terça-feira, 12 de setembro de 2006

Macau di Tempo Antigo: «Tancás e Marinheiros»

«Entre os usos curiosos da vida de bordo em Macau, figura o tancá. Nas outras estações, para o serviço com a terra, há naturalmente os escaleres do navio: escaler dos oficiais, bote do estado-menor, bote das compras, escaler de licenças aos domingos; largando, recolhendo a horas determinadas, obrigando todos a uma fastidiosa dependência. Em Macau, mercê dos pequenos barcos indígenas, que formigam no rio aos cardumes, aquelas carreiras dispensam-se; o próprio comandante, oficiais, marujada, todos têm o seu tancá privativo, a troco de magras pratas; e os escaleres, com grande gáudio dos imediatos, permanecem ordinariamente içados nos turcos, asseados e pintadinhos, que é um regalo vê-los. De modo que é observação que sempre impressiona novatos, o enxame de barquinhos que a toda a hora rodeiam os navios de guerra fundeados no porto, como vermes parasitas. E a circunstância mais exótica deste uso é que, sendo os tancás tripulados por mulheres, estabelece-se assim uma contínua relação entre os dois sexos, gente de bordo e tancareiras, caso realmente único em vida de convés.
Nada mais curioso, mais inesperado, do que estes rostos de sereia de nova espécie, assomando às vigias dos camarotes e das câmaras, falando para dentro, interrogando, perguntando-nos a que horas vamos para terra, ou pedindo-nos uma laranja da nossa sobremesa: rostos sem beleza nem frescura, curtidos aos rigores do tempo, mas onde apesar disso brilha por vezes um olhar doce de fêmea, carinhoso e suplicante. Pobres tancareiras, agarradas desde a infância ao remo que as sustenta, regeladas no Inverno pela brisa da monção, tisnando ao sol ardente do Estio, ensopando as cabaias na onda dos chuvascos! Pobres párias do mundo! Queremos-lhes todos. Que são elas afinal, senão as nossas companheiras de trabalhos, uma parte integrante das guarnições dos nossos navios?
Vivendo longos dias nos tancás amarrados à popa da nossa canhoneira, fazem-nos assistir à sua íntima labuta, cuidando da pobre casa flutuante, remendando andrajos, lavando as crianças, preparando a cozinha. Vemo-las pentear as negras tranças, comer o seu arroz, implorar aos deuses. De quando em quando levantam-se azedas disputas, resolvidas a murro, e não é raro ter de intervir a autoridade, admoestando o femeaço como se tratasse de grumetes balhões.
(...)
É aos domingos que o bando de tancás moureja mais. Vinte ou trinta soi-sau-quai, diabos com as mãos na água (é esta a picaresca denominação chinesa), vestem a melhor farpela, escovam-se, engraxam-se, alisam as melenas, dispondo-se a ir afogar em oito horas de folia o mau humor de uma semana inteira de trabalho. Os tancás aguardam a curta distância. Soa a hora de embarcarem as licenças. Aí vão eles, chape, chape, pompejantes de alegria; ao largo, soltam-se de dentro expansões em grande berra, natural desforço de quem a bordo só pode falar baixinho; ri-se, canta-se; e lá de quando em quando um gritinho agudo vem acusar melindres ofendidos por algum galanteio mais pesado daquelas mãos alcatroadas, que palpam, e beliscam, sem cerimónias». [Março de 1892].
Wenceslau de Moraes. «Tancás e Marinheiros», in Traços do Extremo Oriente. Parceria A.M.Pereira. 2ª edição, 1971

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