terça-feira, 29 de junho de 2010

Macau, anos 30-40 do século XX

Mapa de Macau do final dos anos 30 - anos 40 do século XX. Editado pela Agência de Turismo de Macau e impresso pela HongKong Printing Press, Ltd.

A Zona de Aterros do Porto Exterior (ZAPE) ficou concluída em 1936. Data, também, desta época o aumento do já existente aterro entre a península de Macau e a Ilha Verde.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Estátua


Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, - frio escalpello, -
O meu olhar quebrei, a debatel-o,
Como a onda na crista d'um rochedo.

Segredo d'essa alma, e meu degredo
E minha obsessão! Para bebel-o
Fui teu labio oscular, n'um pesadelo
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu osculo ardente, hallucinado,
Esfriou sobre o marmore correcto
D'esse entreaberto labio gelado...

D'esse labio de marmore, discreto,
Severo como um tumulo fechado,
Sereno como um pelago quieto.

Camilo Pessanha, Clepsydra. Relógio d' Água, 1995

Camilo Pessanha no Jardim das Artes

A Estátua de Camilo Pessanha no Jardim das Artes. (Macau, Janeiro de 2009)

Inaugurada a 9 de Dezembro de 1999, a estátua do maior poeta do simbolismo português encontra-se no Jardim das Artes, em frente do Hotel Lisboa. Camilo Pessanha, de bengala e de pé sobre a calçada portuguesa, tem atrás de si um pedestal, do qual o seu cão Arminho tenta saltar. No pedestal, numa inscrição lê-se:

"POETA MAIOR DO SIMBOLISMO
ADVOGADO, MAGISTRADO E PROFESSOR
SEMPRE QUIS SER UM AUTOMARGINALIZADO DA SOCIEDADE
MESMO, AGORA, QUE LHE FOI ERGUIDO UM MONUMENTO
ELE DESCEU DO PEDESTAL DA GLÓRIA PARA VIR TER CONNOSCO.
ARMINHO SEU INSEPARÁVEL AMIGO PREPARA-SE
PARA LHE SALTAR PARA O COLO."

domingo, 27 de junho de 2010

Hotel Lisboa

Hotel e Casino Lisboa.
Bilhete Postal, s/ data (posterior a 1999). Edição: San Seng Fung.

Projecto de Liang Tat Man, o Hotel e Casino Lisboa foi inaugurado em Fevereiro de 1970.
No átrio de entrada encontra-se um grande mural com caravelas. É da autoria de Francisco Barbosa, artista mexicano residente em Hong Kong.

Fonte: Beatriz Basto Silva. Cronologia da História de Macau. Vol.5

sexta-feira, 25 de junho de 2010

No Jardim de Lou Kau

Jardim de Lou Lim Ieoc. Junho, 2010

Estou ali no jardim do Lou Kau
com os olhos escondidos
entre ruínas de pedra
e musgo pisado
onde o dragão das nove curvas
mergulha no lago
dos nenúfares que os peixes modelam
com pedaços de miolo de pão

no lago onde crianças e velhos
alimentam peixes à mão

Jorge Arrimar

Jorge Arrimar e Manuel Yao. Confluências, Folha de Lótus, Macau, 1997

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Pátio do Ídolo

Pátio do Ídolo, com entrada pelas ruas da Felicidade e da Alfândega.
Macau, Maio de 2010


Cristais

Porque não
cristais míticos
do kin
da pei'pa
a resistirem o brilho
nos calabouços do presente?

e nós
de mente encantada
a ouvi-los
anti-ídolos
no pátio do ídolo?

João Rui Azeredo. PoeMacau. Livros do Oriente, 1992

terça-feira, 22 de junho de 2010

Edifício no Jardim de S. Francisco

Jardim de S. Francisco, Junho de 2010

Na parte superior do Jardim de S. Francisco ergue-se um torreão evocativo da participação portuguesa na I Grande Guerra. Neste pequeno edifício estiveram instaladas, para além da Liga dos Combatentes da Grande Guerra, o Serviço Postal Militar e a Associação dos Deficientes de Macau.

