonzaria do Templo de "Tin-Hau" que estou nesta cidade. Preciso dobrar de cuidados".

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Floração das Acácias


Acácia Rubra. Taipa, Maio de 2012


"(...) e os meus olhos, alados, ébrios de luz, e fulvo, e verde

habitam lá no cimo das acácias."


Fernanda Dias. "Floração das Acácias".
in Horas de Papel. Colecção Poesia em papel-de-arroz, 1992


terça-feira, 22 de maio de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (VII)

VII
No Templo de "Tin-Hau"

Quando Lau-Sin, no seu disfarce de peregrino, se retirava do Templo, não ficou no espírito do Superior da Bonzaria qualquer dúvida da sinceridade do crente, que tão humildemente lhe pedira para ver, pela derradeira vez, a imagem da sua devoção.
Assim, como a noite se aproximasse, mandou fechar as portas de comunicação da Bonzaria para o Templo, deixando neste apenas o bonzo de serviço. E, enquanto lá fora os morcegos esvoaçavam de encontro ao arvoredo, quebrando o silêncio que pouco a pouco se acentuava, o Superior dizia ao bonzo Chan:
- Vejo com orgulho que continua, e se acentua ainda, a devoção pela Rainha do Céu. Este peregrino, que hoje veio visitar-nos, oferece-nos uma amostra bem clara dos sacrifícios de que é capaz um filho desta nobre província de Fu-Kien, pelo amor aos Deuses da sua devoção.
- Tendes razão - respondeu-lhe o bonzo Chan, seu interlocutor. - Porém, o acto que o devoto desta província praticou, pode muito bem vir a ser praticado também por um devoto da longínqua terra da porta da baía. Não acho esta arca com segurança bastante para guardar tão preciosa relíquia.
- Deixai! - exclamou o Superior. - Eu tenho nos meus aposentos, como sabeis, uma arca-cofre de ferro, cujo segredo do cadeado só de mim é conhecido. Pelo romper da alva, retiraremos dessa arca a preciosa imagem, prestar-lhe-emos o culto necessário e seguidamente será guardada em sítio onde a cobiça do homem não chegue.
- Lembrai-vos, porém, Senhor - exclamou Chan - que há dois valores a considerar na preciosa imagem: Um, o espiritual, e outro, o material, que reside principalmente nos dois brilhantes que servem de fecho à túnica da Santa. Ocorre-me, Senhor - e com isso não vejais o mais pequeno desrespeito - que bom seria desengastar as pedras e guardá-las com segurança numa casa de penhor, substituindo-as por pedras falsas, que dessem a impressão das verdadeiras. E, se mo permitísseis, iria agora mesmo a um ourives conhecido fazer a substituição, antes que amanhã tenhamos de arrepender-nos de qualquer demora.
- Fazei como entenderdes - disse o Superior. - Não acho de facto de desprezar a opinião. A gente de Macau é ousada, e o contacto com os portugueses dá-lhe ânimo incomparável. Bom é de facto que tomemos a precaução que indicais.
Fora, o gongo soava, indicando a hora do recolhimento, e o Templo projectava-se em silhueta plúmbea sobre o céu cinzento-claro, humedecido.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

segunda-feira, 21 de maio de 2012

"Uma Procissão Chinesa em Macau"

Legenda: Procissão que percorreu as ruas de Macau em 8, 9 e 19 de Julho de 1903 em honra de Kuang- Tai, custou o transporte pelas ruas, etc. - 37.000 patacas
Pormenor de um desenho de Filipe Emílio Paiva in Um Marinheiro em Macau - 1903 - Álbum de Viagens. Museu Marítimo de Macau, 1997



