quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Os Pau-Chaus (Panchões - Estalos Chinezes)


Os Pau-Chaus (Panchões - Estalos Chinezes)


          Vivendo de fresca data, n'este porto interior, ha tantos annos abandonado pelos nossos, aqui mesmo, em frente do umbroso e fresco Pagode da Barra, um Pagode China dos mais venerados, pois diz a crença estar sob elle occulta uma unha do sempiterno dragão amarello, emblema e força do imperio Chinez, a toda a hora e a todo o momento o oiço crepitar em torno de mim, uns estalidos seccos e rapidos que semelham fuzilaria de regimentos em manobras, com ordem de fogo á vontade, produzidos pelos milhares de panchões que, de bordo dos innumeros tankás, juncos e lorchas de todos os feitios e tamanhos, são disparados, quando vão passando em frente do exotico templo, ao entrar e ao sahir o pittoresco e ao mesmo tempo açoriadissimo porto interior de Macau.
          Lá, no veneravel Pagode, ainda a madrugada aux doigts de rose, vem longe a abrir as portadas ao rutilante sol, já estalam sob as arvores os pau-chaus. De manhã, durante o dia, e sempre até alta noite, quasi ininterruptamente, estrugem o ar as repetidas descargas da inoffensiva fuzilaria, e, se atravessamos as ruas de Macau, quando succede defrontarmos os portaes rendilhados de estuques, de guardaventos de artistico entalhado, producto paciente do operario anonymo, muitas vezes acontece termos de nos arredar rapidamente, porque a nossos pés vem cahir, lançado apressadamente de uma janella, um vermelho masso de panchões, incendiados, que começam estralejando no meio de rolos de fumo acre e nitroso, pondo em perigo de incendio as brancas calças de nankim do tão conhecido Bexiga, alfayate da rua central.
          - Que significa este costume?
          - Desde quando está elle estabelecido na China?
          - Que mysterio é este, e para que tanto ruido?
         Parecendo puerilidade estas perguntas curiosas, todavia, ellas veem relacionar-se com outro problema mais curioso, qual o de saber, se a polvora com que está cheio o humilde tubosinho do panchão, é realmente uma descoberta chineza.

          Sabemos que a unica differença entre as invenções da raça branca e as dos habitantes celestiaes, é que na Europa qualquer descoberta adquire rapidamente vigor e desenvolvimento tornando-se um prodigio, uma maravilha! e na China, fica em estado de embryão, e ali se conserva estacionaria, senão morta. 
          - Porque a China, desde seculos e seculos que não se da ao trabalho de pensar; diz ella, pela bôca dos seus mandarins e letrados, que teve quem pensasse antigamente por si, e pelos seus modernos habitantes, e, portanto, agora não precisa entregar-se a progressos irrespeitosos para com a memoria dos avós, que o que fizeram e pensaram está e estará sempre bem feito; nada é necessario a mais do que está; e, assim, a China encerra-se em um tal immobilismo, que os fortes abalos, e os rudes embates das modernas civilizações occidentaes, muito francamente, muito debilmente, conseguem demover.          - A China de hoje, sabem todos os que aqui andam, é na sua substancia intima, moral e intellectual, tão primitiva e tão archaica, como era no tempo do grande philosopho Confucio.
          Na China, quem governa despoticamente com um jugo tyranno e eterno são os mortos!
          - Os mortos! dirão os incredulos europeus, de sorriso malicioso na face.
          Sim, os mortos, desde o reles e desprezado culi, até ao gordo mandarim; todos os antepassados.
          - O culto dos antepassados é tão grande, tão fortemente está arreigado ao cerebro de todo o china, que, qualquer ideia, qualquer projecto ou construção, qualquer progresso ou mudança de costumes que a civilização europeia queira introduzir ou impor. tem de retroceder fatalmente deante das innumeras superstições que ligam o china moderno ao pai, ao avô, ao bisavô, emfim a toda a linha ancestral, que o que está governando de dentro das originaes sepulturas espalhadas por todos estes montes, colinas e vales, que d'aqui se avistam, e que por toda a parte se encontram, dispostas de todas as maneiras, segundo os preceitos que os sieu-chau fong-choué, isto é, os doutores do fong-choué, determinaram ás respectivas familias do finado.
          - Aqui o Fong-Choué é tudo!
          - O Fong, isto é, aquillo que é invisivel, inconstante, imponderavel, o vento!
          - O Choué, o que se vê, que se pode medir, conservar, a agua. E o Fong-choué, esta ligação da agua e do vento, d'estas duas forças tão poderosas, formam um amalgama tão intangivel, tão cheio de occultas e mysteriosas influencias que a sua acção sobre o destino dos mortaes chinas é omnipotente!
          - Assim, tudo se regula mais ou menos em relação ao temor de um mau fong-choué, desde o dia em que no jogo do Paka-Pio se aposta na cabra e no bode, no leão e na corsa, até ao dia em que se toma uma esposa, ou se abre uma loja, ou se constroe uma caza!
          - O Dragão e o Tigre que, segundo os tratados volumosos e complicados que tratam da sciencia do Fong-Choué, estão ligados a estas duas forças, influem tambem no resultado de o tornar favoravel ou não, ao celestial sempre aflicto; e se nós formos ver que elle ainda tem que se dirigir a outras potencias, por egual temiveis, a outros espiritos e genios, tem que construir pára-fong-choués, uma especie do nosso pára-raios das habitações, tem que pintar, em bandeiras desfraldadas ao vento, os Pa-Kona, especie de rodas de fortuna com a sabia combinação dos Yin e dos Yangs, isto é, os principios macho e fêmea; tem de construir os Yung-peé, que são muros de tijolo protectores, e coser aos fatos, pegar nas hombreiras das portas os meus-cheus, e queimar pelas ruas, pateos das cazas, e dos pagodes os estralejantes pau-chaus, como poderá o pobre china mover-se dentro do circulo de ferro de tantas superstições, de que nada o pode demover nem arredar?