Rua de Santa Clara

Rua de Santa Clara. Macau, Junho de 2010

Aberta em 1935, cortando, então, o Jardim de S. Francisco na sua parte inferior, a Rua de Santa Clara começa na Rua do Campo e termina na Avenida da Praia Grande, entre o Jardim de S. Francisco e o Clube Militar. Deve o seu nome ao Convento de Santa Clara, fundado por Clarissas espanholas, vindas de Manila em 1633. Anexo ao convento, construiu-se, mais tarde, o Colégio de Santa Rosa de Lima.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Edifício do Banco Nacional Ultramarino

Legenda: "Edifício na Av de Almeida Ribeiro / Building on Av. de Almeida Ribeiro"
Edição: Instituto Cultural de Macau. Data da edição: 1988. Fotografia de Eduardo Tomé


Fundado em 1864, em Lisboa, o Banco Nacional Ultramarino teve a sua primeira sede no Largo das Duas Igrejas (hoje, Largo do Chiado).
Data de 1902 o início da sua actividade em Macau. O edifício situado na Almeida Ribeiro, que o BNU ainda hoje utiliza como principal instalação, foi inaugurado a 1 de Março de 1926. Por diversas vezes remodelado, foi ampliado em 1997 segundo um projecto do arquitecto Bruno Soares.


quarta-feira, 16 de junho de 2010

A Ilha Verde, local de veraneio

"Existe a noroeste de Macau um sítio assás pitoresco que, há uns anos atrás, era tão demandado, no rigor do Verão, pelas famílias residentes desta cidade como as chácaras (termo de origem brasileira que significa quintas ou habitações campestres próximas da cidade) de Maria Filipa (Tanque do Mainato), das Madres (Areia Preta) e do Leitão (sopé da Guia).
Este local de veraneio era a Ilha Verde, cuja posse se conserva nas nossas mãos, devido aos jesuítas que a ocuparam lá para o ano de 1605, sendo hoje propriedade do Seminário de S. José que a tem em parte arrendada ao Governo da Colónia.
A Ilha Verde fora, primitivamente, escolhida pelos jesuítas para lhes servir bem como aos estudantes do seu Colégio de S. Paulo, de estância de repouso e de recreio, durante a estação calmosa, tendo esta ilha sido, em diversas épocas, causa de vários distúrbios políticos, alguns de certa gravidade, e de complicadas questões judiciais, que são do conhecimento de todos aqueles que andam familiarizados com a acidentada história desta Colónia.
(...)
Abandonando a cidade, aos domingos e nos dias feriados, repartiam-se as famílias macaenses, por tácito acordo, pelas diversas chácaras, cuja permissão para as frequentar, era previamente obtida junto dos seus donos, sendo com grande aprazimento que os seus membros se deleitavam com o ar livre e com a brisa vinda do mar, abando-se uns à mesa do bafá ou do manilha, em partidas acerrimamente disputadas, enquanto que outros procuravam matar o tédio, distraindo-se com a pesca ou com qualquer outro divertimento.
(...)
Ora, para os chineses, a Ilha Verde faz parte do sistema orográfico das elevações montanhosa que enrugam toda esta região meridional do Distrito de Tchông-Sán, nosso vizinho, sendo o prolongamento natural da Colina de Mong-Há com a qual estava ligada por um "dorso rochoso", que se encontrava coberto pela água, nas ocasiões da preamar, "dorso" este que foi aterrado, constituindo hoje o istmo que liga esse virente ilhéu à Colónia."
Luís Gonzaga Gomes. "A Pedra de Afinidade Conjugal". Lendas Chinesas de Macau. Notícias de Macau, 1951.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Bacia Norte do Patane


Bacia Norte do Patane.
À esquerda o antigo casino flutuante Macau Palace. Ao fundo, a Ilha Verde.
Macau, Junho de 2010


Rua Norte do Patane. Macau, Junho de 2010

Bacia Norte do Patane: estende-se a sul da Ilha Verde e é limitada pelas ruas Norte do Patane e Comandante João Belo. Designa-se, em chinês, por Fai Chi Kei Pak Van, ou seja, Bacia Norte dos Pauzinhos (Fai-Tchis).