Uma Procissão Chinesa em Macau
"Anda nas ruas a procissão chinesa em honra do deus Kuang-ti, suponho que é o deus dos Exércitos, por isso durante estes três últimos dias de Julho de 1903, tem vivido, o bairro china, uma contínua agitação e barulho.
Vindos de Cantão, de Sam-Sui, de Hong Kong, de todas as ilhas, da Taipa, da Lapa, de Ma-lau-chau, Coloane, etc., estão continuamente a desembarcar das lorchas, juncos, tancás e vapores, milhares de forasteiros que, risonhos, de fatos ricos, se dirigem para os colaus, hospedarias e restaurantes chineses a tomar lugar, sobraçando leque, sombrinhas e maletas forradas de pele de porco, cestos e embrulhos. Talvez estejam mais de cem mil forasteiros.
No bairro china, ou Bazar, naquelas vielas e estreitas ruas, na Rua da Felicidade, na do Auto, na do Jogo, e noutras, acotovela-se gostosamente uma multidão alegre, de cabeças bem escanhoadas e de rabichos bem entrançados acabando em delicada borla de torçal negro, ou branco, se se está de luto.
Estala a panchonada, e os tantans soam por todas as ruas, vendedores ambulantes ajoujados sob o peso dos tabuleiros e canastras de bambu e rota atravessam a turba e fazem bom negócio com os bolos, frutas, refrescos, chá, sopas diferentes, carnes de porco, patos, galinhas, rodas de ananás, confeitos, pevides, amendoim, enfim mil comestíveis que se compram a ínfimas sapecas.
As pipa-t'-chai, ou sejam rapariguitas gentis que foram desde pequeninas educadas a saber cantar e tocar, e que adornam os colaus com as suas caritas pintadas e penteados cobertos de flores e de alfinetes de pérolas finas, falsas ou não, estrearam cabaias novas ornadas com desenhos e bordados exóticos, e andam doidas de contentes em grupos alegres, correndo nos jerinxás, de lenço bordado e lequezinho nas finas mãos de esfusiados deditos.
(...)
Mas vamos ver a procissão.
Ela aí vem coleando pelas ruas e vielas do Bazar, por entre alas de numeroso povo, a grande procissão exótica, ornamentada com andores esquisitíssimos, cheios de finos e delicados lavores em obra de talha, em cinzelamentos de pratas, em metais cobertos de penas de aves, de um azul-celeste, que lembram esmaltes, especialidade dos artistas cantonenses, coroados por mil figurinhas em gesso, em madeira, em prata, pintadas e arranjadas com arte e minúcia só chinesa.
Vão as corporações de ofícios, de criados de servir, de artistas, dos mainatas, dos bonzos, budistas, taoistas e confucionistas, que marcham ao som das músicas, agrupadas em torno de insígnias, estandartes, bandeiras e galhardetes farpados, matizados de ricos bordados  em cetim, em seda, em veludo, com os santos, heróis, guerreiros, figurados por rapazes vestidos à época dos Ming, cavalgando póneis ajaezados com fitas e flores."
(...)
Filipe Emílio Paiva. Um Marinheiro em Macau - 1903 - Álbum de Viagens. Museu Marítimo de Macau, 1997, p. 47-48.


Legenda: Foto Martha. Julho de 1903. Procissão china em Macau em honra de Kuang-Tai. Do lado direito, oficiais Hogan e Arnoso.
Filipe Emílio Paiva. Um Marinheiro em Macau - 1903 - Álbum deViagens
Museu Marítimo de Macau, 1997



Filipe Emílio Paiva (1871-1954), oficial da Armada e escritor, efectuou serviço em quase todas as possessões portuguesas, nomeadamente em Macau. Escreveu romances com o pseudónimo de Emílio de San Bruno, obtendo, em 1927, o primeiro prémio do Congresso de Literatura Colonial com o romance Zambeziana. Obteria o mesmo prémio, no ano seguinte, com o romance O Caso da Rua Volong, cuja acção se desenrola em Macau.

