quarta-feira, 5 de setembro de 2012

"Paisagens com Sentimentos"

"Paisagens com Sentimentos", um artigo de Ana Paula Laborinho sobre a obra ligada "ao percurso oriental" de Maria Ondina Braga - A China fica ao lado (C)Estátua de Sal (ES)Angústia em Pequim (AP)  e Nocturno em Macau (NM) - publicado na revista MacaU de Setembro de 1992:



 PAISAGENS COM SENTIMENTOS
Ana Paula Laborinho
Maria Ondina Braga confronta-se com o espaço (tradições, usos e costumes esculpidos na ancestral consciência) e a sua dupla estranheza - mulher e estrangeira - determinam o que observa e nos dá a ler.


Só entusiasmo não chega para fixar na memória tão vasta paisagem. Tão-pouco uma impressão demasiado nítida pode dar um bom quadro. Importante é pôr lá os nossos sentimentos.
É com estas palavras de um grande pintor chinês (Liu Haisu, n. 1896) que Maria Ondina Braga inicia Angústia em Pequim, obra que escreveu nos anos 80 relatando a sua experiência de vida na capital chinesa.
Esta epígrafe parece particularmente adequada ao tipo de ficção que encontramos nas suas obras, sobretudo aquelas que estão ligadas ao seu percurso oriental. De facto, não temos propriamente um enredo, mas quadros, retratos, crónicas que vão traçando os contornos de uma paisagem-estranheza que, por ser diferente, tende a tornar-se fabulosa, quer dizer, ficcional.
Aliás, a própria autora insiste nesta indistinção de planos (real/imaginário) em que se misturam memórias e sonhos (Sonhei uma vida inteira com Pequim, e Pequim dos meus sonhos, o que costuma ocorrer nos sonhos: uma cidade ao mesmo tempo surpreendente e familiar, tal se a houvesse habitado noutra encarnação. AP, 152)
Trata-se, pois, de visões. Resultado de olhares propiciando a descrição de lugares e gentes. Mas também um cruzamento de paisagens e sentimentos que produz uma imagem única e selectiva. A escritora, mulher ocidental, confronta-se com o espaço (tradições, usos e costumes esculpidos na ancestral consciência) e a sua dupla estranheza - mulher e estrangeira - determinam o que observa e nos dá a ler.
Sublinho a condição de estrangeira. O movimento da escrita é, em geral, razoavelmente impulsionado por este estado de conflito com o lugar alheio. Escreve-se não só por causa da novidade dos lugares mas também pela angústia do desconhecido e intrínseca solidão - ainda que as novas terras sejam acolhedoras e estimulem a descoberta.
É de todos estes matizes que se constroem as obras de Maria Ondina Braga. Entre o prazer de descobrir fabulosos lugares e o desespero de uma saudade teimosamente apelativa percorremos páginas de uma velha condição de portugueses aventureiros, desejosos de partir e importunados pelo regresso. São estes dois movimentos que encetamos nestas narrativas. Com o Oriente pelo meio da paisagem.

De Braga ao Oriente - as viagens e a escrita
Maria Ondina é natural de Braga. Lugar que o seu nome parece reter, apesar da sedução de outros percursos. Primeiro a viagem levou-a a lugares europeus que teima em recordar já ancorada em paisagens mais distantes. Inglaterra, Paris. Os nevoeiros londrinos, as matas da Escócia, os cais do Sena, os pequenos cafés da beira-rua. Depois, Angola. Aí ensinou Português e Inglês a meninas africanas tal como ensinou o mesmo Português e Inglês a meninas chinesas.
Porém, como constata em Estátua de Sal (1969), se este gesto repetido - a condição de professora - constitui um traço de permanência no trânsito da sua vida, cada paisagem assume contornos distintos e aparece recordada de rápidas e impressivas pinceladas (o nevoeiro/solidão de Londres, a claridade festiva de Paris, a melancolia do cacimbo africano).
Depois de África segue-se Goa, onde se encontra aquando da invasão pela União Indiana. Obrigada a abandonar Goa, chega a Hong-Kong três dias antes do Natal de 1961. Por todo o lado há sinais de celebração: coroas de azevinho, presépios, ornamentações. O contraste entre esse Natal europeu e o escarlate e oiro dos anúncios chineses provocam-lhe uma profunda impressão que se tornará um dos seus temas favoritos: o confronto das religiões e dos comportamentos.
Dos tempos passados em Macau resultam duas obras que datam dos anos 60, e uma terceira publicada mais recentemente. Estátua de Sal, apesar de publicada depois de A China Fica ao Lado (1968), parece ter sido escrita primeiro, visto que aí encontramos o cruzamento de memórias várias. Os lugares da sua errância sucedem-se produzindo os capítulos, aparecendo e reaparecendo ao sabor  das recordações (Braga, Londres, Paris, Malange, Goa, Macau), como se a autora ainda não se considerasse por inteiro do lado de Macau.
Já aqui se encontra de forma muito incisiva o binómio vida/escrita, fundamental em Ondina Braga (Assim vou contando de noite o que de dia vivo. ES, 50), aparecendo igualmente uma subtil advertência ao trânsito real/imaginário: Tempo de anotar tudo: o que a memória ressuscita (ou reinventa), o que o peito gastou de entesourar (ES, 50).
Mas, sobretudo, já aqui aparece explicitado outro vector desta escrita: os lugares constituem, em última instância, perscrutações interiores, e tanto mais penetrantes quanto estranhos eles se revelarem (Macau é, portanto, inédito para mim na medida em que eu próprio nele me busco. ES, 6)

Em busca do universo chinês

É isto a paisagem com sentimentos que referirá em narrativas posteriores. Mesmo quando parece fazer crónica ou descrever de forma próxima a realidade (aparentando um relato sem ficção) estamos sempre perante um sujeito que se procura, constrói e reinventa nas malhas da escrita. Através das paisagens, dos retratos, das histórias estrangeiras, quem se pretende alcançar e conhecer é esse sujeito da escrita que desesperadamente continua a insistir na solidão que o estrangeiro lhe provoca e na sua condição de insolúvel angústia.
Tal se encontra na obra escrita em Pequim nos anos 80 quando Ondina Braga regressa ao Oriente, mais uma vez na qualidade de professora de Português, ensinando no Instituto de Línguas Estrangeiras. Apesar do entusiasmo que revela pelo mundo chinês aparecem as marcas dolorosas do exílio (a doença da alma) que se vão tornando dominantes à medida que a narrativa avança.
Pequim, cidade de sonho, não consegue sobrepor-se à melancolia, à depressão, ao tédio - males desconhecidos dos chineses e que são a marca mais ocidental desta escrita oscilando entre o entusiasmo e o sofrimento.
Existe ainda outra dominante nesta obra: a presença dos poetas e da poesia chinesa (Se reconsidero, acho que jamais me teria apaixonado assim pela China, não fossem os seus poetas. AP, 45). Voz atravessada por outras vozes, assim vai dando a conhecer a literatura chinesa a um público português que, na sua maioria, ignora ou apenas soletra o nome de poucos autores chineses.

Esta mesma exaltação pelas "coisas" chinesas atravessa os contos de A China Fica ao Lado. Traduzidos recentemente para chinês, em simultâneo com uma nova edição publicada em 1991, estas narrativas continuam a tendência para a ausência de história, preferindo o breve recorte de personagens e quadros. A figura feminina aparece destacada (como aliás se verifica em toda a obra de Ondina Braga): a jovem que vem abortar a casa do doutor Yu e que acompanhamos na longa noite de memórias e dores; a solitária Miss Caroll, professora chinesa do colégio de Macau que enche o quarto de espelhos-lembrança; a pura e inocente Tai Ku, que assassina a nova concubina do pai por ódio de raça (Tinha encontrado Deus, era verdade, mas jamais se encontrará a si própria - C, 24); a paixão de A-Mou, crescendo ao ritmo da lepra que a vai devorando; a misteriosa louca que espera um ausente nas praias de Coloane; e ainda as histórias de avós de onde quase sempre vem a sabedoria e uma sagrada energia - vasta galeria de mulheres envoltas em sopros de mistério que faz delas as detentoras do tempo e do seu trânsito.

Outra característica assinalável no conjunto destas narrativas - traço igualmente fundamental em Estátua de Sal e, por maioria de razão, em Angústia em Pequim: o convívio com a comunidade chinesa. Macau-português praticamente se reduz ao espaço da língua portuguesa que a professora ensina. De resto é a ausência preenchida com os lugares chineses, as histórias chinesas, os amigos chineses.


