quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (XV)

XV
A cilada


Lau-Sin passara o resto da noite contemplando a imagem, que o acaso trouxera às suas mãos, e, tendo despedido o seu companheiro, com quem combinara encontrar-se ao cair da noite seguinte, adormeceu exausto ao romper do dia.
Astutamente tinha sido feito o convite ao ousado polícia, que projectara dirigir-se na noite seguinte à várzea "Man-Fong", com a esperança de aí poder encontrar o assassino do bonzo Lau.
Já o Sol marcava o pino quando o polícia se levantou.
O dia passou sem qualquer incidente e Lau-Sin, após uma lauta refeição servida no seu quarto, ajustou à cinta as suas pistolas inseparáveis e desceu à rua, que já se encontrava profusamente iluminada.
Olhando vagamente para uma e outro lado, caminhou resoluto em direcção ao fumatório de ópio do prédio nº 26.
Chegado à porta, certificou-se de que não era seguido e, no mesmo disfarce da véspera, entrou rápido a porta principal.
Tomando lugar na cama de ópio do cubículo preferido, deitou-se e começou serenamente a deliciar-se e a revigorar, mercê da droga a que o seu organismo se habituara.
Uns momentos depois assomava junto à cortina da porta do cubículo o seu companheiro da véspera e, após uns ligeiros cumprimentos, A-Sou tomava lugar junto ao polícia.
- Vieste armado? - perguntou Lau-Sin.
- Vim armado de revólver e trago comigo um punhal - respondeu A-Sou.
- Fizeste bem. Todo o cuidado é pouco. Usaremos o mesmo estratagema de ontem e diremos que vamos mandados de Chau-Seng. Tu nunca estarás junto de mim. Conservar-te-ás sempre à distância, de modo que tenhamos os movimentos livres e possamos acuar rápida e energicamente sem embaraços. A ordem é esta: - matar para não ser morto - assim falou o polícia.
- Como já te disse, estou às tuas ordens, porém, mais uma vez repito que melhor seria que não tentasses o que quer que fosse com os homens de Chau-Seng. Já tens em teu poder a imagem. Que mais queres tu? - perguntou A-Sou.
- Quero o criminoso - respondeu Lau-Sin. Tu olhas para este caso apenas como ladrão, mas eu olho para ele como polícia.
- Compreendo que os nossos papéis são diferentes e mesmo opostos e, pena tenho eu de não poder compreender-te. Devo dizer-te, em todo o caso, que esta curta convivência contigo tem operado uma certa alteração no meu modo de ser. Gostaria de ser polícia como tu - rematou A-Sou.
Lau-Sin, encarando com simpatia o seu companheiro, disse:
- Neste momento és polícia como eu e, se quiseres e o mereceres, poderás vir comigo para Macau, onde te alcançarei um lugar de polícia ao serviço dos portugueses.
- Agrada-me o teu convite - respondeu A-Sou entusiasmado. - Gosto dos portugueses que são, por vezes, violentos, mas francos e amigos dos chineses. Tenho-te servido com lealdade e sempre te servirei. Sou novo, forte e ousado. Espero que cumpras a tua promessa.
Lau-Sin, tirando do bolso da cabaia o seu relógio de ouro, exclamou:
- São horas. Partamos.
Momentos depois os dois homens estavam na rua e caminhavam em direcção ao templo de Tin-Hau.
Chegados juntos ao templo, Lau-Sin inquiriu:
- Para que lado?
- Para a frente - respondeu A-Sou.
Sobre um estreito carreiro de várzea, A-Sou caminhava adiante e era seguido pelo polícia, que não dava mostras de preocupação.
A neblina da noite começava a embaciar o ar e, muito ao longe, distinguia-se uma pequena luz que se coava pelas frestas da janela duma cabana.
Assim caminharam durante meia hora os dois homens até que, já próximos da cabana, ouviram uma voz que interrogou:
- Quem vem lá?
- A-Sou. Dize a teu amo que vem comigo  o senhor Kuan, que deseja falar-lhe sobre assunto importante.
- Caminhai adiante de mim - ordenou o guarda, sempre segurando com firmeza uma clavina.
Chegados à porta da cabana o guarda continuou:
- Bate três pancadas.
A-Sou cumpriu a ordem e aguardou os acontecimentos.
- Quem é?
- Eu, o guarda, e dois estranhos que desejam falar-te - respondeu o vigia.