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (VI)

VI
Um pensamento mau

Lau-Sin, arrastando-se vagarosamente, abandonou as vizinhanças do Templo, certificando-se, de momento a momento, de que não era seguido, o que mais o convencia de que o seu disfarce era perfeito.
Contornando o casario próximo das travessas e vielas, que aliás lhe eram familiares, conseguiu alcançar a porta traseira da hospedaria, onde estava instalado, e cedo se encontrou nos seus aposentos.
Com grande espanto, porém, o hábil polícia notou que a sua bagagem tinha merecido as atenções de qualquer intruso, pois não havia uma única mala que não tivesse sido revolvida.
Na calma própria de polícia experimentado, Lau-Sin rapidamente se desembaraçou do disfarce, que tão bons serviços lhe prestara e, vestindo a sua longa cabaia, pôs uns simples óculos pretos, apertou bem à cinta as suas duas inseparáveis pistolas carregadas, e desceu, como um hóspede vulgar, ao vestiário. Aí, comprou um pacote de cigarros e perguntou ao empregado, que se encontrava ao balcão, - em ar de pessoa pouco conhecedora do meio, - onde poderia encontrar na cidade um bom fumatório de ópio, desejando de preferência um que fosse frequentado por armadores e gente do mar.
Indicado lhe foi o local, e Lau-Sin serenamente dirigiu-se à "Tai-Ma-Lou" onde, no segundo andar do prédio número 26, se instalou numa magnífica cama de ópio para assim descansar e poder melhor pensar no procedimento que deveria tomar, sempre aconselhado pela boa prudência.
Mal o ousado polícia se dispunha a preparar o seu cachimbo quando, de um compartimento vizinho lhe chega aos ouvidos a seguinte conversa, que lhe prendeu a atenção:
- "Perdi-o de vista, como por encanto, e não sei onde se meteu. Mais tarde, porém, fui à hospedaria e consegui entrar nos seus aposentos; vi-lhe toda a bagagem nada encontrei que me desse a certeza de que se trata dele. No entanto sou capaz de jurar que é ele, porque conheço-o bem e, além disso, ele não é figura que se confunda."
- "Toma, porém, cuidado, pois tens contra ti um adversário perigoso. A nossa crueldade dificilmente vencerá a sua astúcia e, para mais, estou informado de que ele é amigo íntimo do chefe da polícia local, ao qual certamente recorrerá, no momento em que precise do seu auxílio."
- "Eu desejava encontrá-lo em sítio onde pudesse fazer pagar-lhe, de uma vez para sempre, os anos que passei na cadeia de Macau."
- "Mas que viria ele cá fazer?"
- "Não faço ideia."
Mais algumas palavras foram trocadas e os dois homens retiraram-se, deixando Lau-Sin entregue aos seus próprios pensamentos, raciocinando deste modo:
- Vejo que o homem, que me seguiu, nada tem a ver com o roubo do tesouro que aqui me trouxe e que, portanto, foi quase por acaso que cheguei a descobrir o paradeiro da imagem. Mas se sabem apenas que eu estou cá e ignoram o fim que cá me trouxe, porque não hei-de eu atrever-me a apoderar-me do que foi roubado mo nosso Templo de Macau? É certo que um tal procedimento talvez não pareça próprio de um polícia, porém, o meu dever é reaver a imagem que pertence ao culto do Templo de Á-Má, imagem que tão venerada é pela população marítima de Macau. Será talvez empresa arriscada, mas não é certamente impraticável.
E, subitamente, levantando-se, pagou a conta que lhe foi apresentada, e retirou-se.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Pagode da Barra

"Pagode da Barra (mà cáo) da particular devoção dos marinheiros"
Fotografia do álbum Um Marinheiro em Macau -1903 - Álbum de Viagem de Filipe Emílio de Paiva.
Museu Marítimo de Macau, 1997

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (V)