Tal opção está também presente em Nocturno em Macau (1991), de todas as narrativas citadas a única que recebe a designação de romance e obedece aos imperativos da ficção através da personagem Ester que, no entanto, é muito identificável com a personagem-autora das narrativas anteriores.
Macau é representado através do microcosmos da casa-das-professoras: pequena comunidade de vozes cochichadas e muita solidão. Ester aparece sempre carente de uma conversa íntima e amiga mas as suas companheiras, da chinesa Xiao à goesa Dhora, escondem-se detrás de máscaras várias. Cada um constrói a sua fortaleza armadilhada de indecifráveis expressões, e o jogo alheio consistem interpretar e efabular os minúsculos sinais que podem revelar a vida anterior.
Os habitantes deste pequeno universo sem tempo procuram representar-se como seres imutáveis, alimentando-se contudo do movimento veloz das suas paixões ocultas. O vulcão debaixo das montanhas - retrato pessoal que serve para descrever Macau. Da terra poucas paisagens se recortam, poucos lugares reconhecemos, mas essa impressão de fogo lento consegue numa pincelada dar corpo ao que de mais misterioso e palpitante existe nesta terra. 
Contudo, mantém-se a tendência já apontada em narrativas anteriores para afastar da representação o mundo português de Macau. Ester tem uma clara preferência pelo universo chinês, o que se consubstancia na paixão por Lu. Nunca existe, porém, a presunção de que se compreende esse mundo estrangeiro: tal como na relação amorosa, o encanto é fugaz e incompleto, quer dizer, nunca satisfeito e por isso se revela duradoiro. Esse Macau-chinês que Ester tanto aprecia é interpretado e lido da mesma forma que os caracteres da carta enviada por Lu: A inventar mais que a traduzir, a professora-de-inglês, e a gozar com tal jogo (NM, 57).

A China fica ao lado - mistério insondável

Também a paisagem é um jogo que é dado ao leitor para que invente aquilo que falta ao quadro, embora as histórias transmitam muita informação sobre a China: usos, costumes, a condição feminina e as transformações sociais.
Apesar do entusiasmo que transparece pela nova China, em contraste com o subdesenvolvimento e miséria da China imperial, não deixa de existir uma fina e sensível apreciação dos traumatismos que resultam das abruptas mutações. Um dos exemplos que aparece repetido é o desligar dos pés: embora simbolize a libertação das mulheres constitui igualmente uma humilhação mal vivida, além de uma real dor física que ilustra a dualidade do bem e do mal. É este tipo de duplicidade que Maria Ondina Braga gosta de explorar mostrando a complexidade existencial.
Várias histórias apresentam Macau como lugar de fuga e de refúgio para os chineses desiludidos com a nova China, sobretudo no período da Revolução cultural. Deste modo, o território constrói-se como espaço de exílios vários: portugueses saudosos da pátria, goeses fugidos da invasão, chineses em em busca de um eldorado.
Por via da saudade, em Pequim ou em Macau, a escrita destila um sofrimento só possível de resolver com o regresso ao lugar de origem (como acontece no final de Nocturno em Macau): a palavra torna-se dor mesmo quando parece dedicar-se por inteiro à descrição de uma paisagem ou de um retrato. Por mais que os lugares atraiam Maria Ondina Braga é ela própria que se procura na violência do conflito com o espaço estrangeiro.
Quanto mais estranho mais longe se chega na deambulação interior. Talvez por isso se rejeite qualquer proximidade com o mundo português de Macau e se prefira caminhar por entre a densidade do mistério chinês. A China fica ao lado porque o seu entendimento é inalcansável. Em comum, a dor - como diz Li Po que Ondina Braga escolhe para epígrafe de uma das suas obras: É indizível / a dor que está / no coração / do homem (tradução de Jorge de Sena).

George Chinnery: «Rapariga com uma criança ao colo»

George Chinnery 
«Rapariga com uma criança ao colo». C. 1827-30. Lápis obre papel.
(in Oriente, nº 5. Abril de 2003)

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O Arco das Portas do Cerco

O Arco das Portas do Cerco, cerca de 1920
Fotografia do Catálogo da Exposição Reminiscências. Fotografias de Macau Antigo. 2009


O Arco das Portas do Cerco foi construído entre 22 de Agosto de 1870 e 31 de Outubro de 1871, tendo sido inaugurado nesta última data.
Dedicado à memória do Governador João Maria Ferreira do Amaral, bem como à tomada do forte de Passaleão, no arco encontram-se quatro lápides, duas nas paredes exteriores e as outras duas nas paredes interiores. As duas primeiras evocam, respectivamente, as datas do assassinato de Ferreira do Amaral - 22 de Agosto de 1849 - e a tomada do forte de Passaleão - 25 de Agosto de 1849. Nas outras duas encontram-se gravadas as datas de 22 de Agosto de 1870 e 31 de Outubro de 1871.

Data de 1573 a construção da muralha do istmo. A porta, conhecida entre os portugueses por  "Porta do Limite" ou "Porta do Cerco" e entre os chineses por "Kuan Chap", terá sido levantada em 1574, e possuía na sua parte superior residências para os guardas chineses. "Tendo posteriormente ruído, foi reconstruída em 1674, ficando então as residências em edifício anexo"( in História da Arquitectura em Macau).  Inicialmente, só eram abertas dois dias em cada lua, para a realização de um mercado onde os portugueses abasteciam-se dos géneros necessários; passados anos estabeleceu-se um mercado semanal. Por fim, a "Porta do Cerco passou a abrir-se todos os dias, o mercado internou-se e fixou-se; pouco a pouco o zelo dos procuradores enfraqueceu, a brilhante e industriosa actividade chinesa insinuou-se, fez-se benquista e foi construindo e multiplicando casas, lojas e oficinas" (As Alfândegas Chinesas de Macau, citado pelo P. Manuel Teixeira). Após a tomada de Pak Shán Lan ou Passaleão, por Vicente Nicolau de Mesquita, a muralha foi destruída e substituída por um posto avançado português que ocupava toda a área entre as Portas do Cerco e o Passaleão.

O Arco das Portas do Cerco encontra-se classificado património cultural.


Fontes:
Maria de Lourdes Rodrigues Costa. História da Arquitectura em Macau. Instituto Cultural de Macau, 1997
P. Manuel Teixeira. A Voz das Pedras de Macau. Macau, Imprensa Nacional, 1980
Pedro Dias. A Urbanização e a Arquitectura dos Portugueses em Macau, 1557-1911, Edição Portugal Telecom, Lisboa 2005.

"Notas sobre o Passaleão" de João Aguiar


"Notas sobre o Passaleão" 
de João Aguiar
Os Comedores de Pérolas 

"Há coisa de meio século e meio, houve em Macau outro 25 de Agosto insuportavelmente quente. As ruas da cidade estavam então bem silenciosas, não só porque havia menos habitantes mas também porque os habitantes se calavam, tolhidos pelo medo.

A Sé Catedral. Cerca de 1910. 
Fotografia do Catálogo da Exposição Reminiscências. Fotografias de Macau Antigo. 2009