A porta foi aberta e os três homens entraram, não vendo, porém, vivalma no compartimento, que se encontrava mobilado com riqueza e luxo.
- Esperai - disse o guarda.
A-Sou procurava afastar-se de Lau-Sin, mas o guarda, chegando-lhe às costas o cano da espingarda, disse:
- Permanece junto ao teu companheiro.
Uma mão forte e ossuda afastou o reposteiro que dava para o interior, e à porta assomava um homem forte e enérgico, bem trajado, que perguntou:
- Quem sois?
O companheiro de Lau-Sin, adiantando-se, disse:
- Eu sou A-Sou. Não te lembras de mim? Este é o senhor Kuan, que deseja falar-te sobre assunto de importância. Vimos aqui de mando de Chau-Seng.
O homem, que outro não era que Cheng-Cheong-Van, não olhando sequer para A-Sou, indicou a Lau-Sin uma cadeira, sentou-se noutra, e exclamiu;
- Falai.
Lau-Sin, fazendo vénia respeitosa, disse:
- Sou nativo do distrito de Hèong-San e o meu apelido é Kuan. Estou velho e desejava acabar os meus dias na Bonzaria do Templo de Á-Má, em Macau. Há meses, porém, foi roubada deste templo a imagem da Santa Venerada e eu, que nada tenho que me prenda à vida, pois o Céu não me deu descendência, desejava recolher ao templo, levando, como dote, digamos, a imagem que é de tanta devoção. Chau-Seng disse-me que vós me podereis informar do paradeiro da imagem e, como estou disposto a pagar por ela o que seja pedido, aqui estou para saber de vós o que poderá fazer-se sobre o caso.
- Eu vos digo: - exclamou Cheng. - A família Tong, a mais rica desta província, fizera a promessa de restituir ao Templo de Tin-Hau, desta cidade, a imagem roubada há anos. Fui eu incumbido de praticar o roubo e, assim, fui a Macau e, na véspera do Ano Novo, entrei no templo, assassinei o bonzo Lau, cravando-lhe um punhal no peito, forcei a arca, sobre a qual ele dormia, roubei a imagem e parti para esta cidade numa lorcha, que me aguardava fora do porto de Macau. Aqui, entreguei a imagem à família Tong, recebi a quantia ajustada, e só agora me vejo livre da perseguição do polícia Lau-Sin... porque o tenho em meu poder.
Lau-Sin levou imediatamente as mãos à cinta, mas o homem, continuando com a maior calma, disse:
- Não vale a pena tentar resistir.
Nas três portas do aposento apareciam homens armados apontando as pistolas sobre o polícia e o seu companheiro, que se conservavam estáticos.
Lau-Sin, refazendo-se do desagradável efeito da surpresa, acendeu com calma um cigarro e disse:
- Está bem! perdi a partida. Mas antes de levares a cabo o teu intento, deixa-me dizer-te que és reles e covarde.
Cheng-Cheong-Van, avançando para o polícia, com um sorriso de escárnio, exclamou por entre gargalhadas:
- Ilustre senhor Lau-Sin, afamado chefe da Polícia Secreta de Macau. Os seus dias estão contados.
E, ao terminar estas palavras, vibrou duas fortes bofetadas no polícia, que se conservou imóvel.
Enchendo-se então de raiva, e virando-se de costas para o centro do compartimento onde, sobre uma rica mesa de pau-preto, se encontrava o candeeiro de petróleo, que iluminava a cabana, acrescentou:
- Julgaste então que o pirata Chau-Seng e os seus homens seriam fraca presa dum reles polícia, que serve os demónios do ocidente?
Num salto de tigre o ousado polícia atirou-se sobre Cheng-Cheong-Van e os dois homens, desamparados, foram cair sobre a mesa que, tombando, lançou ao chão o candeeiro, que se apagou.
O nervosismo do momento fez desfechar à toa as espingardas e pistolas dos guardas do compartimento e no chão, por entre os móveis tombados, batiam-se em luta de morte os dois inimigos.
Os guardas não se atreviam a disparar sobre o pavimento do compartimento, onde a luta se travava, receosos de atingir o seu chefe, e A-Sou, tendo-se escapado de junto do guarda que o vigiava, cravava o seu punhal de morte em todo o vulto que lhe surgisse na frente.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

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