V
Um estratagema policial

Passou-se o resto do dia sem o que quer que fosse que interessasse ao nosso caso, a não ser a aparecimento, que foi notado na Hospedaria onde Lau-Sin se encontrava instalado, de indivíduos de aspecto duvidoso, como que em procura de alguém.
Lau-Sin, confinado aos seus aposentos, raciocinava deste modo:
"Tin-Hau é a mesma divindade que Á-Má e, em Macau, não se sabe como apareceu a imagem no Templo da Barra. - Quem sabe se ela pertenceu primitivamente ao Templo de "Tin-Hau", de Fu-Chau, e deste foi levada ou roubada, vindo a aparecer, por promessa ou superstição, no templo de Macau? - E quem me diz que a imagem foi roubada e trazida para o Templo, onde primitivamente se apresentava orgulhosa à adoração dos fiéis? - Não tenho dúvidas, pelo destino que levou o homem que me seguiu, de que a imagem está nesta cidade e no Templo de "Tin-Hau".
Findas estas deduções, aliás muito inteligentemente feitas, Lau-Sin abriu a sua mala de viagem e, após uns rápidos momentos, necessários ao disfarce que julgou convir-lhe, pela porta de trás da Hospedaria via-se sair um mendigo andrajoso, que ninguém diria ser o vigoroso e inteligente chefe da Polícia de Macau.
Contornando o quarteirão, veio à porta principal da Hospedaria pedir esmola, para assim se certificar da perfeição do seu disfarce e, como tivesse sido tratado com a rudeza e falta de caridade com que geralmente são tratados os mendigos, tomou o rumo que lhe convinha em direcção do Templo.
Chegado ao terreiro do Templo subiu vagarosamente e com dificuldade a escadaria e, no átrio, caiu como prostrado pela fadiga, implorando a caridade dos fiéis e vendilhões que próximo se encontravam.
Como seus rogos não fossem atendidos, foi-se arrastando pelo Templo até chegar junto ao Altar de Tin Hau.
Aí, certificou-se de que a imagem não era a que procurava e deixou-se ficar, por alguns momentos, em adoração.
Arrastando-se com dificuldade, foi até junto do recinto das promessas e, dirigindo-se ao bonzo, que ali se encontrava, disse-lhe que desejava falar ao Superior da Bonzaria; que era um peregrino que vinha de longe e que trazia boas novidades para a Bonzaria de Tin Hau.
Ainda que com alguma relutância, o bonzo conduziu-o ao interior da Bonzaria, onde se encontrou em frente do Superior.
Feitos os cumprimentos do estilo, o suposto mendigo falou assim:
- Senhor, que tendes à vossa guarda este Templo admirável onde em criança me habituei a orar! Parti há anos para terras distantes e, à porta deste Templo sagrado, jurei que só regressaria quando pudesse trazer comigo a imagem de Tin Hau, há tantos anos roubada. - Senhor! Após as maiores privações, que passei por terras distantes onde o Sol não tem o mesmo brilho com que se apresenta nesta privilegiada Província de Fu-Kien, encontrei no Templo de Á-Má, em Macau, a imagem dos meus sonhos.
Foi na véspera do Ano Novo Chinês. Choviam lágrimas imensas do Céu, e o Templo regurgitava de fiéis.
Aguardei pacientemente, como um farrapo atirado a um canto do Templo, que o momento propício se aproximasse. - Esperei! Passou-se a véspera, e já passado estava o dia do Ano Novo, quando, na madrugada do dia dois, julguei ter chegado o momento de cumprir a promessa, que tinha feito.
- Dirigi-me aos aposentos do bonzo, que tinha a imagem à sua guarda. Entrei vagarosamente e - oh! fatalidade! - O bonzo tinha sido assassinado e a imagem roubada, antes que eu pudesse apoderar-me dela. - Voltei para um canto do Templo e, como mendigo, ali me deixei ficar até que no dia seguinte vi que todos já tinham dado pelo roubo e pelo assassinato e que um polícia se dispunha a procurar o criminoso. - Desesperado, pedi abrigo num junco de pesca e, de porto em porto, só agora consigo chegar junto a vós para vos pedir que me dispenseis da promessa que fiz, pois estou velho e sem forças, e incapaz portanto de levar a cargo a obrigação que me impus. - Senhor! Se é possível que o castigo do Céu não caia sobre mim, dispensai-me!
O Superior, ante as lágrimas do peregrino, que corriam sentidas pela sua rugosa face, disse-lhe:
- Não foste só tu quem à Rainha do Céu fez a promessa, que julgas não ter sido cumprida. Outros tomaram sobre si o mesmo encargo e, mais felizes, levaram a cabo o seu desejo. A imagem de Tin Hau encontra-se neste Templo e, assim, podes dar por cumprida a tua promessa.
- Senhor! - exclamou o peregrino - Posso morrer sossegado. - Consenti, porém, que neste ocaso da vida possa, antes de perder a luz dos olhos, ver, pela derradeira vez, a Santa da minha devoção.
O Superior, comovido, disse:
- Satisfarei gostosamente o teu pedido.
Foi então aberta uma arca, e dela surgiu a imagem de Tin Hau em todo o seu esplendor.
O peregrino, reverente, orou junto à imagem e, beijando as mãos ao Superior, retirou-se comovido, vindo deitar-se a descansar, junto à porta do Templo.
A noite aproximava-se e o peregrino, após uns momentos de descanso, retirou-se, descendo lentamente a escadaria, que dava acesso à Bonzaria.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949



