sexta-feira, 18 de maio de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (V)

V
Um estratagema policial

Passou-se o resto do dia sem o que quer que fosse que interessasse ao nosso caso, a não ser a aparecimento, que foi notado na Hospedaria onde Lau-Sin se encontrava instalado, de indivíduos de aspecto duvidoso, como que em procura de alguém.
Lau-Sin, confinado aos seus aposentos, raciocinava deste modo:
"Tin-Hau é a mesma divindade que Á-Má e, em Macau, não se sabe como apareceu a imagem no Templo da Barra. - Quem sabe se ela pertenceu primitivamente ao Templo de "Tin-Hau", de Fu-Chau, e deste foi levada ou roubada, vindo a aparecer, por promessa ou superstição, no templo de Macau? - E quem me diz que a imagem foi roubada e trazida para o Templo, onde primitivamente se apresentava orgulhosa à adoração dos fiéis? - Não tenho dúvidas, pelo destino que levou o homem que me seguiu, de que a imagem está nesta cidade e no Templo de "Tin-Hau".
Findas estas deduções, aliás muito inteligentemente feitas, Lau-Sin abriu a sua mala de viagem e, após uns rápidos momentos, necessários ao disfarce que julgou convir-lhe, pela porta de trás da Hospedaria via-se sair um mendigo andrajoso, que ninguém diria ser o vigoroso e inteligente chefe da Polícia de Macau.
Contornando o quarteirão, veio à porta principal da Hospedaria pedir esmola, para assim se certificar da perfeição do seu disfarce e, como tivesse sido tratado com a rudeza e falta de caridade com que geralmente são tratados os mendigos, tomou o rumo que lhe convinha em direcção do Templo.
Chegado ao terreiro do Templo subiu vagarosamente e com dificuldade a escadaria e, no átrio, caiu como prostrado pela fadiga, implorando a caridade dos fiéis e vendilhões que próximo se encontravam.
Como seus rogos não fossem atendidos, foi-se arrastando pelo Templo até chegar junto ao Altar de Tin Hau.
Aí, certificou-se de que a imagem não era a que procurava e deixou-se ficar, por alguns momentos, em adoração.
Arrastando-se com dificuldade, foi até junto do recinto das promessas e, dirigindo-se ao bonzo, que ali se encontrava, disse-lhe que desejava falar ao Superior da Bonzaria; que era um peregrino que vinha de longe e que trazia boas novidades para a Bonzaria de Tin Hau.
Ainda que com alguma relutância, o bonzo conduziu-o ao interior da Bonzaria, onde se encontrou em frente do Superior.
Feitos os cumprimentos do estilo, o suposto mendigo falou assim:
- Senhor, que tendes à vossa guarda este Templo admirável onde em criança me habituei a orar! Parti há anos para terras distantes e, à porta deste Templo sagrado, jurei que só regressaria quando pudesse trazer comigo a imagem de Tin Hau, há tantos anos roubada. - Senhor! Após as maiores privações, que passei por terras distantes onde o Sol não tem o mesmo brilho com que se apresenta nesta privilegiada Província de Fu-Kien, encontrei no Templo de Á-Má, em Macau, a imagem dos meus sonhos.
Foi na véspera do Ano Novo Chinês. Choviam lágrimas imensas do Céu, e o Templo regurgitava de fiéis.
Aguardei pacientemente, como um farrapo atirado a um canto do Templo, que o momento propício se aproximasse. - Esperei! Passou-se a véspera, e já passado estava o dia do Ano Novo, quando, na madrugada do dia dois, julguei ter chegado o momento de cumprir a promessa, que tinha feito.
- Dirigi-me aos aposentos do bonzo, que tinha a imagem à sua guarda. Entrei vagarosamente e - oh! fatalidade! - O bonzo tinha sido assassinado e a imagem roubada, antes que eu pudesse apoderar-me dela. - Voltei para um canto do Templo e, como mendigo, ali me deixei ficar até que no dia seguinte vi que todos já tinham dado pelo roubo e pelo assassinato e que um polícia se dispunha a procurar o criminoso. - Desesperado, pedi abrigo num junco de pesca e, de porto em porto, só agora consigo chegar junto a vós para vos pedir que me dispenseis da promessa que fiz, pois estou velho e sem forças, e incapaz portanto de levar a cargo a obrigação que me impus. - Senhor! Se é possível que o castigo do Céu não caia sobre mim, dispensai-me!
O Superior, ante as lágrimas do peregrino, que corriam sentidas pela sua rugosa face, disse-lhe:
- Não foste só tu quem à Rainha do Céu fez a promessa, que julgas não ter sido cumprida. Outros tomaram sobre si o mesmo encargo e, mais felizes, levaram a cabo o seu desejo. A imagem de Tin Hau encontra-se neste Templo e, assim, podes dar por cumprida a tua promessa.
- Senhor! - exclamou o peregrino - Posso morrer sossegado. - Consenti, porém, que neste ocaso da vida possa, antes de perder a luz dos olhos, ver, pela derradeira vez, a Santa da minha devoção.
O Superior, comovido, disse:
- Satisfarei gostosamente o teu pedido.
Foi então aberta uma arca, e dela surgiu a imagem de Tin Hau em todo o seu esplendor.
O peregrino, reverente, orou junto à imagem e, beijando as mãos ao Superior, retirou-se comovido, vindo deitar-se a descansar, junto à porta do Templo.
A noite aproximava-se e o peregrino, após uns momentos de descanso, retirou-se, descendo lentamente a escadaria, que dava acesso à Bonzaria.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949



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