          (...)

          - Dirijamo-nos pois a um dos grandes factores da vida publica e particular do china, a superstição, e alli iremos procurar as problematicas origens do universalmente conhecido pan-chão, tão intimamente ligado a todas as festividades e acontecimentos notaveis dos celestiaes.
          - Seja esse detonante tubosinho, o signal mais remoto e mais simples, para o estudo curioso da polvora de artificio, e ainda o meio de chegar a um estudo da sua applicação ás armas de fogo chinas, usadas em guerras, seculos e seculos para traz dos primeiros preconisados inventores europeus, taes como Rogerio Bacon em 1220, o Bispo Rastibonna em 1280, e o conhecido monge Schwartz, em 1320, tivessem descoberto a mistura detonante dos 3 A.
          Muitos seculos antes que as nações da Europa fossem constituidas, já em um livro, o Huo-Pao, que trata de explosivos, diz: "Nos tempos da dinastia T'aug (do sexto para o decimo seculo A.D) existiam fogos de artificio, nos quaes - salitr misturado com carvão de pinheiro detona em jacto rectilineo, porém se se mistura com enxofre a explosão é lateral. Se se acrescenta ao mixto poeira de ferro (huang-fau) então a explosão forma um chuveiro de scentelhas muito luminosas.

          (...)

          Ora, para que será então o costume de fazer em qualquer occasião estrallejar os panchões?
          - Os proprios chinas parece não terem feito nunca nenhuma investigação.
          - Para quê?
          - Algum antepassado remotissimo começou o uso, seria falta de respeito á sua memoria investigar as causa.
          - Os antiquarios, dizem que os pequenos tubos detonantes da actualidade são o diminutivo e a imitação do som crepitante dos bambus, que se queimavam para affastar os maus espiritos.
Era esta uma pratica que vem citada em um livro intitulado Kuig-ts'u-sui-she-ki, publicado pela epoca do sexto seculo da nossa era.
          Ora este livro, abre com um capitulo que diz:
          "O primeiro dia do primeiro mez é o dia dos tres principios (querendo dizer que começa o anno, o mez e a estação) e no tempo de Confucio chamava-se kran-yuch ou seja em portuguez - o monte regulador.
          Ao cantar do gallo, o povo levanta-se, e a primeira cousa que faz é queimar e estalar bambus, em frente das suas habitações, a fim de expulsar para bem longe os malignos demonios chamados Shan-são."
          - Em um romance muito moderno, relativamente a tudo quanto é chinez, que é o Hung-low-meng, ou em portuguez "Sonhos da Camara Vermelha" - ha uma especie de enygma cuja solução é o "pau-chang".
          Disse que é modernissimo, porque n'este Far-East, todas as leis, usos e costumes são tão extraordinariamente antigos que este romance, datando do ultimo seculo, é perfeitamente actual.
Entrando no dominio da superstição, fere-nos a curiosidade perguntar o que serão esses taes Shan-são, que teem medo e se affastam pressurosos, quando algum bambu, aquecido pelo fogo estala com ruido.
          Na collecção enorme da litteratura china, o livro chamado Shen-i-King, diz alguma cousa sobre o maligno. Cita o repositorio de sciencia:
          "Entre as montanhas da China Occidental, ha uns seres de forma humana, mas apenas de um pé e meio de altura, que são por natureza muito inoffensivos; porém, se são offendidos ou atacados causam grande damno aos homens produzindo-lhes doenças, alternadamente por meio do frio e calor.
          Chamam-se Shan-são. Ora queimando bambus ao fogo, produzindo assim uns estalidos seccos e rapidos, ficam os Shan-são amedrontados e procuram imediatamente fugir para longe."
          - O tal romance intilulado "Sonhos da Camara Vermelha", escreve o seguinte verso, traducção liberrima de outra traducção ingleza dos caracteres chinas abaixo desenhados, e publicados no erudito Journal of the North China Branch. Of the Royal Asiatic Society - for 1869-1870.

"Todos os espiritos e demonios eu sujeito!
Tal é o meu poder enorme!
Minha voz tem do trovão o som
Mas a figura é um simples rollo informe!
Os homens tremem de espanto subito,
Com o meu terrivel estalar,
Comtudo sou só cinza e pó...
Antes que o feio medo, de mim se acerque a voar!"
          (...)

          Porém, o panchão alastrou-se, passou a ser usado tambem pelos habitantes de Macau, que o empregam em diversões e festas para animar e excitar com o seu ruido as reuniões, ao ar livre, pelo luar de agosto, quando o Tai-phun não revolve os ares em confusão medonha, e mesmo quasi adquire foros de official, quando festeja pessoas gradas, que regressam à metropole, ou tornam de longas demoras; mas o verdadeiro motivo, aqulle que vimos se vae perder nas longas eras archaicas, é sempre o mesmo, o pretexto de exorcismar os malignos Shau-siau quer elles, sedentos e avidos, se queiram apoderar de algum novo governador que chega á colonia, ou esteja atormentando alguma gentil nhonha de olhar maguado e pé ben fêto que festeje as suas juvenis primaveras em reunião macaista.

   Macau, 14-8-903

"Os Pau-Chaus (Panchões - Estalos Chineses) - por Filippe Paiva.
Revista Portugueza Colonial e Marítima, Nº 073, 7º anno, 20 de Outubro de 1903, 13º volume.


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