quinta-feira, 17 de maio de 2012

Herculano Estorninho

Templo de A Má, 1953

Cais e Juncos, 1963

Meia Laranja, 1992

Rua de Macau, 1993

Sobre Herculano Estorninho, e retirado do Projecto Memória Macaense:

Herculano Estorninho, uma das maiores expressões do meio artístico macaense, nasceu em 1° de Abril de 1921.  Foi considerado um dos grandes pintores portugueses das últimas décadas.  A sua afeição ao mundo exterior está bem vincada na obra artística que deixou descrita pelo próprio, como "um dom de Deus".Os seus trabalhos estão representados nos quatro cantos do mundo.  Em coleções particulares de Macau, França, Itália, Japão, Brasil, Timor Leste, Filipinas, Estados Unidos, Austrália, Suécia, Alemanha, Madeira e Portugal.  Seus quadros estão expostos nos Palácios de Belém e de São Bento, em Portugal, e na Casa de Macau em Lisboa, que foi a primeira sala portuguesa a exibir os seus trabalhos, em Setembro de 1971.Aos 73 anos de idade, passou para a eternidade.  No entanto, a sua obra perdura no seio da cultura portuguesa.  Fica a memória de uma "árvore" que - tal como as muitas que retratou na suas telas - "morreu de pé".

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (IV)



IV
Uma suspeita que se justifica

Não era, porém, Lau-Sin homem que desanimasse às primeiras contrariedades e, munido da licença necessária e de tudo quanto lhe era preciso, partiu no dia onze da segunda Lua, com destino a Fu-Chau.
A viagem decorreu sem qualquer incidente e, logo que chegou à cidade, Lau-Sin dirigiu-se à Hospedaria "A-Chau", situada na Avenida Marginal, tendo-se instalado num quarto modesto do segundo e último andar.
Conhecedor, como era, da cidade e amigo íntimo do chefe da Polícia local, começou imediatamente, incógnito, a inspeccionar os livros de registo das hospedarias mais conhecidas, indagando da proveniência dos hóspedes registados havia cerca de um mês e meio.
Ao sair da Hospedaria "In-Teng", uma das mais frequentadas, o experimentado polícia teve o pressentimento de que estava sendo seguido por alguém e, fingindo-se desprevenido, ao virar a primeira esquina que encontrou, correu apressado e ocultou-se no vão da primeira porta que se lhe deparou.
A suspeita confirmava-se: Viu chegar apressadamente um homem, que hesitou à embocadura da rua, olhando como em procura de alguém, o qual ocultava o rosto com uma ventarola de penas, que o tempo, ainda frio, não exigia.
Sem ser visto, Lau-Sin fixou o aspecto do homem em questão, e determinou certos sinais pelos quais poderia reconhecê-lo em outro qualquer momento, sem dificuldade.
O homem, tendo perdido a pista do polícia, encaminhou-se precipitado pela rua adiante e Lau-Sin, com a calma própria de polícia experimentado, começou cautelosamente a seguir-lhe os passos.
Ao fim da rua estreita e tortuosa, surgia, como amplo porto ao fundo de um canal, um extenso descampado que dava vista sem limite às estreitas e gradeadas janelas do Templo de "Tin-Hau" que o dominava de sobre um pequeno morro, que se erguia a pino da linha do casario último da rua que terminava.
Dava acesso à Bonzaria uma pequena escadaria em ziguezague e, no momento em que o polícia chegou ao fim da rua, viu o homem, que perseguia, galgar os degraus a dois e dois, num à vontade que bem denunciava quão familiar lhe era o local.
Em face da prudência, que o momento aconselhava, Lau-Sin retrocedeu e vagarosamente dirigiu-se à hospedaria, onde estava instalado, para descansar desse árduo dia de trabalho e pensar maduramente no que deveria fazer, a fim de investigar o que se passava.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