Na Sé, em frente do altar-mor, rodeado de flores que já começavam a murchar, jazia em modesta pompa o corpo do governador  Ferreira do Amaral. O caixão estava fechado e devia ser selado nesse mesmo dia. Não houvera exposição: não se podia mostrar aquele corpo sem cabeça, sem braço direito e sem mão esquerda. Nem as conveniências nem os estômagos o permitiam.
A igreja estava deserta, o corpo mutilado repousava solitário dentro do caixão desde que o bispo D. Jerónimo da Mata pronunciara as orações fúnebres com a devoção de quem não sabia muito bem se estava a rezar pelo governador se por si próprio.
Ninguém o sabia, de facto. Desde que Ferreira do Amaral fora trazido assim da Porta do Cerco, Macau esperava o cutelo chinês. Das fortalezas - do Monte, da Guia, de Mong Ha, os soldados tinham visto, nos últimos dois dias, tropas a concentrar-se no outro lado, dentro e em redor do Pak-Shan-Lan. Ninguém duvidava de que o assassínio fora ordenado pelo vice-rei de Cantão. E embora naquela parte do mundo houvesse forças ocidentais - navios ingleses rondavam costumeiramente por onde quer que fosse -; embora os ministros das potências europeias tivessem declarado solidariedade e alguns dos omnipresentes barcos da Rainha Vitória viessem a caminho, não seriam muitos os que acreditavam que os novos impérios da Europa se incomodariam verdadeiramente com a desgraça do velho leão lusitano.
Aliás, precisamente nessa manhã de 25 de Agosto, enquanto os resto do governador entrevam em processo natural de decomposição, os ministros estrangeiros aconselhavam grande prudência ao Conselho que o substituíra.
O Conselho do Governo estava reunido no Palácio, embrenhado numa daquelas discussões inúteis que só são possíveis em circunstâncias serenamente desesperadas, quando o fim ainda não chegou mas está próximo. E os ministros das potências velavam recatadamente o cadáver futuro.
Acontecia isto quando a cidade ouviu os canhões.
No Palácio também os ouviram e o bispo estremeceu. O ajudante-de-campo do Conselho, um jovem alferes de Artilharia, precipitou-se para a rua, montou a cavalo e abalou à procura de notícias. Voltou, não muito mais tarde, com o uniforme desalinhado e o rosto fechado e duro; o seu cavalo resfolegava de cansaço. O oficial desmontou de um salto, entrou a correr para a sala onde o Conselho se encontrava.
- Estão a bombardear a Porta do Cerco! - gritou ele da entrada, sem se preocupar com etiquetas. Os senhores do Conselho falaram todos ao mesmo tempo e o alferes precisou de levantar a voz para se fazer ouvir:
- Temos lá cento e vinte homens e três bocas de fogo que não alcançam o inimigo. Não vão aguentar muito mais tempo.
- Como sabe?! - perguntou o barão de Forth-Rouen, o ministro francês, que na excitação se esqueceu, ele também, do protocolo.
O alferes voltou-se para o grupo dos diplomatas estrangeiros e envolveu-os num olhar frio. Era uma sensação desagradável, ver aqueles olhos rasgados de oriental que lhes lembravam mais a tropa concentrada no Pak-Shan-Lan do que um soldado português: o oficial chamava-se Vicente Nicolau Mesquita, nome cristão, civilizado; mas era macaense, um filho daquele estranho e decadente império luso, que cruzara tanto sangue diferente.
- Sei - respondeu ele - porque venho da Porta do Cerco e aquilo é um inferno. - Dirigiu-se então ao bispo, como seu comandante supremo, visto que presidia ao Conselho: - Não podemos responder ao fogo com a nossa artilharia. Temos de atacar o Passaleão.
De novo, todos falaram ao mesmo tempo, a dizer a mesma coisa. Sabiam que o bombardeamento era o prelúdio da tomada de Macau. Mas no Passaleão (como os portugueses chamavam ao forte de Pak-Shan-Lan) havia, pelos cálculos dos vigias, cerca de quinhentos soldados; nas elevações vizinhas estavam mais de mil e quinhentos, com artilharia, e chegavam constantemente reforços. Era impossível atacar, ninguém o podia fazê-lo.
- Eu posso! - gritou o ajudante-de-campo.

***

... E eu não posso continuar a perder tempo com este assunto.  Não sei sequer se o que escrevi aconteceu assim, a 25 de Agosto de 1849. O que disse exactamente Vicente Nicolau de Mesquita ao bispo D. Jerónimo? O que lhe respondeu o bispo? O que disse o barão de Forth-Rouen? E terá Mesquita olhado friamente os ministros estrangeiros, entre os quais estava, por exemplo, o espanhol Sinibaldo de Mas, que além de um nome impossível deixou excelente reputação em Macau?
Ninguém pode saber. Como ninguém pode saber o que ia na cabeça do ajudante-de-campo quando saiu do Palácio e marchou para a Porta do Cerco à frente de dezasseis voluntários, com um morteiro - para atacar as linhas inimigas e uma fortaleza eriçada de artilharia. Só posso recorrer à imaginação, porque as próprias gravuras não merecem inteira confiança. É com os olhos da imaginação que vejo Mesquita chegar à Porta com os seus dezasseis malucos (mais o morteiro) e entregar ao comandante a ordem do Conselho e preparar-se para avançar sobre os arrozais. Tudo isto debaixo de fogo.
A Macau dessa época desapareceu completamente. Não consigo ver a paisagem dos arrozais. Mas vejo os cento e vinte homens - com os reforços: dezasseis voluntários e um morteiro - alapados no terreno alagadiço; e Mesquita a carregar e a assestar a peça; e o tiro e a explosão que provocou morte e pânico dentro do Passaleão...
O morteiro era francês. Mas, muito portuguesmente, ficou inutilizado com esse primeiro tiro. Vejo Mesquita, furioso com o seu material. E enquanto as balas disparadas do forte passam e assobiam, vejo-o apostrofar o capitão Sampaio, o comandante da guarnição, e invocar a autorização do bispo e gritar aos homens, quem se oferece, vamos atacar.  Debaixo do tiroteio, mais vinte soldados dão um passo em frente.
Ah, sim, foi uma história muito portuguesa: a fraqueza irremediável de Macau, a avaria do morteiro, o avanço de Mesquita com os trinta e seis voluntários. Com o recrudescer do fogo, o capitão, lá atrás, ordenou retirada; Mesquita, ao ouvir o toque, deu ao seu corneteiro a ordem contrária. Uma bala veio partir a corneta em dois bocados e foi ele que gritou à carga, vamos a isto, vamos dar cabo deles.
Tomaram o forte. Um soldado goês chamado António Simão desfraldou a bandeira portuguesa no alto das muralhas. Lançaram fogo aos paióis. E voltaram com a cabeça e o braço de um mandarim morto: o que se pode chamar uma subtil alusão ao que haviam feito os assassinos de Ferreira do Amaral.
E esta é a história que eu queria escrever. Mas não convém. Neste final de século e de ciclo, tanto Ferreira do Amaral como Vicente Nicolau Mesquita estão profundamente esquecidos pela esmagadora maioria dos portugueses. E aqui em Macau, não estão esquecidos mas são profundamente incómodos.
Fim das notas sobre o Passaleão.
E por que é que esta história me fascina?
Porque, com todos os seus defeitos, Vicente Nicolau de Mesquita e João Maria Ferreira do Amaral pertencem àquela raça, hoje extinta, dos portugueses que fizeram e durante séculos mantiveram Portugal como país. Além disso, ambos são heróis trágicos, ambos pagaram o tributo exigido pelos deuses. Um foi assassinado, o outro enlouqueceu. A estátua de Vicente Nicolau de Mesquita foi derrubada e desapareceu nos tumultos da Revolução Cultural; a do governador, tão sólida que resistiu aos esforços dos revolucionários culturais, deve ser desmontada muito em breve.
Há ainda outra razão. Embora ninguém o diga abertamente, sinto que eles hoje são um embaraço para a nossa diplomacia sínica (!). E só isso bastaria. Desde que me estreei no jornalismo, nunca resisti à tentação de tentar embaraçar o Poder." (p. 54-58)
João Aguiar. Os Comedores de Pérolas. Edições Asa, 1993


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (XIX)

XIX
A Festividade

Terminado o julgamento de Cheng-Cheong-Van, e cumpridas as formalidades da lei, foi entregue ao Superior do Templo de Á-Má a preciosa imagem.
Este veio ao Tribunal Judicial, acompanhado duma comitiva de bonzos, receber o Tesouro e com ele se dirigiu, em procissão, para o Templo da Barra, seguido de imenso povo.
Dois dias depois, à meia-noite, o Templo de Á-Má mostrava-se profusamente iluminado e tudo indicava ser dia de festa.
A escadaria e o pátio estavam apinhados de vendilhões ambulantes que expunham aos olhares cobiçosos dos fiéis, que acorriam ao templo, belas frutas e apetitosos bolos, canjas e chás.
A população fluvial da Colónia quase se encontrava toda em terra com os seus trajes de festa.
Os lenços, bordados e estampados a ouro e a vermelho das tancareiras contrastavam as cuias de cabelos lisos e brilhantes de paufá, de que se orgulhavam as mulheres da cidade.
As cores berrantes das cabaias davam ao ambiente um ar de gala, que não se confundia.
Os homens, em vozearia interminável, indicavam esperar qualquer acontecimento de importância, e a petizada embasbacada mantinha-se a distância, em ar de reserva.
No Templo, no altar central, a preciosa imagem da Deusa Á-Má, expunha-se altiva aos olhares dos fiéis.
Ladeando o altar, filas de altas cadeiras de pau-preto mostravam que se aguardava cerimónia de importância, a que assistiriam pessoas de alta categoria.
No chão, em frente ao altar, um grande incensador emparelhava com uma preciosa pira de bronze onde o fogo votivo era mantido pelo bonzo de serviço que, de momentos a momentos, fazia soar um gongo, colocado à direita do altar, com duas pancadas secas e intervaladas.
No Largo do Pagode, a multidão afastava-se aos gritos dos cúlis e, junto à escadaria, sucediam-se as cadeirinhas e os jerinxás, donde se apeavam algumas autoridades da Colónia e chineses de categoria.
À meia-noite e meia-hora, os bonzos tomavam lugar nas cadeiras colocadas à direita do altar e as autoridades e pessoas de categoria nos assentos da esquerda.
Lau-Sin tinha lugar de honra junto ao Procurador dos Negócios Sínicos, que ocupava o primeiro lugar.
O Superior avançou para o altar, vestido de paramenta festiva, acendeu alguns pivetes, que colocou junto à imagem, ajoelhou, bateu cabeça três vezes e começou um recitativo, que os restantes bonzos repetiam em coro.
Finda a reza inicial, foram apresentados cumprimentos ao Procurador e, seguidamente, Lau-Sin foi convidado a celebrar a cerimónia, que o ritual impunha.
O polícia, ricamente trajado de longa cabaia de brocado, sapatos de seda preta e sola branca e de barretinho de brilhante cetim, ajoelhou junto ao altar, recebeu das mãos do bonzo, mestre de cerimónias, alguns pivetes e, respeitosamente, bateu cabeça, segundo o estilo.
Finda esta ligeira e impressionante cerimónia, entregou cem patacas ao Superior, dinheiro que se destinava aos pobres e, fazendo as vénias da etiqueta, retirou-se para o seu lugar.
Então as autoridades e pessoas de categoria entregaram todas o seu óbolo, aguardando que fosse dado o sinal de que a cerimónia estava terminada.
O gongo começou a soar e, à terceira pancada, o Superior deu por finda a cerimónia religiosa, convidando os seus distintos hóspedes a entrarem na Bonzaria.
Uma longa mesa de pau-preto, com embutidos de madrepérola, encontrava-se coberta de variadas iguarias que todos comeram, bebendo de quando em quando o precioso chá de pétalas de  crisântemo.
Entretanto, no átrio, os bonzos distribuíam esmolas aos pobres, que de toda a cidade acorriam a prestar homenagem à Santa de tanta devoção.
Começou então a ouvir-se o estalejar de intermináveis fiadas de pauchèong, até que o gongo da Bonzaria anunciou estar terminada a festividade.


E, com o decorrer do tempo, foi esquecido o "Caso do Tesouro do Templo de Á-Má", que aqui deixamos revivido, até que volte a ser esquecido... como a quase tudo acontece.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

"Fire Crackers" e Panchões

"Fire Crackers" e Panchões
"Os chinezes são um povo essencialmente amigo de tudo que é ruidoso; nas ruas a gritaria é de ensurdecer, porque milhares de pessoas fallam e gritam constantemente; para elles são desconhecidos os sons de uma musica suave, porque só gostam do "forte" e do fortissimo".
Assim para elles não haveria festa completa, se não tivessem descoberto um meio de fazer bulha; inventaram os "fire-crackers", chamados entre nós "fogos da China"; nome que não adoptámos, porque não dá, como a expressão ingleza, uma idéa exacta do que é.
Os "fire-crackers" são pequenas bombas feitas com envolucro de papel, e do tamanho e feitio da metade de um cigarro. Estas pequenas bombas estão ligadas umas ás outras, aos centos e aos milhares; com essa especie de restea envolve-se um mastro erguido no chão, ou suspende-se a restea do ramo de uma arvore; é a isto o que se chama um panchão. Chega-se-lhe fogo, e começa a fuzilaria, que dura ás vezes mais de meia hora, ouvindo-se de espaço a espaço os indispensaveis petardos, a que se vem juntar o estalar de caixas dos mesmos fire-crackers, que se atiram ardendo ao chão.
Um bom chinez, - embora pobre e sem arroz para comer - deixar de queimar fire-crackers por qualquer festa?!... isso nunca!"
J. Heliodoro Callado Crespo. Cousas da China - Costumes e Crenças. Lisboa, Imprensa Nacional, 1898, p. 244

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Cousas da China - Costumes e Crenças

COUSAS DA CHINA - COSTUMES E CRENÇAS por J. Heliodoro Callado Crespo.
Lisboa, Imprensa Nacional, 1898

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (XVIII)

XVIII
O regresso

Dois dias depois, terminados os preparativos necessários, Lau-Sin, senhor do tesouro, e acompanhado do terrível pirata Cheng-Cheong-Van e de A-Sou, deixava a cidade de Fu-Chau a bordo de um grande barco à vela, com destino a Macau.
O vento, soprando sempre favoravelmente, não tornou a viagem demorada e, ainda que tivesse tido necessidade de um pequeno desvio para fugir a uns restos de tufão, cujos efeitos não deixaram de ser sensíveis, o barco aportou à cidade do Nome de Deus, numa manhã radiosa do mês de Junho.
Não escapou aos olhares curiosos da multidão, que na azáfama diária se cruzava na Avenida Marginal do Porto Interior, o desembarque do polícia que trazia consigo, bem algemado, um homem de estatura colossal, que não aparentava desconhecer a cidade.
Lau-Sin dirigiu-se imediatamente à Procuratura dos Negócios Sínicos e aí fez entrega do criminoso ao Procurador que, cumprindo as formalidades necessárias, o fez dar entrada na Cadeia Pública.
Desembaraçados do criminoso, o procurador e o polícia quedaram-se durante algum tempo na contemplação da preciosa imagem.
Foi chamado o Superior do templo de Á-Má, que afirmou ser aquela a imagem que tinha sido roubada; e o Procurador prometeu-lhe que ela lhe seria entregue logo que estivessem cumpridas em Juízo todas as formalidades processuais.
No dia seguinte, no livro de Ordens de Serviço da Procuratura, a páginas quarenta e sete, verso, lia-se um louvor do teor seguinte:
"Eu, F... Procurador dos Negócios Sínicos, no uso do direito que me confere o número 5º do artigo 24º do capítulo III do Regulamento da Procuratura dos Negócios Sínicos de Macau, aprovado pela Portaria Régia de 24 de Agosto de 1898, LOUVO o chefe da Polícia Secreta desta Procuratura, Lau-Sin, pela coragem, zelo e competência demonstrados no aprisionamento do célebre pirata Cheng-Cheong-Van.
Recomendo a todo o pessoal da Polícia Secreta que siga os exemplos do seu Chefe, funcionário de que esta Procuratura se orgulha, por tantas e tão distintas qualidades que nele concorrem.
Macau, ... de Junho de ....
O Procurador
(assinatura)"

