quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (XIV)



XIV
O desespero do bonzo


Chan abrira precipitadamente a porta do Templo que dava acesso à Bonzaria e, em altos gritos, pedia socorro a todos os bonzos que acordavam estremunhados ante a loucura do companheiro, que não compreendiam.
- Socorro! Socorro! Fui roubado! - gritava o bonzo que Lau-Sin, momentos antes, desapossara da imagem preciosa.
O Superior da Bonzaria foi o primeiro a encarar o bonzo que, caindo-lhe aos pés, clamava humildemente:
- Perdão, Senhor! Perdão! Não brilhará neste Templo a imagem preciosa da Deusa do Céu! Perdão, Senhor! Perdão!
E batendo com a cabeça no chão, com acentuada violência, o bonzo contorcia-se como que possesso de espírito maligno.
O Superior, pleno de calma e de confiança, sentenciosamente disse:
- Se o Céu não quer que a imagem permaneça neste Templo nada mais temos a fazer que conformarmos-nos com a sua vontade. Não exageremos o valor da perda. Não é a qualidade do material que dá valor às imagens! Quantas não há, milagrosas como as melhores, que não têm qualquer valor real? Bem sabes que ao nosso Templo nunca faltou a protecção divina enquanto a imagem, em terras distantes, se oferecia à devoção dos fiéis e operava os milagres que o Céu lhe permitia. Antes te digo Chan, que o sossego e a paz, que neste Templo desfrutávamos, desapareceram com a restituição da imagem, roubada há anos. E como veio primitivamente  parar a este templo de Tin-Hau essa preciosidade? Ninguém o sabe! Não aprovo a ganância de mercador que preocupa o teu espírito. Antes gostaria de ver-te calmo e resignado, aceitando os acontecimentos como vontade que vem de cima que nós, mais que os outros, não deveremos contrariar. Deixa-te pois de excessos e afasta para longe de ti os maus espíritos que te fazem esquecer o lugar onde estás e a tua condição. Ainda que contrariado devo dizer-te que não me agrada o teu procedimento. A nossa Ordem é pobre, e da pobreza viveremos. Grande desgosto me deste com o tesouro do "Dragão perdido", e não espero que continues a olhar tanto para o Mundo, em vez de levantares os olhos para o Céu.
E, virando-se para os restantes bonzos, que o escutavam reverentes, acrescentou:
- Tomai de exemplo a que pode levar o pecado. Se algum de vós não está contente com a pobreza desta Ordem pode retirar-se... e que o castigo do Céu lhe pese pela vida toda.
Chan ouvira silencioso as ásperas palavras do Superior e, após uns momentos de hesitação, disse:
- Senhor! As vossas palavras foram como que um bálsamo divino que suavizasse a grande dor que me ia na alma. Tendes razão em todas as vossas observações e eu, mísero servo deste templo, reconheço que não tenho procedido bem. Foi de facto o valor material que tanto me apegou à imagem agora perdida, e vejo claramente que ao Céu não poderá agradar o meu procedimento.
O Superior, com ar paternal, aproximando-se de Chan, tocou-lhe no ombro e disse:
- Agrada-me que reconheças a razão que me assiste. Não falaremos mais no caso da imagem de "Tin-Hau" e cuidemos dos deveres impostos pelo Céu à nossa Bonzaria.
Do lado nascente uma ténue claridade deixava distinguir a linha do infinito e, pouco a pouco, por detrás da transparente cortina de humidade, surgia, radioso o Astro Criador.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949



Monges budistas. Cantão, 1869



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