À espera

"À espera" 
Acrílico sobre tela, 2005

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (III)


Porto Interior, cerca de 1909
in João Loureiro. Postais Antigos de Macau. 3ª Edição, 2005


III
Na pista do criminoso

Saído do Templo, Lau-Sin dirigiu-se imediatamente à Hospedaria "Man-Heong", onde se encontrou com o subchefe da Polícia, o chinês Leong, a quem deu ordens no sentido de ser feita uma rusga imediata aos barcos que se encontravam no porto.
Em pequenos barquinhos dirigiu-se a Polícia aos barcos chineses e a rusga foi feita com todo o cuidado, nada se encontrando que pudesse deixar perceber que houvesse esperanças de encontrar o criminoso.
Já tinham sido dadas ordens, pela autoridade competente, para que fosse revistado todo e qualquer que pretendesse sair da Colónia e, no dia seguinte, tudo indicava que o criminoso ainda se encontrava na Cidade.
Lau-Sin, prevendo que a fuga do criminoso se tivesse realizado antes de ter sido ordenada a rusga, telegrafou para Hongkong ao chefe da Polícia chinesa da vizinha colónia, pedindo-lhe que procurasse, por qualquer meio, entre os passageiros, que à colónia chegassem em barcos chineses, o assassino, o que conseguiria  por busca às bagagens, onde talvez se encontrasse a imagem.
Continuaram as rusgas e as buscas às casas de penhor, por alguns dias, sem que, porém, o mais pequeno vestígio se encontrasse da passagem do criminoso, por onde quer que fosse.
De Hongkong não chegavam notícias, e da Polícia de Cantão, que também tinha sido avisada, nada se ouvia que pudesse alimentar uma esperança.
Parecia um caso perdido, como muitos, o do Tesouro do Templo de A-Má.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Lio Man Cheong

Templo de Lin Kai, 2005

Campo desportivo de Tap Seac, 2005
Aguarelas de Lio Man Cheong


Membro da Associação de Belas Artes de Macau, Lio Man Cheong nasceu em 1951, em Zhuhai, China. Participou em diversas exposições de arte e de pintura em Macau, Portugal, Canadá e em vários países asiáticos.  Em 1991 ganhou o 1º prémio do concurso de desenho de selos subordinados aos temas "Deuses da China e "Templos de Macau". Em 1993 obteve o Prémio de Arte de Melhor Selo de Macau, atribuído pela Sociedade de Filatelia de Portugal. Recebeu o 1º prémio de pintura na 4ª Bienal de Arte de Macau.




Oriente


Desabrochou em flor rara.
Frágil e nua
como flor
de qualquer jardim.
Oh, quem ma arrancasse,
ébria de lua,
e a desse de presente a um mandarim.


 Maria Ondina Braga. Passagem do Cabo. Editorial Caminho, 1994

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (II)