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Rua do Gamboa

Rua do Gamboa. Macau, Maio de 2010

Começa na Rua da Alfândega, em frente à Calçada do Gamboa, e termina na Rua das Lorchas.
Com o mesmo topónimo há, ainda, uma travessa e um beco. A travessa liga a Rua do Gamboa à Rua de Francisco António e o beco, que começa igualmente na Rua do Gamboa, termina na Travessa das Virtudes.

domingo, 13 de junho de 2010

Vistas aéreas de Macau, Taipa e Coloane

Legenda: Vista aérea do Território / Aerial view of the Territory.
Data: 1997. Edição: JD Productions. Images of Macau.
Fotografia de Jean Doat.

Legenda: Vista aérea da Ilha da Taipa / Air view of the Taipa Island.
Data: 1997. Edição: JD Productions. Images of Macau.
Fotografia: Jean Doat
Legenda: Vista aérea do Território de Macau / Aerial view of the Macau Territory.
Data: 1999. Edição do Leal Senado de Macau.
Fotografia de Jean Doat.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Couto Viana (1923-2010)

Morreu mais um poeta de Macau. António Manuel Couto Viana.
Poeta, contista, ensaísta, dramaturgo, encenador, actor. Autor de livros para crianças.
Viveu em Macau entre 1986 e 1988, onde exerceu funções no Instituto Cultural. De Macau, deixou-nos No Oriente do Oriente (1987), Até ao Longínquo China Navegou (1991); Não há outra mais Leal (1991).

Na pousada de Mong Há

Pousada repousada na frondosa
Colina entre colunas de betão,
Gruta em que me foi grata a inspiração
E onde amei Macau em verso e prosa:

- Obrigado! Toché!, p'la gentileza
Com que me recebeste a soledade,
Me abriste a cama e me puseste a mesa
E me foste família e amizade!

Memorial de mim, em cada muro
Grava os versos do fim em que me vês;
- Aqui viveu enquanto foi futuro,
O último poeta português!

António Manuel Couto Viana. "Na Pousada de Mong Há". Antologia de Poetas de Macau. 1999

Biografia de Couto Viana (Sociedade Portuguesa de Autores)

Rua do Bocage

Rua do Bocage. Macau, 2010

A Rua do Bocage começa na Praça de Ponte e Horta e termina na Travessa das Virtudes.
Manuel Maria Barbosa do Bocage (Setúbal, 1765 - Lisboa, 1805) esteve na Índia na qualidade de oficial do exército, "donde desertou em virtude de uma desavença de amores que tornava seu rival o governador-geral"*. Por volta de 1789, desembarcou em Macau, depois de uma viagem atribulada - "Por bárbaros sertões gemi vagamente / Até que aos mares da longínqua China / Fui por bravos tufões arrebatado" -, onde é acolhido por Joaquim Pereira de Almeida, negociante rico de Macau, que o relaciona com as principais famílias e com o governador interino.
Em Macau, compôs várias poemas, entre os quais uma elegia à morte do pai de Joaquim Pereira de Almeida, a quem chama "benfeitor e caro amigo", e uma epístola ao governador interino, desembargador Lázaro da Silva Ferreira.

Soneto

Um governo sem mando, um bispo tal,
de freiras virtuosas um covil,
três conventos de frades, cinco mil,
Nh's e chins cristãos, que obram mal;

Uma Sé que hoje existe tal e qual,
catorze prebendados sem ceitil,
muita pobreza, muita mulher vil,
cem portugueses, tudo em um curral;

seis fortes, cem soldados, um tambor,
três freguesias cujo ornato é pau,
um vigário-geral sem promotor,

dois colégios, um deles muito mau,
Um Senado que a tudo é superior,
é quanto Portugal tem em Macau.

