quarta-feira, 17 de março de 2010

Os piratas no Delta

Existem algumas descrições bastante curiosas dos vapores que faziam a ligação entre Hong Kong e Macau nos anos 20, 30 e mesmo 40, do século passado, das precauções tomadas e da forma como as embarcações eram transformadas para protegerem-se contra os ataques dos piratas. Seleccionámos três: uma de Blasco Ibáñez (anos 20), outra de Jaime do Inso (anos 30) e, por último, Ferreira de Casto (anos 40).

De Vicente Blasco Ibáñez, transcrevemos - da sua obra A Volta ao Mundo (1ª edição de 1924) - parte do relato da sua viagem a Macau:
«(...) O vapor-correio é igual a todos os que navegam no estuário e nos rios próximos; mas, depois do assalto que o meu compatriota presenciou, fizeram-lhe grandes arranjos para defesa. Grades de grossos barrotes, semelhantes às das prisões, dividem-no em várias secções. Um polícia hindustânico, de farda azul, boné branco, carabina e revólver, está de guarda à porta aberta de cada uma dessas divisórias, enquanto se faz o embarque. Quando o vapor começa a navegar, todas as entradas daquelas verdadeiras jaulas se fecham interiormente e as sentinelas ficam por detrás, encostando as carabinas ao cruzamento dos barrotes.
A coberta superior está também cortada por fortes gradeamentos, que impedem a comunicação entre as diversas classes de passageiros e, para evitar que os assaltantes possam passar para o outro lado, deitando o corpo fora da amurada, prolongam-se as grades para fora com semicírculos exteriores de pontas aguçadas como lanças. A ponte onde vai o capitão, está defendida por placas de aço iguais às dos anteparos que protegem os artilheiros nas peças modernas. Deste modo, os tiros dos piratas não podem atingir os que dirigem o barco. Aqueles, porém, que presenciaram o último assalto não mostram grande confiança nestas precauções e pensam que os chineses hão-de inventar qualquer coisa inesperada para vencerem estes obstáculos de defesa (...)».
Em O Caminho do Oriente, Jaime do Inso (1ª edição de 1932), descreve a viagem para Macau a bordo do vapor Sui-Tai:
«(...) Fecharam-se as grades que os separavam do deck superior onde iam os europeus, correram-se as portas com seteiras que defendiam a entrada da ponte do comando, guardada por índios armados, soltaram-se os cabos dos cabeços da ponte do comando e ao bater das oito horas, depois dos apitos do costume, o Sui-Tai deslizou pelas águas límpidas de Hong Kong e enfiou pelo Sulphur Channel, a caminho de Macau.
As precauções das grades isoladoras e das portas fechadas eram tomadas por causa dos piratas.
Este, que desde tempos imemoriais mandam em certas regiões da China como qualquer governo, umas vezes exigem impostos, outras apoderam-se dos navios a navegar.
(...)
Dentro de qualquer destes barcos de carreira poderão viajar, normalmente, dez, vinte, cinquenta europeus ou eurasianos - como dizem os ingleses, isto é, descendentes de europeus e asiáticos - e duzentos, trezentos, quatrocentos chineses dentre os quais, em dado momento, podem surgir uma ou duas dezenas de piratas armados a imporem a sua lei.
Apesar de todas as precauções e da presença dos guardas é raro que eles não levem a melhor pois, quando em luta lhes faltam outros recursos, acabam por lançar fogo ao próprio barco onde vão (...)».
E de Ferreira de Castro, A Volta ao Mundo, obra publicada em 1944:
«(...) De Hong Kong saem para Macau vários navios por dia, numa viagem que exige pouco mais de três horas. As classes destes pequenos barcos apresentam-se separadas, interiormente, por grades de ferro e exteriormente por uma série de espigões em forma de leque, para evitar assaltos de piratas. Tínhamos lido, na Europa, numerosas descrições sobre estas defesas, mas foi necessário virmos aqui para acreditarmos na sua existência, tão inverosímil o caso nos parecia na nossa época. Até há pouco, os piratas tomavam lugar numa das classes, como simples passageiros, e, em momento propício, assaltavam a cabina do comando. Prendiam ou matavam os oficiais e a marinhagem e pilhavam, em seguida, quanto valor o navio conduzia, desde as sacas do correio às bagagens e jóias dos passageiros. Outras vezes, instalados em juncos, disparavam, com um pequeno canhão, sobre o barco, obrigando-o a deter-se, e logo o abordavam para um assalto que não deixava a bordo coisa alguma que fosse transportável. Ora essa pirataria não acabou ainda: exerce-se, de vez em quando, em façanhas iguais às de outrora, de juncos contra juncos ou contra lanchas e demais pequenas embarcações. Mas nestes navios de Macau, armados e alguns até blindados, ela só será possível por avaria das hélices ou outro acidente casual, pois a bordo está tudo vigilante e os chineses duma classe têm de olhar para as outras como um preso para a liberdade - através de grades... (...)».

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