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

Sinais indicativos de tufão, 1924


segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má

XVII
Entre amigos


Já ia alta a noite quando na Prefeitura da cidade, no gabinete do chefe da Polícia, se encontravam os dois velhos amigos Lau-Sin e Vong-Seng-Kuong, comodamente instalados em duas cadeiras de espaldar, conversando sobre os acontecimentos que tinham provocado tão desejado e, ao mesmo tempo, evitado encontro.
Lau-Sin, com a ferida que o punhal assassino de Cheng-Cheong-Van lhe tinha feito, devidamente pensada, e envergando uma cabaia curta que Vong-Seng-Kuong lhe emprestara, fumando um delicioso charuto e, de quando em vez, dominava a excitação nervosa, que a luta lhe tinha provocado, com demorados golos de um magnífico brandy, que o amigo lhe servira.
- És um incorrigível! - exclamou Vong-Seng-Kuong.
- Esta já não é a primeira vez que me salvas a vida - respondeu Lau-Sin
- Mas como sabias tu que eu não ignorava que te encontravas nesta cidade?
O polícia, olhando-o com um sorriso, disse:
- És sempre gentil para com os amigos; mas confessa que quando te dirigiste à várzea Man-Fong não pensaste no auxílio que poderia oferecer-te, em caso de apuro.
- É facto - disse Lau-Sin - que, quando me atrevo a um empreendimento qualquer, não penso nas consequências e conto somente comigo próprio e... com a boa estrela, que deve acompanhar um polícia; mas não é menos verdade que, no caso presente, mesmo sem o teu auxílio, apesar de ferido, ainda estava em condições de pôr os guarda de Cheng-Cheong-Van fora de combate, porque já tinha dominado o chefe. Desculpa, caro amigo, mas o teu auxílio não foi realmente tão valioso como supões. Como polícia dou-lhe o valor, que teve, da oportunidade. Esta opinião, porém, em nada diminui o merecimento do teu trabalho, nem afecta a minha gratidão pela decisão imediata que deste ao caso.
- Ora é aí mesmo - disse Vong-Seng-Kuong - que está o perigo das tuas façanhas policiais: Queres ser sempre tu, e só tu, a trabalhar, sem auxílio de quem quer que seja. Mas, resumindo, que vieste fazer a esta cidade, como te viste envolvido em luta com os homens de Chau-Seng e porque evitaste a minha pessoa?
- É simples a resposta, meu velho - disse Lau-Sin, inspirando profundamente o fumo do delicioso charuto, que tinha na boca. - Cheng-Cheong-Van, há meses, em Macau, por altura do Ano Novo, entrou no templo de Á-Má, apunhalou o bonzo Lau e roubou a imagem de Tin-Hau. Por dedução cheguei à conclusão de que esta estaria nesta cidade e para aqui parti, não tendo sido, ao que vejo, mal sucedido.
- Mas porque evitaste a minha pessoa? - insistiu Vong. - Sim! Porque não me procuraste, sendo amigos como somos? Eu sei que estás nesta cidade há dias e tenho-te seguido apenas com o fim de auxiliar-te, se de mim precisasses.
- Eu te digo: - declarou Lau-Sin paulatinamente. - Eu queria prender o assassino e levá-lo comigo para Macau. Ora, com o teu conhecimento, não me parecia fácil satisfazer o meu desejo.
- Mas porquê? - atalhou Vong. - Claro é que eu não posso entregar-te o criminoso, em face da lei, sem mais formalidades; mas posso soltá-lo no barco onde partires para Macau, cabendo-te a ti o entendimento com o dono ou patrão da embarcação para que ele vá às tuas ordens e como teu prisioneiro. Deve ser uma questão de dinheiro.
Lau-Sin tinha parado de fumar e olhava atento para Vong. Logo que este terminou, levantou-se e disse cheio de esperanças:
- Pois entregas-me Cheng-Cheong-Van?
- Porque não? - disse Vong. - Se cá ficasse morreria e, indo contigo para Macau, desaparece desta cidade, que é o que me interessa.
Lau-Sin, abraçando o seu velho amigo, exclamou, disposto a sair:
- És um bom amigo e um bom polícia!
- Espera! - disse Vong. - Eu não sou curioso, mas em troca do favor que te faço, peço-te que respondas a uma pergunta.
- Dizei! - exclamou Lau-Sin, pondo-se de reserva.
- E a imagem?
- A imagem... bem vês... não me interessa particularmente e, de resto, ... eu não vim cá à procura dela.
- Meu velho! - disse Vong serenamente. - Todos nós temos um ponto vulnerável: Quando ontem saíste da hospedaria, onde estás instalado, os homens de Chau-Seng, dirigidos pelo bonzo Chan do Templo de Tin-Hau, entraram no teu quarto, remexeram tudo quanto lá tinhas e roubaram a imagem que tu, por mero acaso, tinhas conseguido reaver para o templo de Macau.
- Que dizes? - perguntou Lau-Sin sobressaltado.
- É verdadeiro o que acabo de te contar - disse Vong serenamente.
- Paciência! - exclamou Lau-Sin, procurando disfarçar um abatimento moral que o confrangia. - Serei mais feliz para outra vez!
- Velho amigo Lau-Sin! - disse Vong, dando-se ares de importância. - O teu amigo Vong fez o que te faria se tivesses pedido o seu auxílio, quando aqui chegaste. A imagem está em meu poder, porque os meus homens têm estado de guarda aos teus aposentos. - E, tirando a imagem dum pequeno armário, entregou-a a Lau-Sin, acrescentando: - Tomai esta preciosidade e levai-a para que ela continue guardando, como até aqui, a cidade da Porta da Baía, onde se desfruta paz e onde se vive feliz.
Lau-Sin, com lágrimas nos olhos, abraçava comovido o seu velho amigo e dele recebia a preciosa imagem, dizendo:
- Obrigado! Obrigado! Somos dignos um do outro. Eu serei mais ousado que tu, mas tu és mais previdente que eu.
O Sol começava a nascer e, ao calor dos primeiros raios, abriam os lírios no jardim da Prefeitura.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

"Macau" de Antoine Volodine















MACAU
Antoine Volodine
Olivier Aubert (fotografias)
Traduzido do francés por Ana Isabel Sardinha Desvignes
Sextante Editora. Junho de 2012




"Para acender novo cigarro o velho servira-se da beata anterior. Eu tinha mais do que tempo e ocasião de lhe observar a cabeça que resistia ao cerco da penumbra, uma cabeça que as vicissitudes da existência haviam sulcado e enobrecido e que, a pouco e pouco, se transformara em máscara como as que usam os campónios e os pés descalços deste lado do mundo. Se o velho tivesse sido fotografado, poderia ter servido de capa a um daqueles catálogos consagrados aos anónimos da região do Guandong, camponeses, operários e pescadores, daquele género de livros com retratos de pobres em papel glacé que os turistas folheiam sem comprar." (p. 12) 
"Quando se vem de Hong Kong, é por mar que chegamos, embriagados com as nossas próprias emoções diante da paisagem, diante de uma experiência de pura beleza, de esplendor simples, acabados de deslizar durante uma hora por entre ilhotas desabitadas e uma costa que parece deserta, inundada de luz, calva, desprovida de árvores; chegamos por mar, mal tocando uma superfície de um verde de jade escuro onde nada ondula, onde traineiras, cruzadas aqui e ali, arvoram bandeiras vermelhas e se baloiçam como juncos." (p. 22) 

"Para nos mantermos apaixonados por aquele sítio, fidelidade, voluntária cegueira eram precisas!... Eu tinha-o descoberto dez anos antes, ainda sob forma de burgo colonial imobilizado nos anos quarenta e, a seguir, vira-o metamorfosear-se velozmente  em medonho subúrbio, graças a arquitectos medíocres que de todas as maneiras e feitios lhe tinham arrancado a velha alma secular, a velha alma luso-asiática. (...) Desagradava-me aquela visão do futuro próximo, a de um Macau de quem os profetas da desgraça diziam que viria a parecer-se com uma espécie de traseiras de hipermercado e de estação de triagem. (...) Não te esqueças de que aquele que te fala conheceu a Baía da Praia Grande, aquela curva perfeita onde corriam as águas amarelas, e não te esqueças do tempo das minhas primeiras viagens, quando eu ainda desembarcava sob os ventiladores coloniais, nas galerias sobre estacas do antigo terminal do jetfoil, e não te esqueças de que então, na ilha da Taipa, a maior parte das casas não tinha mais do que um andar" (p. 24)

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Morcego, símbolo da felicidade

Imagem do morcego na fornalha em forma de torre de pagode do Templo de Bambu ou
 Chôk Lam Chi. Macau, Agosto de 2012

No seu livro Pagodes de Macau o Padre Teixeira explica o significado da imagem do morcego, tão frequente nos templos chineses: "O morcego é o símbolo da graça, ventura e felicidade. A razão é engenhosa: o morcego em chinês chama-se fôk su; ora o vocábulo fôk é homófono de fôk, felicidade; em virtude desta homofonia, o morcego veio a ser o símbolo da felicidade".

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (XVI)


XVI
A surpresa


O embate dos corpos, no solo, indicava que os dois adversários não se largavam e que ambos estavam empenhados numa luta de morte.
Ora um corpo se projectava de encontro a um móvel, que tombava, ora o tenir de metais denunciava que ambos se encontravam armados e procuravam fazer uso das armas que possuíam.
Os guardas, por vezes, lutavam uns contra os outros, julgando baterem-se com A-Sou que, arteiramente, procurava intrometer-se na luta que se travava entre Lau-Sin e o pirata, com o único fim de auxiliar aquele.
Não era porém possível a A-Sou distinguir, na escuridão em que se encontrava o aposento, o que quer que fosse que lhe permitisse pôr em prática o seu desejo e ainda, de quando em quando, era atingido com violentos pontapés que o lançavam de encontro aos móveis, já todos desarrumados.
Pouco a pouco, porém, sobre o pavimento, a luta já não era tão movimentada e percebia-se que um dos adversários dominava. As pragas davam lugar a gritos abafados e roucos que se iam extinguindo.
- Uma luz! Uma luz! Tragam uma luz! - gritava um dos guardas.
Pelas frestas das janelas do aposento começava a coar-se luz vinda do exterior e, quanto mais acentuada ela se tornava, mais intrigados ficavam todos aqueles que sabiam que não era possível que qualquer auxílio lhes pudesse ser enviado.
Quase que instantaneamente foram arrombadas as portas do aposento que davam para o exterior e, com surpresa geral, Vong-Seng-Kuong, seguido de uma dezena de polícias bem armados e alguns munidos de lanternas acesas, aparecia à porta principal dando a todos voz de prisão.
A surpresa inesperada paralisou todos os movimentos e as atenções dirigiram-se para o pavimento do aposento onde o quadro era impressionante:
Lau-Sin, ensanguentado e com o traje e farrapos, dominava Cheng-Cheong-Van que, deitado de costas no pavimento, se apresentava algemado e com o rosto irreconhecível das violentas pancadas que o polícia lhe tinha vibrado. Junto ao corpo de Cheng-Cheong-Van estava um punhal, e Lau-Sin mostrava no ombro direito um golpe profundo, donde o sangue vertia sem cessar.
Lau-Sin tinha vencido o seu inimigo.
- Algemai esses homens - ordenou Vong-Seng-Kuong. E, voltando-se para Lau-Sin, disse:
- Tive que vir visitar-te porque estava cansado de esperar a tua visita.
- Chegaste a tempo, amigo - disse Lau-Sin. - Mas não julgues que não eras esperado. Aqui tens um criminoso terrível, devidamente algemado. Como vês, é boa a polícia de Macau.
Vong-Seng-Kuong, ao reconhecer Cheng-Cheong-Van, exclamou:
- Bom serviço. Há mais de dez anos que procuro este facínora e cumpre-me portanto agradecer-te penhorado o presente que me fazes. - E, virando-se para os seus homens, disse: - Guardas! Levai estes homens e tende o maior cuidado com este que é o célebre criminoso Cheng-Cheong-Van.
Lau-Sin, que se sentia enfraquecer pelo sangue que ia perdendo, disse: - Ajuda-me a atar este lenço sobre este golpe e vamos depressa a uma farmácia qualquer.
Vong-Seng-Kuong, depois de ter operado como convinha, deu o braço a Lau-Sin e, amparando-o, com este se retirou do aposento, deixando, no entanto, dois guardas de vigia à cabana.
Já os guardas caminhavam, amparando alguns criminosos que tinham sido feridos, quando Lau-Sin perguntou: - E A-Sou? Onde está A-Sou.
- Estou aqui - disse A- Sou que, mal podendo caminhar, se arrastava com o peito ensanguentado e apoiado sobre os ombros de dois guardas. - Parece que me apanharam desta vez. Paciência!
- Não, meu amigo - disse Lau-Sin aproximando-se. - Não te apanharam. Vamos já depressa procurar um médico.
E assim seguiu o grupo pelos carreiros da várzea, com destino à cidade.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