Fontes:
* Carlos Pinto Santos e Orlando Neves. De Longe à China - Macau na Historiografia e na Literatura Portuguesas, Tomo1. Instituto Cultural de Macau, 1988
P. Manuel Teixeira. Toponímia de Macau, vol. II, Instituto Cultural de Macau, 1997
Eis Bocage... - Sítio da Biblioteca Nacional associado à exposição bibliográfica realizada no âmbito do bicentenário da morte do poeta.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Miguel Torga: Na Gruta de Camões

Macau, 10 de Junho de 1987

NA GRUTA DE CAMÕES

Tinhas de ser assim:
O primeiro
Encoberto
Da nação.
Tudo ser bruma em ti
E claridade.
O berço,
A vida,
O rastro
E a própria sepultura.
Presente e ausente
Em cada conjuntura
Do teu destino.
Poeta universal
De Portugal
E homem clandestino.

Miguel Torga. DIÁRIO XV. Coimbra, 1990

"Dia di Portugal"

Non têm cristám qui non sabe
Quim sã Luís di Camões.
Non têm posia más suávi
Qui posia di Camões.

Camões sã unga letrado
Bêm capaz di Portugal;
Naçám já ficá falado,
Di sala atê quintal.

Camões, "Príncipe di Péta",
Diverá sã grándi hóme.
Su ôlo já cai na Cêta,
Ele sã já passá fome.

Quelóra vai Portugal,
Camões já ficá cholido;
Buli co corte rial,
Na grádi ficá capido.

"Lusíadas" sã su glória,
Sã honra di nôs cristám.
Ali têm tánto estória,
Di nôs-sua grándi naçám!

Índia Camões já vai
Macau, cavá virá vêm.
Na grádi torná já cai,
Tánto consumiçám têm.

Na Goa buli co guéra,
Na Macau posia fazê.
Cavá torná vai su tera,
Más trabalo já sofrê.

José dos Santos Ferreira (1967).

in P. Manuel Teixeira. A Gruta de Camões em Macau. Fundação Macau e Instituto Internacional de Macau, 1999

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Praça Ponte e Horta

Praça de Ponte e Horta. Macau, Maio de 2010

Fica situada entre as ruas das Lorchas, do Bocage e do Tesouro.
José Maria de Ponte e Horta foi governador de Macau entre 1866 e 1868. Professor da Escola Politécnica em Lisboa, foi nomeado governador para Macau em Julho de 1866, cargo de que toma posse a 26 de Outubro na "Cidade do Santo Nome de Deus onde Camões havia glorificado Deus na sua monumental obra", acumulando com as funções de ministro plenipotenciário junto dos imperadores da China e Japão e do rei do Sião. Foi, por este último, condecorado, em 1867, com a insígnia do Elefante Branco.
"Um melindre político" levou-o a solicitar a exoneração do cargo de governador em Maio de 1868, sendo substituído pelo vice-almirante António Sérgio de Sousa. Foi ainda governador de Cabo Verde e Angola, entre 1870 e 1873, e director do Observatório Astronómico da Politécnica, na década de 80.

Fontes:
P. Manuel Teixeira. Toponímia de Macau. vol II, ICM, 1997
Acácio Fernando de Sousa. "Um Livro de Apontamentos de Ponte e Horta. Revista MacaU, II Série, nº12, Abril de 1993

Igreja e Seminário de S. José

Igreja de S. José em Macau (Junho de 2009)

"No ano de 1657 fundaram os jesuítas o Seminário de S. José, de Macau.
É um vastíssimo edifício, de construção solarenga, colocado num ponto elevado da cidade e rodeado de grandes a aprazíveis cercas.
Dá-lhe ingresso uma majestosa escadaria de granito, composta de vários lanços.
A actual igreja, da mesma invocação, como é natural, internamente em forma de cruz grega e com um bem lançado zimbório, foi construída de 1748 a 1758, e renovada interiormente em 1904. Nela se guardam várias relíquias entre as quais um pedaço dum braço de S. Francisco de Xavier, vindo de Goa. Possui um quadro representando a morte de S. Francisco Xavier, numa cabana em Sanchoão, e um outro que, se a memória nos não atraiçoa, reproduz uma cena do martírio de religiosos no Japão".
Artur Levy Gomes. Esboço da História de Macau 1511-1849. Repartição Provincial dos Serviços de Economia, Macau, 1957

Miguel Torga em Macau: Camões

Jardim Luís de Camões. Macau, Maio de 2010

"Macau, 9 de Junho de 1987 - Era preciso que um poeta português viesse aqui falar nesta hora final, para que ela não tivesse fim. E vim eu.