II
O crime

Nesse tempo, na velha cidade de Macau, funcionava ainda a Procuratura dos Negócios Sínicos, e era constante a cooperação entre o Procurador e o Administrador do Concelho em muitos assuntos de interesse citadino, podendo considerar-se como de maior importância o respeitante à investigação criminal.
O chefe da Polícia de Investigação era o chinês Lau-Sin, homem experimentado e destemido, muito considerado entre os chineses categorizados da Colónia.
Ao contrário do que era de esperar, o vento rodou para Norte e, desviando da cidade as nuvens chuvosas, abriu caminho ao Sol que, nesse dia dois da primeira Lua, surgiu  claro e brilhante, atenuando com o calor dos seus raios a gelada aragem que corria.
Era ainda feriado em todo a cidade, menos na Procuratura e na Administração, que velavam pela segurança pública.
Dois polícias, despachados a toda a pressa, chamavam com urgência o Procurador, porque um crime de assassinato tinha sido praticado no Templo de Á-Má - à Barra - crime que se ligava ao desaparecimento do Tesouro da Bonzaria.
A arca encontrava-se aberta com os fechos quebrados e, caído junto à parede e por detrás da arca, o velho bonzo Lau, de bruços, premia, de encontro ao lajedo, o cabo de um punhal, que lhe estava bem cravado no peito.
Nada indicava que tivesse havido luta, e o rosto já frio do bom velho deixava transparecer uma ideia fixa de profundo pesar.
Cumpridas as formalidades legais, o cadáver foi removido para o Hospital Chinês, a fim de ser autopsiado, e no local ficou apenas o chefe Lau-Sin que começou a examinar com todo o cuidado a arca e os fechos quebrados até que, arrancando de um deles uma pequena corrente de ouro que segurava um sinete de iôk, chamou o Superior e perguntou-lhe:
- Pertence a este Templo, ou a algum de vós, este sinete?
O Superior, examinando o sinete com a maior atenção, disse:
- Nem ao Templo nem a nenhum de nós, porém, não me é inteiramente desconhecido. Estes dizeres são simbólicos e, não só por este motivo, como ainda pelo seu formato, concluo facilmente que deve pertencer a um chinês da Província de Fu-Kien.
- Pois bem! - exclamou o polícia. - Este sinete pertence ao assassino que, ao debruçar-se para abrir a arca, depois de ter assassinado o velho Lau, por descuido prendeu um elo da frágil corrente de ouro numa aresta do fecho forçado, quebrando a corrente ao erguer-se, quando abria a arca, com o que fez tombar para trás o corpo do assassinado, que caiu de bruços e sobre o punhal, que lhe havia sido cravado no peito.
E, pensando durante uns segundos, continuou:
- Gente da Província de Fu-Kien é geralmente gente do mar. O assassino deve estar entre a população fluvial da Colónia.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional,1949


Colégio de Bonzos
Bilhete Postal editado pela Procuradoria das Missões. Braga, c. de 1940
in João Loureiro. Postais Antigos de Macau


terça-feira, 15 de maio de 2012

Templo de A-Má

Templo de A-Má
Desenho de Chan Chi Lek

Colecção de bilhetes postais com desenhos de Chan Chi Lek
Publicação do Centro Unesco de Macau e Fundação Macau

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (I)


O Caso do Tesouro do Templo de "Á-Má", novela de Francisco de Carvalho e Rêgo, foi inicialmente publicada na Revista Renascimento com o pseudónimo de Frank Moth. 
Nesta edição (Macau, Imprensa Nacional, 1949), refundida e aumentada, o autor refere que a novela não nasceu de mera fantasia, porque são reais as suas personagens, como real é o simples entrecho que fielmente conservei na intenção única de reviver, tanto quanto possível dentro da verdade, um caso que foi muito falado e que a crueldade do tempo fez esquecer.


Não há antigo residente desta colónia de Macau que não tivesse conhecido o chinês Lau-Hong-Sin, chefe da Polícia de Investigação Criminal, decidido detective a cuja inteligência e astúcia, aliadas a grande amizade a Portugal, muito deveu esta cidade, pela tranquilidade e sossego, que sempre desfrutou.
(...)
Foi numa tarde chuvosa de um quente dia de Verão que o destemido polícia me contou, a traços ligeiros, a façanha que aqui deixo em pequena novela descolorida, sem dúvida, mas plena de verdade (...). 

Francisco de Carvalho e Rêgo (Coimbra, 1898 - Lisboa, 1960), viveu em Macau cerca de 40 anos. Autor de várias obras, entre as quais se destacam o romance policial O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (1949), Da Virtude da Mulher Chinesa (1949), Cartas da China (1949) e Macau (1950), colaborou com Jack Braga e Charles Boxer em várias obras dedicadas a Macau. Com uma actividade cultural diversificada, Francisco de Carvalho e Rêgo, também conhecido por Francisco Penajóia, foi ainda fundador da Rádio local, estando também ligado à criação da Academia de Teatro e Música e da revista Renascimento.