domingo, 12 de agosto de 2012

"Scouts em Macau", 1912





Illustração Portugueza, nº 339 de Agosto de 1912
Imagens retiradas do Flickr (1) (2) e (3)

" (...) Por iniciativa do governador de Macau, 2º tenente d' armada, Sr. Álvaro de Melo Machado, organizou-se ali um corpo de boys e girls scout, que tem causado grande entusiasmo n'aquela nossa possessão."


quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (XV)

XV
A cilada


Lau-Sin passara o resto da noite contemplando a imagem, que o acaso trouxera às suas mãos, e, tendo despedido o seu companheiro, com quem combinara encontrar-se ao cair da noite seguinte, adormeceu exausto ao romper do dia.
Astutamente tinha sido feito o convite ao ousado polícia, que projectara dirigir-se na noite seguinte à várzea "Man-Fong", com a esperança de aí poder encontrar o assassino do bonzo Lau.
Já o Sol marcava o pino quando o polícia se levantou.
O dia passou sem qualquer incidente e Lau-Sin, após uma lauta refeição servida no seu quarto, ajustou à cinta as suas pistolas inseparáveis e desceu à rua, que já se encontrava profusamente iluminada.
Olhando vagamente para uma e outro lado, caminhou resoluto em direcção ao fumatório de ópio do prédio nº 26.
Chegado à porta, certificou-se de que não era seguido e, no mesmo disfarce da véspera, entrou rápido a porta principal.
Tomando lugar na cama de ópio do cubículo preferido, deitou-se e começou serenamente a deliciar-se e a revigorar, mercê da droga a que o seu organismo se habituara.
Uns momentos depois assomava junto à cortina da porta do cubículo o seu companheiro da véspera e, após uns ligeiros cumprimentos, A-Sou tomava lugar junto ao polícia.
- Vieste armado? - perguntou Lau-Sin.
- Vim armado de revólver e trago comigo um punhal - respondeu A-Sou.
- Fizeste bem. Todo o cuidado é pouco. Usaremos o mesmo estratagema de ontem e diremos que vamos mandados de Chau-Seng. Tu nunca estarás junto de mim. Conservar-te-ás sempre à distância, de modo que tenhamos os movimentos livres e possamos acuar rápida e energicamente sem embaraços. A ordem é esta: - matar para não ser morto - assim falou o polícia.
- Como já te disse, estou às tuas ordens, porém, mais uma vez repito que melhor seria que não tentasses o que quer que fosse com os homens de Chau-Seng. Já tens em teu poder a imagem. Que mais queres tu? - perguntou A-Sou.
- Quero o criminoso - respondeu Lau-Sin. Tu olhas para este caso apenas como ladrão, mas eu olho para ele como polícia.
- Compreendo que os nossos papéis são diferentes e mesmo opostos e, pena tenho eu de não poder compreender-te. Devo dizer-te, em todo o caso, que esta curta convivência contigo tem operado uma certa alteração no meu modo de ser. Gostaria de ser polícia como tu - rematou A-Sou.
Lau-Sin, encarando com simpatia o seu companheiro, disse:
- Neste momento és polícia como eu e, se quiseres e o mereceres, poderás vir comigo para Macau, onde te alcançarei um lugar de polícia ao serviço dos portugueses.
- Agrada-me o teu convite - respondeu A-Sou entusiasmado. - Gosto dos portugueses que são, por vezes, violentos, mas francos e amigos dos chineses. Tenho-te servido com lealdade e sempre te servirei. Sou novo, forte e ousado. Espero que cumpras a tua promessa.
Lau-Sin, tirando do bolso da cabaia o seu relógio de ouro, exclamou:
- São horas. Partamos.
Momentos depois os dois homens estavam na rua e caminhavam em direcção ao templo de Tin-Hau.
Chegados juntos ao templo, Lau-Sin inquiriu:
- Para que lado?
- Para a frente - respondeu A-Sou.
Sobre um estreito carreiro de várzea, A-Sou caminhava adiante e era seguido pelo polícia, que não dava mostras de preocupação.
A neblina da noite começava a embaciar o ar e, muito ao longe, distinguia-se uma pequena luz que se coava pelas frestas da janela duma cabana.
Assim caminharam durante meia hora os dois homens até que, já próximos da cabana, ouviram uma voz que interrogou:
- Quem vem lá?
- A-Sou. Dize a teu amo que vem comigo  o senhor Kuan, que deseja falar-lhe sobre assunto importante.
- Caminhai adiante de mim - ordenou o guarda, sempre segurando com firmeza uma clavina.
Chegados à porta da cabana o guarda continuou:
- Bate três pancadas.
A-Sou cumpriu a ordem e aguardou os acontecimentos.
- Quem é?
- Eu, o guarda, e dois estranhos que desejam falar-te - respondeu o vigia.
A porta foi aberta e os três homens entraram, não vendo, porém, vivalma no compartimento, que se encontrava mobilado com riqueza e luxo.
- Esperai - disse o guarda.
A-Sou procurava afastar-se de Lau-Sin, mas o guarda, chegando-lhe às costas o cano da espingarda, disse:
- Permanece junto ao teu companheiro.
Uma mão forte e ossuda afastou o reposteiro que dava para o interior, e à porta assomava um homem forte e enérgico, bem trajado, que perguntou:
- Quem sois?
O companheiro de Lau-Sin, adiantando-se, disse:
- Eu sou A-Sou. Não te lembras de mim? Este é o senhor Kuan, que deseja falar-te sobre assunto de importância. Vimos aqui de mando de Chau-Seng.
O homem, que outro não era que Cheng-Cheong-Van, não olhando sequer para A-Sou, indicou a Lau-Sin uma cadeira, sentou-se noutra, e exclamiu;
- Falai.
Lau-Sin, fazendo vénia respeitosa, disse:
- Sou nativo do distrito de Hèong-San e o meu apelido é Kuan. Estou velho e desejava acabar os meus dias na Bonzaria do Templo de Á-Má, em Macau. Há meses, porém, foi roubada deste templo a imagem da Santa Venerada e eu, que nada tenho que me prenda à vida, pois o Céu não me deu descendência, desejava recolher ao templo, levando, como dote, digamos, a imagem que é de tanta devoção. Chau-Seng disse-me que vós me podereis informar do paradeiro da imagem e, como estou disposto a pagar por ela o que seja pedido, aqui estou para saber de vós o que poderá fazer-se sobre o caso.
- Eu vos digo: - exclamou Cheng. - A família Tong, a mais rica desta província, fizera a promessa de restituir ao Templo de Tin-Hau, desta cidade, a imagem roubada há anos. Fui eu incumbido de praticar o roubo e, assim, fui a Macau e, na véspera do Ano Novo, entrei no templo, assassinei o bonzo Lau, cravando-lhe um punhal no peito, forcei a arca, sobre a qual ele dormia, roubei a imagem e parti para esta cidade numa lorcha, que me aguardava fora do porto de Macau. Aqui, entreguei a imagem à família Tong, recebi a quantia ajustada, e só agora me vejo livre da perseguição do polícia Lau-Sin... porque o tenho em meu poder.
Lau-Sin levou imediatamente as mãos à cinta, mas o homem, continuando com a maior calma, disse:
- Não vale a pena tentar resistir.
Nas três portas do aposento apareciam homens armados apontando as pistolas sobre o polícia e o seu companheiro, que se conservavam estáticos.
Lau-Sin, refazendo-se do desagradável efeito da surpresa, acendeu com calma um cigarro e disse:
- Está bem! perdi a partida. Mas antes de levares a cabo o teu intento, deixa-me dizer-te que és reles e covarde.
Cheng-Cheong-Van, avançando para o polícia, com um sorriso de escárnio, exclamou por entre gargalhadas:
- Ilustre senhor Lau-Sin, afamado chefe da Polícia Secreta de Macau. Os seus dias estão contados.
E, ao terminar estas palavras, vibrou duas fortes bofetadas no polícia, que se conservou imóvel.
Enchendo-se então de raiva, e virando-se de costas para o centro do compartimento onde, sobre uma rica mesa de pau-preto, se encontrava o candeeiro de petróleo, que iluminava a cabana, acrescentou:
- Julgaste então que o pirata Chau-Seng e os seus homens seriam fraca presa dum reles polícia, que serve os demónios do ocidente?
Num salto de tigre o ousado polícia atirou-se sobre Cheng-Cheong-Van e os dois homens, desamparados, foram cair sobre a mesa que, tombando, lançou ao chão o candeeiro, que se apagou.
O nervosismo do momento fez desfechar à toa as espingardas e pistolas dos guardas do compartimento e no chão, por entre os móveis tombados, batiam-se em luta de morte os dois inimigos.
Os guardas não se atreviam a disparar sobre o pavimento do compartimento, onde a luta se travava, receosos de atingir o seu chefe, e A-Sou, tendo-se escapado de junto do guarda que o vigiava, cravava o seu punhal de morte em todo o vulto que lhe surgisse na frente.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