CAMÕES

Evocar Camões em Macau tem, pelo menos, um perigo: o de parecer que se dá como certa a lenda de que ele pisou este chão. Era ponto assente na minha selecta da 4.ª classe que aqui teria sido provedor-mor dos defuntos e ausentes, e até uma gravura celebrava a gruta, com um busto à entrada, onde o épico se refugiaria para dar largas à inspiração. Ora, nenhum documento coevo, nem qualquer investigador idóneo confirmam tais asserções, e o mais provável é que nunca tenha aportado em carne e osso a estas paragens. O que não aquenta, nem arrefenta. Nunca me meteram medo as ratoeiras da tradição. Considero-a mais fecunda do que a própria história, e supro muitas vezes o verdadeiro com o verosímil. Também nesse capítulo sou subversivo. O que me importa não é se Cristo apareceu ou não a D. Afonso Henriques antes da batalha de Ourique; é se o rei o viu e convenceu disso os companheiros de armas, dando-lhes a certeza prévia da vitória. Há tempos, quando um erudito se indignava diante de mim com a leviandade de se atribuirem a torto e a direito berços de natalidade ao poeta, retorqui-lhe que, em meu entender, era bom que todas as cidades e aldeias de Portugal lhe disputassem a origem. Até uma remota vila de Trás-os-Montes.

Em Freixo de Espada à Cinta
Nasceu Luís de Camões...,

afirma uma quadra de pé quebrado que o país inteiro conhece. E afirma-o com veracidade. Quem tão genialmente deu expressão à pátria, tem o berço em cada seu recanto. E, quando falo de Portugal, falo das várias partes do globo por onde a sua exiguidade se repartiu através da língua, da religião, dos usos e costumes, da cultura, numa palavra. Sim, Camões esteve aqui e é daqui, porque aqui chegou o espírito de um povo que, como ninguém, consubstancia na vida e na obra, a legitimar-nos o impulso errático, a curiosidade, a ousadia, a tenacidade, a sabedoria e as ambições na América, na África, na Ásia e na Oceania.
(...)
Gesta assombrosa dum povo temerário que abriu de par em par as evasivas portas ogivais da Idade Média, fez entrar por elas todo o sol promissor do Renascimento e planetarizou pela primeira vez o espírito, só poderia ter sido perpetuada por quem andou pelas mesmas rotas, consciente de quanta audácia o feito necessitara, de quantos sacrifícios custara e da sua cósmica dimensão. Homero e Virgílio cantaram semi-deuses que cometem com forças sobrenaturais e num tempo mítico os prodígios relatados. Aquiles, Ulisses, Eneias não passam de meras ficções. Descendem de pais fabulosos, descem aos Infernos, são invulneráveis. Nenhum mal irremediável os ameaça, aconteça o que acontecer. Títeres nas mãos de Júpiter, de Vénus, de Apolo ou de qualquer outra potestade, acabavam por cumprir apenas um destino implacável e monótono de predeterminados. Com um pé no céu e outro na terra, nem têm a unidade incontingente dos celestes, nem a complexidade contingente dos terrestres. Levam sempre a melhor sobre as forças adversas, e não há qualquer inesperado no seu comportamento. Camões, pelo contrário, embora recorra ainda à providência conflituosa de um Olimpo desavindo, em obediência aos cânones clássicos que lhe serviram de modelo - e essa transigência é hoje a parte mais frágil do poema -, pinta indivíduos coetâneos em acção, que se chamam Gamas, Albuquerques, Castros, Leonardos ou Velosos e actuam por conta própria. Seres vivos, psicologicamente matizados, a braços com o seu destino singular, que assumem no corpo e na alma as consequências das façanhas que empreendem. Travam lutas incertas, temem, hesitam. E fogem até do inimigo, se preciso for. Em vez de nos descrever fantasmas e contar inverosimilhanças sucedidas num passado intemporal, o poeta, numa modernidade inovadora surpreendente, fala-nos de pessoas, relata factos acontecidos num passado próximo, historia, observa, deduz. Cria figuras humanas que palpitam, contraditórias, inconstantes, ora temerárias, ora pusilânimes, empenhadas numa empresa que nos ia glorificar e às duas por três saudosas da pacatez obscura do lar, a cada passo cépticas e deprimidas, nunca lineares ou previsíveis. E, quando sublima, transfigura o concreto. Desta vez não há mais heróis lendários, nascidos miraculosamente de amores divinos, incestuosos ou não. Há criaturas verdadeiras, terrosas, que são reis, marinheiros, soldados, simples mortais, a viver ao vivo uma hora alta da História. (...)"
Miguel Torga. DIÁRIO XV. Coimbra, 1990

