terça-feira, 6 de julho de 2010

A guerra do "Chau-min"

"Das janelas do Liceu via-se grande agitação diante do Palácio do Governo.
- Viraram o carro da água da polícia! Gritou, de repente, um aluno que erguera a cabeça e espreitava o burburinho... Professora, olhe, olhe, estão a entrar no Palácio e a empurrar os polícias...
De livros vermelhos na mão, os hong wái peng, aos quais se associara grande multidão e chineses de todas as idades, haviam entrado de roldão no Palácio do Governo, subindo as escadas e partindo à sua passagem os grandes vasos antigos que decoravam o átrio e a escadaria de acesso ao primeiro andar.
Os pedaços de porcelana pintada pareciam gemer ao quebrarem-se com aquele tilintar inconfundível de louça chinesa antiga.
Alguém, usando um megafone, comandava a turba. Eram gritadas passagens do Livro Vermelho de Mao Tsé Tung: bíblia dos hong wái peng. Punhos no ar, gritos contra os imperialistas, tigres de papel, e muitos vivas ao grande lider chinês.
A polícia tinha ordens para não usar violência. Defendidos apenas com escudos de rotim, um grupo de antigos militares europeus, que haviam ficado em Macau na Polícia, entraram pelas traseiras do Palácio e conseguiram expulsar os intrusos à força de punhos, os quais, a bem da verdade, em grande parte fugiram. Fez-se um grande vazio em frente do palácio. Um cordão de polícia sustinha a turba que enchia a Praia Grande até ao Palácio das Repartições. Uma ambulância do Hospital chinês e um médico estavam parados à porta do Palácio. E o médico afirmava ao Secretário do Governador, que o atendia em plena rua, que havia feridos e talvez mortos no interior do Palácio e exigia entrar...

O grito tá-sei tornou-se palavra de ordem. E os hong wái peng dispersaram-se pela cidade espancando os europeus que consideravam opressores dos chineses, invadindo algumas casas e repartições públicas, rasgando arquivos, queimando carros, destruindo móveis e louças, tudo o que lhes surgisse adiante e que fosse português.
Apearam a estátua do Coronel Mesquita no Largo do Senado e a própria cabine telefónica adiante do edifício dos Correios foi destruída, ficando no local apenas o soco rente ao empedrado do passeio. A situação estava a tornar-se insustentável, pois parecia esboçar-se uma certa anarquia e instalar-se um ambiente de terror na Cidade, quando a multidão, protegida por um camião pesado, avançou para a Central da Polícia, onde se encontrava armamento. Continuava a não haver ordem para disparar. E a camioneta avançava. Que seria da cidade se os chineses ocupassem a Central da Polícia?
O Governador e os seus principais conselheiros, incluindo o Comandante da PSP, não saíam do Palácio, protegidos pela polícia e pela tropa. Foi mandado também um pelotão armado de metralhadoras para proteger a residência do Governador, em Santa Sancha.
As famílias dos militares foram mandadas recolher ao Quartel General. E finalmente, quando um guarda português, desobedecendo às ordens que recebera, atirou ao chassis da camioneta e pôs os chineses em debandada, defendendo da invasão a Central da Polícia, o Governador e os seus Conselheiros, amedrontados, resolveram puni-lo, mas dar mão livre à tropa.
A tropa saiu. Foi declarado estado-de-sítio com recolher obrigatório. Houve confrontos. Morreram sete chineses. Começaram as conversações, pois aquela instabilidade não convinha a ninguém. Todos os estabelecimentos públicos foram cobertos de papéis escritos em chinês com dísticos ofensivos. O próprio Liceu, as igrejas e os cemitérios não escaparam.
(...)
Começou a debandada. Em pânico, houve quem tendo numerosos filhos, fugisse com tanta precipitação que deixou dois deles esquecidos em casa de um vizinho, onde estavam a brincar. Pateticamente, alguns oficiais de joelhos, ofereceram às mulheres as espadas, antes delas partirem.
Iam morrer todos numa guerra inglória, numa guerra do Chau-min, como o impagável Senhor Alecrim, da Emissora local, lhe chamaria depois.

(...)
Num meio dia de Janeiro foi assinado o Acto de Culpa pelo Governador de Macau e entregue a pesada indemnização que os capitalistas mais interessados nos lucros obtidos em Macau pagaram de bom grado.
(...)
Muitos panchões, muita festa. Acabou-se o terror. A vida voltara à normalidade. Calaram-se os altifalantes que, no Largo do Senado, vomitavam injúrias contra os portugueses, numa tentativa de lavagem colectiva de cérebros. Acabaram-se as marchas e as representações de rua. Pelas paredes, amareleceram e caíram os papéis injuriosos. O papel com que haviam coberto o rosto do busto de Camões, foi arrancado. Só a mão da estátua de Jorge Álvares, que fora partida, não voltou a aparecer. E a estátua de Mesquita, prudentemente, ou cobardemente, não voltou ao seu lugar no Largo do Senado.
(...)
Ana Maria Amaro. "A Guerra do Chau-min" in Aguarelas de Macau. 1960-1970. Cenas de Rua e Histórias de Vida. CTMCDP e Fundação Macau, 1998

Notas da Autora:
Chau-min - Prato de aletria de farinha de arroz, muito popular em Macau, onde era dos mais económicos, adquirindo-se, até, por alguns avos nas "Cozinhas ambulantes da Cidade.
Hong wái peng - Guardas vermelhos
Tá sei - Mata!

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