Panchões da "Marca Pato"

Panchões da "Marca Pato" (cerca de 1950) 
produzidos pela Fábrica de Panchões YEC LONG & Cª., 
estabelecida na Vila da Taipa, na Rua Miguel Aires, nº 14. 
Um aviso: "Não conservar os panchões acesos na mão"


quarta-feira, 8 de agosto de 2012

"Fabrico de Panchões". Ca. de 1960
Fotografia de Ou Ping
in Uma viagem no Tempo. Fotografias de Macau por Ou Ping". IACM, 2007


Os Pau-Chaus (Panchões - Estalos Chinezes)


Os Pau-Chaus (Panchões - Estalos Chinezes)


          Vivendo de fresca data, n'este porto interior, ha tantos annos abandonado pelos nossos, aqui mesmo, em frente do umbroso e fresco Pagode da Barra, um Pagode China dos mais venerados, pois diz a crença estar sob elle occulta uma unha do sempiterno dragão amarello, emblema e força do imperio Chinez, a toda a hora e a todo o momento o oiço crepitar em torno de mim, uns estalidos seccos e rapidos que semelham fuzilaria de regimentos em manobras, com ordem de fogo á vontade, produzidos pelos milhares de panchões que, de bordo dos innumeros tankás, juncos e lorchas de todos os feitios e tamanhos, são disparados, quando vão passando em frente do exotico templo, ao entrar e ao sahir o pittoresco e ao mesmo tempo açoriadissimo porto interior de Macau.
          Lá, no veneravel Pagode, ainda a madrugada aux doigts de rose, vem longe a abrir as portadas ao rutilante sol, já estalam sob as arvores os pau-chaus. De manhã, durante o dia, e sempre até alta noite, quasi ininterruptamente, estrugem o ar as repetidas descargas da inoffensiva fuzilaria, e, se atravessamos as ruas de Macau, quando succede defrontarmos os portaes rendilhados de estuques, de guardaventos de artistico entalhado, producto paciente do operario anonymo, muitas vezes acontece termos de nos arredar rapidamente, porque a nossos pés vem cahir, lançado apressadamente de uma janella, um vermelho masso de panchões, incendiados, que começam estralejando no meio de rolos de fumo acre e nitroso, pondo em perigo de incendio as brancas calças de nankim do tão conhecido Bexiga, alfayate da rua central.
          - Que significa este costume?
          - Desde quando está elle estabelecido na China?
          - Que mysterio é este, e para que tanto ruido?
         Parecendo puerilidade estas perguntas curiosas, todavia, ellas veem relacionar-se com outro problema mais curioso, qual o de saber, se a polvora com que está cheio o humilde tubosinho do panchão, é realmente uma descoberta chineza.

          Sabemos que a unica differença entre as invenções da raça branca e as dos habitantes celestiaes, é que na Europa qualquer descoberta adquire rapidamente vigor e desenvolvimento tornando-se um prodigio, uma maravilha! e na China, fica em estado de embryão, e ali se conserva estacionaria, senão morta. 
          - Porque a China, desde seculos e seculos que não se da ao trabalho de pensar; diz ella, pela bôca dos seus mandarins e letrados, que teve quem pensasse antigamente por si, e pelos seus modernos habitantes, e, portanto, agora não precisa entregar-se a progressos irrespeitosos para com a memoria dos avós, que o que fizeram e pensaram está e estará sempre bem feito; nada é necessario a mais do que está; e, assim, a China encerra-se em um tal immobilismo, que os fortes abalos, e os rudes embates das modernas civilizações occidentaes, muito francamente, muito debilmente, conseguem demover.          - A China de hoje, sabem todos os que aqui andam, é na sua substancia intima, moral e intellectual, tão primitiva e tão archaica, como era no tempo do grande philosopho Confucio.
          Na China, quem governa despoticamente com um jugo tyranno e eterno são os mortos!
          - Os mortos! dirão os incredulos europeus, de sorriso malicioso na face.
          Sim, os mortos, desde o reles e desprezado culi, até ao gordo mandarim; todos os antepassados.
          - O culto dos antepassados é tão grande, tão fortemente está arreigado ao cerebro de todo o china, que, qualquer ideia, qualquer projecto ou construção, qualquer progresso ou mudança de costumes que a civilização europeia queira introduzir ou impor. tem de retroceder fatalmente deante das innumeras superstições que ligam o china moderno ao pai, ao avô, ao bisavô, emfim a toda a linha ancestral, que o que está governando de dentro das originaes sepulturas espalhadas por todos estes montes, colinas e vales, que d'aqui se avistam, e que por toda a parte se encontram, dispostas de todas as maneiras, segundo os preceitos que os sieu-chau fong-choué, isto é, os doutores do fong-choué, determinaram ás respectivas familias do finado.
          - Aqui o Fong-Choué é tudo!
          - O Fong, isto é, aquillo que é invisivel, inconstante, imponderavel, o vento!
          - O Choué, o que se vê, que se pode medir, conservar, a agua. E o Fong-choué, esta ligação da agua e do vento, d'estas duas forças tão poderosas, formam um amalgama tão intangivel, tão cheio de occultas e mysteriosas influencias que a sua acção sobre o destino dos mortaes chinas é omnipotente!
          - Assim, tudo se regula mais ou menos em relação ao temor de um mau fong-choué, desde o dia em que no jogo do Paka-Pio se aposta na cabra e no bode, no leão e na corsa, até ao dia em que se toma uma esposa, ou se abre uma loja, ou se constroe uma caza!
          - O Dragão e o Tigre que, segundo os tratados volumosos e complicados que tratam da sciencia do Fong-Choué, estão ligados a estas duas forças, influem tambem no resultado de o tornar favoravel ou não, ao celestial sempre aflicto; e se nós formos ver que elle ainda tem que se dirigir a outras potencias, por egual temiveis, a outros espiritos e genios, tem que construir pára-fong-choués, uma especie do nosso pára-raios das habitações, tem que pintar, em bandeiras desfraldadas ao vento, os Pa-Kona, especie de rodas de fortuna com a sabia combinação dos Yin e dos Yangs, isto é, os principios macho e fêmea; tem de construir os Yung-peé, que são muros de tijolo protectores, e coser aos fatos, pegar nas hombreiras das portas os meus-cheus, e queimar pelas ruas, pateos das cazas, e dos pagodes os estralejantes pau-chaus, como poderá o pobre china mover-se dentro do circulo de ferro de tantas superstições, de que nada o pode demover nem arredar?

          (...)