terça-feira, 8 de junho de 2010

Doca de D. Carlos


Legenda: Mooring in the Govermment Dockyard, near A-Ma Temple / Iates na doca de D. Carlos. Editor: TCL, LDA. Sem data. Fotografia: Fred Conde

Porto Interior

Legenda: Vida marítima no Porto Interior / Maritme life in the Inner Harbour.
Editor: Collection - Images of Macau - 1997 - JD Productions - Macau.
Fotografia de Jean Doat.

sábado, 5 de junho de 2010

João Aguiar, Na Cha e a Deusa da Lua

Sândalo e Jasmim
"(...)
A Lua aparecera, redonda e grande. Só para me contrariar, resmunguei no meu íntimo.
- Temos de ver melhor - prosseguiu o Luís Augusto. - Vamos meter-nos no carro e vamos a Coloane, à praia.
- Misericórdia! - murmurei. Não ligou; pegou-me firmemente no braço enquanto se levantava.
(...)
Não foi fácil - como eu previra - encontrar um espaço para estacionar o carro junto da praia de Hac-Sá. Mas conseguimos por fim, para meu secreto pesar. Daí a pouco estávamos na praia, com mais umas largas centenas de pessoas. Perto das árvores, pairava no ar um cheiro a comida que me fez estremecer o estômago, ainda cheio do jantar, por isso avançámos um pouco e sentámos-nos na areia.
Olhámos em silêncio para a Lua, que resplandecia, livre de nuvens, e depois conversámos. Não sei já sobre o quê, porém conversámos longamente e o tempo foi escorregando sem que, no entanto, a minha disposição melhorasse. A coisa, pensei eu, não vai com passeios nem conversas nem, sobretudo, com festas dedicadas à deusa da Lua.
(...)
Agora que a minha atenção se virava para o exterior, pude ver a praia tinha menos gente e que muitos dos que ainda lá estavam se preparavam para partir. Senti, de repente, um grande cansaço e respirei fundo. Ao fazê-lo, reparei que o cheiro a comida, que, embora mitigado, ainda nos atingia, fora substituído por outro, mais agradável. Muito mais agradável, mesmo: um misto indefinível que me fez pensar em sândalo e jasmim.
Curioso, pensei; de onde virá isto?
Não esperava resposta e não a tive. E, logo a seguir, a minha atenção fixou-se novamente, numa cena tão curiosa, pelo menos, quanto o perfume que pairava no ar: uma criança corria, sozinha, na areia molhada, junto ao mar, por vezes mesmo na água, quando alguma onda pequena avançava. Corria a uma velocidade espantosa, como se deslizasse; percorria assim uma centena de metros, depois fazia meia volta e fazia o percurso inverso. O passatempo devia ser divertido, porque eu podia ouvir-lhe o riso. A luz era escassa, apenas a vinha dos candeeiros do parque de estacionamento e das barracas de comes e bebes montadas para a festa da Lua. Não conseguia distinguir-lhe bem os contornos, porém a vós, quando ria, chegava nítida, pura, vibrante de alegria.
Pessimista por natureza, reflecti que não era muito seguro, uma criança tão pequena - não teria mais de três anos - ali à beira-mar, sem vigilância. Onde raio estarão os pais, perguntei-me, que não vêem isto?
De repente, o jogo mudou de forma inesperada: o pequeno vulto afastou-se da beira-mar e, sempre com a mesma velocidade, veio pela areia na minha direcção. Não tardei a distingui-lo melhor e vi então vários pormenores que me surpreenderam.
