Leprosaria de Ká-Hó. Coloane, 2008
«Quando o Sol descia no mar, o morro, ao cabo da ilha, era um archote flamejante. Parecia que o mundo ia acabar ali, ou talvez começar, que novas formas, ou o nada, surgiriam, definitivas, da massa ígnea dos elementos - terra argilosa, céu e água ardendo ao sopro do Espírito - e que o tempo que havia de suceder-se seria o dia perfeito da natureza depurada.
A-Mou, que tinha na face rosetas de lepra, todos os dias saía a admirar o espectáculo do entardecer, trémula de inquietação e de esperança.
Era a hora em que as outras doentes se acolhiam ao canto dos catres, ou porque o Sol, espelhando-se no mar, lhes feria os olhos infeccionados, ou apenas por inexplicáveis, secretas superstições.
A-Mou era jovem, e a doença, ainda no princípio, não lhe causava sofrimento. Verdadeiramente, só tinha as rosetas. O médico prometera-lhe cura. Ela gostava de viver, de se aformosear com cabaias garridas, flores no cabelo, laca nas unhas.
Pelo fim da tarde, levando ao colo o seu favorito - um porquinho-da-índia que lhe dormia aos pés da cama como um gato -, A-Mou subia até ao mais alto do morro, sonhando com um amanhã novo, diferente, melhor.
Via-se dali a ilha toda: os talhões pantanosos de arroz fulgindo aos últimos raios de sol, nos vales; os arbustos de chá e de inhame em socalcos pelas encostas; as pedras negras e amarelas por entre as matas sempre verdes de abetos. E ver a ilha era, de certo modo, contemplar o mundo, vislumbrar a vida para além da leprosaria (...)».
Maria Ondina Braga. «Os Lázaros», A China fica ao lado. Bertrand, Unibolso.
A-Mou, que tinha na face rosetas de lepra, todos os dias saía a admirar o espectáculo do entardecer, trémula de inquietação e de esperança.
Era a hora em que as outras doentes se acolhiam ao canto dos catres, ou porque o Sol, espelhando-se no mar, lhes feria os olhos infeccionados, ou apenas por inexplicáveis, secretas superstições.
A-Mou era jovem, e a doença, ainda no princípio, não lhe causava sofrimento. Verdadeiramente, só tinha as rosetas. O médico prometera-lhe cura. Ela gostava de viver, de se aformosear com cabaias garridas, flores no cabelo, laca nas unhas.
Pelo fim da tarde, levando ao colo o seu favorito - um porquinho-da-índia que lhe dormia aos pés da cama como um gato -, A-Mou subia até ao mais alto do morro, sonhando com um amanhã novo, diferente, melhor.
Via-se dali a ilha toda: os talhões pantanosos de arroz fulgindo aos últimos raios de sol, nos vales; os arbustos de chá e de inhame em socalcos pelas encostas; as pedras negras e amarelas por entre as matas sempre verdes de abetos. E ver a ilha era, de certo modo, contemplar o mundo, vislumbrar a vida para além da leprosaria (...)».
Maria Ondina Braga. «Os Lázaros», A China fica ao lado. Bertrand, Unibolso.
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