sexta-feira, 6 de julho de 2012

"O Homem de Meia Vida"


Maria Ondina Braga
"O Homem de Meia Vida"

Era fatalmente um opiómano. Bastava lá ir um pouco antes do meio-dia e ver o olhar aflito que nos lançava, a lassidão dos seus gestos e palavras na venda da mercadoria.
A princípio julguei-o aloucado. Meia-idade, rosto simpático, embora muito emagrecido, não atendia os clientes directamente, deixando que lhe remexessem o armazém de antiguidades, indiferente, respondendo por monossílabos, arrastando os pés, suspirando.
Depois, compreendi. Lembrei-me do que lera sobre Camilo Pessanha - o "morto-vivo",  pune-tio-iane-mean, "homem de meia vida".  Também o antiquário estava meio morto. De manhã era tal o vazio do seu olhar que uma espécie de ausência lhe transparecia da presença.
De tarde, dava-se a ressurreição. Um milagre, pelas quatro horas. Fechando o estabelecimento para a sesta  (coisa rara entre os Chineses que, das dez da manhã às dez da noite, trabalham a fio, almoçando e jantando à porta da loja), ele surgia renovado, semblante vivo, verbo fluente.
Então valia a pena ir lá perguntar o preço de um buda de jade só para lhe ouvir a descrição de quantos firmamentos e dinastias ele acreditava ali, no seu antro.
A loja, escura, deitava para um barracão onde se atulhavam pedras da era do imperador Van-Li, a era em que na China se conheceram os relógios.
Ele acendia anacrónicos candeeiros coloridos, fumarentos, que davam ao aposento um ar espectral.
De tarde, amável, oferecia chá a um ou outro apreciador de trastes velhos. Mandava sentar numa concha de cadeirinha, no estofo puído de um riquexó de mandarim. Citava Confúcio: "O homem é por natureza virtuoso como a água que corre espontaneamente. É a perversidade do mundo que o corrompe." Ficava por um instante calado (comovido?). Mas logo se recompunha.
Aquele vaso ali, de bambu, pertencera a uma imperatriz célebre que o encomendara para a celebração do Tsing-Ming - o dia dos mortos, em Abril. Lá, ela devia guardar os ossos do defunto marido. Bambu era a madeira excelente, consagrada pelo Supremo, que a oferecera ao povo como a planta mais útil do mundo, de visita à terra da China. O bambu e o arroz, que chegava a frutificar três vezes por ano. Ele possuía desenhos em papel de arroz, in-fólios em fibra de bambu. Rebuscava prateleiras. Franqueava armários. Apresentava obras-primas, tesouros.
Na festa dos barcos e da deusa A-Ma, padroeira dos pescadores, feriado para os marítimos da lota do peixe, o antiquário queria saber se tínhamos provado o pudim de arroz cozido em folhas de bananeira, se, na rua, assistíramos à dança do leão.
Na festividade da primeira Lua cheia de Setembro, recomendava a subida a um monte para ver nascer o astro mais doirado e mais rotundo de todo o ano.
Nas vésperas do Ano Lunar, a loja de antiguidades alegrava-se com o ramo de flor de pessegueiro, e, no arco da porta, o lojista escrevia em caracteres doirados sobre fundo escarlate os cumprimentos da praxe: Kung Hei - Ano Feliz!
O dragão Long, o deus-bicho de cinco garras, emblema do poder imperial, símbolo do Oriente e da Primavera, com a faculdade de crescer até abarcar os céus, de sustentar a abóbada celeste, de distribuir a chuva e regular o curso dos rios, dominava, ao centro, todo de pau-santo incrustado de madrepérola.
À entrada e ao pé de uma estranho instrumento musical que o antiquário afirmava vir do tempo em que o povo venerava a música como harmonia emanada de Deus (instrumento por isso só usado pelas virgens do templo), uma tartaruga talhada em ágata simbolizava a Força. Ao lado, um baixo relevo da fénix - insígnia das imperatrizes - e os licornes que reuniam em si os elementos primordiais da Natureza: metal, madeira, água, fogo e terra. Ao fundo, a enorme esteira com a pintura da árvore sagrada - o ficus -, retorcidos, multiplicados os troncos, as raízes adventícias ondulando ao vento.
Até o antiquário era algo para além do tempo. De feições emaciadas, pele de marfim antigo, surgia entre as remotas pedras, as porcelanas, as madeiras ricas, os pergaminhos e os papéis pintados, como um fantasma, ou um sopro do espírito a registar as idades - e simultaneamente a desmenti-las.
Falava inglês e um pouco de português juntamente, trocando o r pelo l. Explicava o milagre da criação do mundo: o Grande Tai-Ki, nascido do nada, dera origem ao princípio positivo, elemento macho, Yang, que no seu ócio inventara o elemento negativo, fêmea, Yin. Daí o equilíbrio do cosmos - Yang-Yin - com o céu Yang fecundando a terra Yin, entre o pranto da chuva e o sorriso do sol, na apoteose do arco-íris a que todo o chinês devia voltar pudicamente a cara.
Provado o néctar dos deuses, o opiómano alcançara o seu logos, e interpretava-o em êxtase, como se fosse semideus.
Isto de tarde, passadas as quatro horas.
Eu ia lá de propósito para o ver e escutar. De vez em quando, as suas palavras diluíam-se em música. Punha-me a cogitar enquanto o ouvia. O gosto de decifrar enigmas... Que teria levado aquele homem ao vício do ópio? Alguma paixão frustrada, mulher ardente que o tivesse trocado por outro? Talvez um filho único, amimado (fruto desse amor?), que o desiludisse, o roubasse, o consumisse, quem sabe se fugido em Hong-Kong, metido em assaltos à mão armada, conhecendo os tratos da enxovia... "... por natureza virtuoso... o equilíbrio do cosmos..." Mas... seria necessário inventar uma causa romanesca? Não bastaria a frágil condição humana, o desgosto de viver? "É a perversidade do mundo que o corrompe."
O antiquário não lia jornais, não sabia o que se passava longe, não queria sabê-lo. Tragédias? Guerras? Reparasse naquele painel de charão - a batalha dos deuses com os monstros. Terrível! Os monstros (demónios?) ostentando halos de fogo que malevolamente se confundiam com os resplendores das cabeças divinas.
No meio das preciosidades, eloquente, eufórico, sôfrego de beleza, era agora senhor todo-poderoso de um mundo imaterial. O homem do bricabraque, o que, antes do meio-dia, gemia em vez de falar, o dos olhos de louco, pune-tio-iane-mean, o homem de meia vida.
Ah, como um bem tamanho, tanta felicidade numa espiral de fumo, iriam, na manhã seguinte, reduzir satanicamente tão sublime criatura a um verme do pó, ao mais miserável ser! Era o ópio ou a vida que fazia aquilo? Na realidade, ele só vivia depois do ópio.

Maria Ondina Braga. A China fica ao ladoLisboa, Unibolso, Bertand.

Sem comentários: