terça-feira, 22 de maio de 2007

Festeja-se um deus budista, levanta-se um grande barracão

«Ali para os lados do povo de Patane, defronte do pagode de Ling-Cae, festeja-se um deus budista, levanta-se um grande barracão para representações teatrais. É sempre este o pretexto. As confrarias, no louvável propósito de divertirem os santos e de angariarem pecúlio, escolhem os dias memoráveis, que põem em alvoroço os fiéis, para erguerem teatros e contratarem companhias; o local é a rua, geralmente o terreno plano, que de regra defronta com o templo.
O teatro é uma vasta construção de bambu, coberta depois de colmo e esteiras; ergue-se em quatro ou cinco dias, e em igual tempo se desfaz, no fim da festa; tão sólido que resiste aos embates de milhares de curiosos, embora não se aplique um único prego, um único parafuso, ligadas tábuas e varas simplesmente por fibras de rotim. Ao fundo levanta-se o estrado para a cena; de cada lado um outro grande estrado, para os espectadores, divididos por sexos; e fica ao centro um espaço livre, descoberto, para a ralé que não paga, e que por ali irrompe, numa onda compacta de muitas centenas de cabeças.
(...)
Estudemos a cena. Não há bastidores, não há quase cenário; o espectador, advertido por certas convenções, um bambu figurando um cavalo, um cortinado figurando uma cama, tem de imaginar o resto; árvores em jardins, portas de entrada, escadarias, aqui uma ribeira, além uma colina, tudo se imagina. Não há actrizes (*); os papéis de mulheres são dados a homens, educados no disfarce; sendo tido por incompatível o belo sexo com a profissão, julgada ínfima. A música, a um canto, atordoa os ares, e ao compasso das suas flautas, dos seus atãs, ergue-se a voz intencionalmente em falsete dos figurantes, acompanhada dos gestos mais bruscos, das mímicas mais truanescas, que parecem constituir a suprema perfeição destes excêntricos. E contudo, ouvida a peça, traduzida por um meu companheiro prático na língua e nos costumes, mais uma vez me convenci de que não há originalidades; os povos destacam-se uns dos outros pela sua aparência, por simples divergências superficiais; no fundo, no seu modo de sentir, mostram-se sempre irmãos. Imaginem que estas estranhas representações, que tanto impressionam a nossa curiosidade de ocidentais, dariam, com um mero trabalho de tradução e adaptação, excelentes operetas para a Trindade, ao puro sabor dos alfacinhas». [Dezembro de 1890]
Wenceslau de Moraes. «Na Rua». Traços do Extremo Oriente. Parceria A. M. Pereira, 2ª edição, 1971

(*) Até 1901, só aos homens era permitido serem actores; foi em Xangai, que nesse ano, surgiu a primeira companhia de teatro, exclusivamente feminina.

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