quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Ligeiros tancás

George Chinnery (1774-1852). Barcos / Boats.
Aguarela sobre papel / Watercolour on paper.
Colecção do Museu de Arte de Macau.

"Ligeiros tancás (pequenos barcos, cujo nome se traduz por casca de ovo) guarnecidos por engraçadas mulheres chinesas que falam um patois, português divertidíssimo, não pronunciando o r e substituindo-o sempre pelo l, e fazendo ainda outras transformações, tudo em cadência musical, conduziam a bordo os nossos marítimos, alguns dos quais morriam de amores pelas belas tripulantes. E em verdade que tinham razão; aquelas carinhas morenas das tancareiras, molduradas em óptimos cabelos, escuros como os seus olhos pequeninos, mas vivos, com lindos dentes, mãos pequenas, pés delicados, apesar de costumados a andarem descalços, estatura baixa mas esbelta, trajo assaz pitoresco; cabaia e calça azul ou preta, lenço de cores vivas na cabeça, sapatos de prodigiosa altura, um certo requebro no andar, era tudo isto decerto muito mais bonito do que os rostos cobreados das timoras, e dessas raças cruzadas de malaio, chim e europeu, que parecem haver sido achatados ainda no berço. Até aqueles barquinhos, onde elas vivem de dia e de noite, parecem chamar os passageiros pelo seu extraordinário asseio; e com tudo dentro de um fraco tancá, tem uma família o seu pagode, espécie de deuses penates, sempre alumiado e bornido; cozinha, cama, bancos, enfim a mobília completa de uma pobre casa; as tancareiras aí vivem, aí cozem o seu arroz e o comem, aí dormem, rezam e folgam. A sua religião manda-as dedicar à alegria até encontrarem marido, e elas cumprem à risca este preceito, enquanto um esposo feliz não opõe a barreira himeneu a essa torrente de loucuras; desde então a tancareira tornou-se uma mulher séria; não ri para o viandante nem responde a nenhuma provocação, senão mostrando uma fita preta que lhe cinge o pescoço e quer dizer: sou casada. A variedade acabou para ela!"
Francisco Maria Bordalo. Sansão na Vingança! in Carlos Pinto Santos e Orlando Neves. De Longe à China. Macau na Historiografia e na Literatura Portuguesas. Tomo II. ICM, 1998

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