          - Dirijamo-nos pois a um dos grandes factores da vida publica e particular do china, a superstição, e alli iremos procurar as problematicas origens do universalmente conhecido pan-chão, tão intimamente ligado a todas as festividades e acontecimentos notaveis dos celestiaes.
          - Seja esse detonante tubosinho, o signal mais remoto e mais simples, para o estudo curioso da polvora de artificio, e ainda o meio de chegar a um estudo da sua applicação ás armas de fogo chinas, usadas em guerras, seculos e seculos para traz dos primeiros preconisados inventores europeus, taes como Rogerio Bacon em 1220, o Bispo Rastibonna em 1280, e o conhecido monge Schwartz, em 1320, tivessem descoberto a mistura detonante dos 3 A.
          Muitos seculos antes que as nações da Europa fossem constituidas, já em um livro, o Huo-Pao, que trata de explosivos, diz: "Nos tempos da dinastia T'aug (do sexto para o decimo seculo A.D) existiam fogos de artificio, nos quaes - salitr misturado com carvão de pinheiro detona em jacto rectilineo, porém se se mistura com enxofre a explosão é lateral. Se se acrescenta ao mixto poeira de ferro (huang-fau) então a explosão forma um chuveiro de scentelhas muito luminosas.

          (...)

          Ora, para que será então o costume de fazer em qualquer occasião estrallejar os panchões?
          - Os proprios chinas parece não terem feito nunca nenhuma investigação.
          - Para quê?
          - Algum antepassado remotissimo começou o uso, seria falta de respeito á sua memoria investigar as causa.
          - Os antiquarios, dizem que os pequenos tubos detonantes da actualidade são o diminutivo e a imitação do som crepitante dos bambus, que se queimavam para affastar os maus espiritos.
Era esta uma pratica que vem citada em um livro intitulado Kuig-ts'u-sui-she-ki, publicado pela epoca do sexto seculo da nossa era.
          Ora este livro, abre com um capitulo que diz:
          "O primeiro dia do primeiro mez é o dia dos tres principios (querendo dizer que começa o anno, o mez e a estação) e no tempo de Confucio chamava-se kran-yuch ou seja em portuguez - o monte regulador.
          Ao cantar do gallo, o povo levanta-se, e a primeira cousa que faz é queimar e estalar bambus, em frente das suas habitações, a fim de expulsar para bem longe os malignos demonios chamados Shan-são."
          - Em um romance muito moderno, relativamente a tudo quanto é chinez, que é o Hung-low-meng, ou em portuguez "Sonhos da Camara Vermelha" - ha uma especie de enygma cuja solução é o "pau-chang".
          Disse que é modernissimo, porque n'este Far-East, todas as leis, usos e costumes são tão extraordinariamente antigos que este romance, datando do ultimo seculo, é perfeitamente actual.
Entrando no dominio da superstição, fere-nos a curiosidade perguntar o que serão esses taes Shan-são, que teem medo e se affastam pressurosos, quando algum bambu, aquecido pelo fogo estala com ruido.
          Na collecção enorme da litteratura china, o livro chamado Shen-i-King, diz alguma cousa sobre o maligno. Cita o repositorio de sciencia:
          "Entre as montanhas da China Occidental, ha uns seres de forma humana, mas apenas de um pé e meio de altura, que são por natureza muito inoffensivos; porém, se são offendidos ou atacados causam grande damno aos homens produzindo-lhes doenças, alternadamente por meio do frio e calor.
          Chamam-se Shan-são. Ora queimando bambus ao fogo, produzindo assim uns estalidos seccos e rapidos, ficam os Shan-são amedrontados e procuram imediatamente fugir para longe."
          - O tal romance intilulado "Sonhos da Camara Vermelha", escreve o seguinte verso, traducção liberrima de outra traducção ingleza dos caracteres chinas abaixo desenhados, e publicados no erudito Journal of the North China Branch. Of the Royal Asiatic Society - for 1869-1870.

"Todos os espiritos e demonios eu sujeito!
Tal é o meu poder enorme!
Minha voz tem do trovão o som
Mas a figura é um simples rollo informe!
Os homens tremem de espanto subito,
Com o meu terrivel estalar,
Comtudo sou só cinza e pó...
Antes que o feio medo, de mim se acerque a voar!"
          (...)

          Porém, o panchão alastrou-se, passou a ser usado tambem pelos habitantes de Macau, que o empregam em diversões e festas para animar e excitar com o seu ruido as reuniões, ao ar livre, pelo luar de agosto, quando o Tai-phun não revolve os ares em confusão medonha, e mesmo quasi adquire foros de official, quando festeja pessoas gradas, que regressam à metropole, ou tornam de longas demoras; mas o verdadeiro motivo, aqulle que vimos se vae perder nas longas eras archaicas, é sempre o mesmo, o pretexto de exorcismar os malignos Shau-siau quer elles, sedentos e avidos, se queiram apoderar de algum novo governador que chega á colonia, ou esteja atormentando alguma gentil nhonha de olhar maguado e pé ben fêto que festeje as suas juvenis primaveras em reunião macaista.

   Macau, 14-8-903

"Os Pau-Chaus (Panchões - Estalos Chineses) - por Filippe Paiva.
Revista Portugueza Colonial e Marítima, Nº 073, 7º anno, 20 de Outubro de 1903, 13º volume.


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (XIV)



XIV
O desespero do bonzo


Chan abrira precipitadamente a porta do Templo que dava acesso à Bonzaria e, em altos gritos, pedia socorro a todos os bonzos que acordavam estremunhados ante a loucura do companheiro, que não compreendiam.
- Socorro! Socorro! Fui roubado! - gritava o bonzo que Lau-Sin, momentos antes, desapossara da imagem preciosa.
O Superior da Bonzaria foi o primeiro a encarar o bonzo que, caindo-lhe aos pés, clamava humildemente:
- Perdão, Senhor! Perdão! Não brilhará neste Templo a imagem preciosa da Deusa do Céu! Perdão, Senhor! Perdão!
E batendo com a cabeça no chão, com acentuada violência, o bonzo contorcia-se como que possesso de espírito maligno.
O Superior, pleno de calma e de confiança, sentenciosamente disse:
- Se o Céu não quer que a imagem permaneça neste Templo nada mais temos a fazer que conformarmos-nos com a sua vontade. Não exageremos o valor da perda. Não é a qualidade do material que dá valor às imagens! Quantas não há, milagrosas como as melhores, que não têm qualquer valor real? Bem sabes que ao nosso Templo nunca faltou a protecção divina enquanto a imagem, em terras distantes, se oferecia à devoção dos fiéis e operava os milagres que o Céu lhe permitia. Antes te digo Chan, que o sossego e a paz, que neste Templo desfrutávamos, desapareceram com a restituição da imagem, roubada há anos. E como veio primitivamente  parar a este templo de Tin-Hau essa preciosidade? Ninguém o sabe! Não aprovo a ganância de mercador que preocupa o teu espírito. Antes gostaria de ver-te calmo e resignado, aceitando os acontecimentos como vontade que vem de cima que nós, mais que os outros, não deveremos contrariar. Deixa-te pois de excessos e afasta para longe de ti os maus espíritos que te fazem esquecer o lugar onde estás e a tua condição. Ainda que contrariado devo dizer-te que não me agrada o teu procedimento. A nossa Ordem é pobre, e da pobreza viveremos. Grande desgosto me deste com o tesouro do "Dragão perdido", e não espero que continues a olhar tanto para o Mundo, em vez de levantares os olhos para o Céu.
E, virando-se para os restantes bonzos, que o escutavam reverentes, acrescentou:
- Tomai de exemplo a que pode levar o pecado. Se algum de vós não está contente com a pobreza desta Ordem pode retirar-se... e que o castigo do Céu lhe pese pela vida toda.
Chan ouvira silencioso as ásperas palavras do Superior e, após uns momentos de hesitação, disse:
- Senhor! As vossas palavras foram como que um bálsamo divino que suavizasse a grande dor que me ia na alma. Tendes razão em todas as vossas observações e eu, mísero servo deste templo, reconheço que não tenho procedido bem. Foi de facto o valor material que tanto me apegou à imagem agora perdida, e vejo claramente que ao Céu não poderá agradar o meu procedimento.
O Superior, com ar paternal, aproximando-se de Chan, tocou-lhe no ombro e disse:
- Agrada-me que reconheças a razão que me assiste. Não falaremos mais no caso da imagem de "Tin-Hau" e cuidemos dos deveres impostos pelo Céu à nossa Bonzaria.
Do lado nascente uma ténue claridade deixava distinguir a linha do infinito e, pouco a pouco, por detrás da transparente cortina de humidade, surgia, radioso o Astro Criador.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949



Monges budistas. Cantão, 1869



sexta-feira, 6 de julho de 2012

Vendedores Ambulantes: fotografias de Fong Chi Fung

Vendedor de balões. 1962

Vendedores de rua, Rua da Erva. 1966

Vendedores de rua, Rua da Erva. 1966

Fotografia de Fong Chi Fung do catálogo da exposição Ontem para Sempre.