«(...) Chegado o dia 24 da última Lua, não há casa nenhuma que não celebre sacrifícios ao Tchou Ká P'ou Sát ou Tchou Kuân (o Senhor do Fogão) cuja imagem, enegrecida pelo fumo, se encontra num nicho escavado na parede, mesmo atrás do fogão. Esta imagem, em cartão, conforme a fantasia e a imaginação do artista, seu autor, é representada por um velhinho, tendo a seu lado uma velhinha, sua companheira, ambos sentados, no seu respectivo trono, ou por um homem de meia idade e barrigudo, tendo ao seu lado um cavalo, ou ainda por um solerte jovem em atitude de agente fiscal, segurando uma tabuinha numa das mãos, na qual aponta com irritante zelo tudo quanto observa em casa de cada um. Aqueles que não puderem despender uns cobres para a compra desta imagem limitar-se-ão a aplicar, na parede, atrás do fogão, uma folha de papel vermelho, onde pincelarão os caracteres correspondentes ao nome e respectivos títulos da divindade em questão, pois, sendo ela o agente de ligação entre os mortais e os celícolas, o espia que tudo vê para ir relatar ao soberano do Céu, quem há que se atreva a deixar de lhe "bater a cabeça", de lhe acender umas velas e de lhe oferecer alguns bolinhos?
Tchou Kuân foi, primeiramente, cultuado pelo imperador Mou Tâi, no ano de 133 a.C. devendo ter sido, primitivamente, o deus do Fogão, o Agni dos brâmanes.
Para cativarem e lisonjearem esta intriguista e coscuvilheira divindade, a fim dela não ir intrigar junto de Iôk Uóng, o Imperador Jade, a respeito da conduta moral e outras mazelas dos membros de cada família, que teve oportunidade de observar, no decorrer do ano, tratam de lhe apresentar deliciosos manjares e saborosos doces com que julgam poder adoçar-lhe os lábios, e muitos, com o fim de o entorpecerem ou de o porem de bom humor, não se esquecerão de lhe oferecer capitosos e inebriantes licores e ópio, certos de que desta forma o tornarão mais tolerante. Dos que não andam com a consciência tranquila, há quem trate de adoçar os beiços desta divindade com mel ou com dois bocados de jagra ou de a embriagar, molhando a sua imagem em vinho.
Entretanto, improvisa-se um pequeno altar no átrio, com o fim de se instalar a sua imagem, berrantemente policromada, que é transportada numa lecticazinha, entre velas, pivetes e incensadores e, depois de o adularem, "batendo-lhe a cabeça", por três vezes e murmuradas umas orações, chega-se-lhe a chama de uma vela, para Tch'ou Kuân poder ascender em fumo ao trono perlífero.
A imagem deste deus da cozinha costuma também ser incinerada com alguns fios de palha e borrifada com água ou chá, a fim de o cavalo que o transportará para junto do trono perlífero não padeça fome nem sofra sede, durante a fatigante viagem, que durará sete dias, tanto para a partida como para o regresso. Durante esses dias da ausência do deus-espião, todos respiram, livremente, vivendo despreocupados, pois grande é a sensação de alívio que experimentam com a sua ausência.
Assim como na partida da divindade, o seu regresso é saudado, nas primeiras horas do Novo Ano, com uma ininterrupta salva de panchões. Nova cópia da sua imagem é entronizada, cerimónia que finda com respeitoso "bater de cabeça" e devoto oferecimento de alguns pivetes acesos (...)»
Luís Gonzaga Gomes. «A Festividade do Ano Novo», in Macau Factos e Lendas. Instituto Cultural de Macau. 1994
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