«Eu gostava muito da parte superior do Jardim de S. Francisco, paredes-meias com a Rua Nova à Guia. A área era mais larga que hoje, cobria a Calçada do Quartel que não existia, e estava separada da ala das residências dos oficiais, por um muro formando beco. Havia ali um jardim frondoso e bem tratado com áleas, onde se aprumavam frangipanas e bauínias entre arbustos e outra vegetação. As frangipanas davam as chamadas "flores de S. João" branco-amarelas, de cheiro capitoso. As bauínias abriam as suas flores arroxeadas ou róseas na Primavera e eram um regalo para os olhos. As champacas misturavam-se com as roseiras. Sebes de camélias e damas-da-noite dividiam os caminhos. Pairava no ar uma confusão de aromas inebriantes. De manhã à noite, desbobinava-se a sinfonia zangarreante das cigarras, em labor incansável, desmentindo a fábula conhecida. Nos bancos verdes e já veneráveis, sentavam-se os anciãos chineses que traziam, em gaiolas grandes e pequenas, algumas artisticamente ornamentadas, os seus pássaros favoritos - rouxinóis, chevites, melros, canários e outros - que trinavam à compita com a passarada livre, derramada pelas árvores. Eternamente, as borboletas saltitavam de flor em flor, à procura do pólen. (...) Por entre aquela vegetação abundante, sobressaía a maior árvore de pagode que jamais vi em Macau, à excepção da do Seminário de S. José. Eu chamava-a simplesmente a Árvore. Alta, tronco grossíssimo, bem copada, a ramaria espraiando-se largamente para o céu, a sombra hospitaleira e benigna em círculo, abrigando os passeantes da canícula ou da chuva. Em cima havia sempre chilreada dos passarinhos que construíam ninhos inacessíveis à garotada. O tronco secular tinha reentrâncias e nós que permitiam fácil escalada aos primeiros ramos. Eu costumava trepar por ele acima muito ágil e assentava-me num dos ramos gozando a altura e o panorama. (...) Mais tarde, homem feito, quando regressei de Portugal depois de uma ausência de oito anos e calhou visitar aquela parte do jardim, tudo estava praticamente irreconhecível. Existia ainda o gracioso edifício cilíndrico, mas a vegetação fora desbastada e não restava o mínimo vestígio da Árvore. Sabe-se lá porque tinha sido derrubada. Sofri um golpe doloroso na sensibilidade. Desaparecera para mim a mais nobre árvore de Macau».
Henrique de Senna Fernandes, «Rua das Mariazinhas», Mong-Há. Instituto Cultural de Macau, 1998, págs. 75-76
domingo, 28 de maio de 2006
«Eu chamava-a simplesmente a Árvore»
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