O Caso do Tesouro do Templo de "Á-Má"

I 
No Ano Novo Chinês

Há cerca de quarenta anos, numa noite fria e molhada de Fevereiro, parecia interminável a romaria de fiéis que ao Templo de Á-Má se dirigiam para agradecer os benefícios recebidos durante o ano que findava e pedir felicidade e prosperidade para o ano a chegar.
A população marítima dos Tous, Tèangs e Tancás, ancorados no porto interior, não cessava de dar graças ao Alto, e as oferendas e promessas iam sendo registadas pelos bonzos do Templo, que rejubilavam de tanta fé.
O tesouro do templo estava exposto aos olhos dos fiéis, e tantas eram as oferendas, que algumas tiveram de ser recolhidas no interior, antes mesmo de terminada a cerimónia.
Consistia o tesouro numa imagem em bronze e ouro da Santa Venerada. A túnica, que a envolvia, toda de ouro, era debruada a rubis e esmeraldas, prendendo em laço, junto ao peito, por um fecho que consistia de dois brilhantes, aos quais, os entendidos atribuíam um valor extraordinário.
Não era muito antiga a imagem e nem mesmo os bonzos sabiam dizer quem a oferecera ao Templo.
Dizia a lenda, bem recente, que uns anos antes, por ocasião de uma terrível trovoada, que caíra sobre a cidade, uma faísca atingira o altar e, logo que o fumo desaparecera, a imagem surgira, para espanto e admiração dos velhos bonzos.
No interior do Templo, havia uma velha arca de pau-preto, marchetada de cobre, que fechava com velhos cadeados de segredo, onde a imagem era guardada, findas as cerimónias, arca que estava a cargo do velho bonzo Lau, que por ela daria a vida, se necessário fosse, tão grande era a honra de ter à sua guarda a venerada relíquia.
Já do lado nascente uma ténue claridade anunciava a chegada do dia e não terminava ainda o aparecimento de novos fiéis que, com a maior devoção, vinham orar junto à preciosa imagem.
Assim passou o dia do Ano Novo, com grande azáfama para a Bonzaria, até que o Sol, sempre encoberto, se deixou tapar por densa treva, molhada como a da véspera.
Chegara a noite e os bonzos, fatigados, recolheram o tesouro, que baixou à velha arca, deixando o Altar da esplanada do Templo aberto e abandonado à guarda dos fiéis.
O velho bonzo Lau, ao despedir-se do Superior da Bonzaria, disse-lhe contristado:
- Tenho andado todo o dia de hoje preocupado. Há qualquer coisa que não me deixa respirar bem. Pressinto desgraça e não sei como evitá-la.
- Não vejo razão para tanto - assim lhe disse o Superior - O nosso povo é crente e os castigos do Céu não descem aos que não ofendem a Deus.
- Preferia não dormir e ficar de vigília, toda a noite, ao nosso tesouro, a ter de me arrepender amanhã de qualquer descuido, por não escutar esta voz que me fala cá dentro e que me diz que alguma desgraça vai acontecer.
- Fazei como quiserdes - respondeu-lhe o Superior. - Lembrai-vos, porém, de que sois velho e de que não tendes força para resistir a tanta fadiga.
O gongo soou fora.
Eram três da madrugada.
Lau, o velho bonzo, ficando só nos aposentos, passeou agitado de um para outro lado e, certificando-se de que a arca estava bem fechada, deitou-se sobre ela, utilizando um tosco lenho, que encontrara no chão, para travesseiro.
A fadiga venceu o desejo do bom velho de permanecer acordado e, de mãos cruzadas sobre o peito, adormeceu.
Fora, o Céu abria-se em catarata e a água batia às chapadas na laje polida do átrio do Templo.
Um estralejar de pauchèong ouvia-se de quando em quando e, quando a chuva abrandava, era lúgubre o chiar dos remos das barcaças, que ainda se moviam no rio.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Lago Nam Van


Lago Nam Van, Maio de 2012