Era um garoto com cerca de três anos, como eu calculava, vestido de forma estranha (na minha ignorância, julguei que se tratava de uma veste tradicional, própria da festividade): uma espécie de túnica, ou melhor, um avental, vermelho e dourado, que esvoaçava na corrida e deixava ver que não cobria mais nada excepto o seu corpo, ou seja, não usava roupa interior. Mas o que mais me espantou, embora explicasse a forma como se movia, era que vinha sobre uma roda com pedais, um monociclo de um género que eu nunca vira antes. Era extremamente destro com esse brinquedo, nem eu entendia como conseguia equilibrar-se, sem qualquer outro apoio que não fossem os pedais.
(...)
Ele parou então. Num milagre de equilíbrio, manteve-se imóvel sobre os pedais da roda. E disse-me qualquer coisa em chinês - não sei, evidentemente, se em cantonense se em mandarim.
- Tenho pena, filho, mas não entendi uma palavra... respondi-lhe. E era verdade, tinha pena porque teria gostado de conversar com o miúdo.
Mal acabara de falar, ouvi, atrás de mim, uma voz de mulher, uma voz grave, musical, explicar em bom português:
- Ele disse que o senhor é um kwai-lou simpático e que não vale a pena andar tão triste.
Voltei-me. Era uma chinesa, ainda jovem, também ela vestida - deduzi - com trajo adequado à data festiva. O perfume que eu sentira, de sândalo e jasmim, tornara-se mais forte. O seu perfume, com certeza.
Perguntei-lhe se era a mãe do rapaz. Respondeu, a rir, que não, não lhe era nada. Então, comentei:
- Ele acha que sou simpático, é? Nesse caso, por que é que me chama kwai-lou?
Estava a brincar, explicou ela, e acrescentou: - É uma criança muito traquinas, eu conheço-o bem. Mas é muito bom menino.
Disso eu não duvidava, o miúdo irradiava... bem, o miúdo irradiava, muito simplesmente. E era extraordinariamente simpático.
(...)
A criança falou então durante um bom bocado. O seu rosto expressivo tão depressa ficava sério como se abria num riso amplo, cheio de gargalhadas. Sem o compreender, eu sentia um prazer enorme em vê-lo e ouvi-lo e dei-me conta de que estava a rir com ele, o que era idiota, mas não me importei. No fim da tirada, a rapariga virou-se para mim:
- Ele quer que o senhor repare naquela roda. E disse-me assim: umas vezes estamos na parte de cima da roda, depois a roda move-se e passamos para baixo e depois, logo a seguir, para cima. De modo que não vale a pena ficar triste quando nos encontramos no lado de baixo, compreende? Ah, e disse também: a minha roda anda muito depressa, mas o centro está sempre parado, no centro da roda há sempre muita paz. Experimente olhar para o centro da roda e há-de ver que essa é a parte mais importante...
Acho que deixei cair o queixo, de espanto.
- Ele disse isso? Um miúdo com esta idade disse isso?
Oh, ele é muito esperto, replicou a rapariga. E tem razão, sabe? Veja, por exemplo: o senhor ainda não reparou, mas já se sente melhor, não é verdade?
E era incrível, mas tinha razão. Sem motivo, sem sentido, sem explicação, eu sentia-me mais leve, o negrume interior desvanecera-se.
Fiquei sem saber o que dizer. Não teve grande importância, pois a minha intérprete falou ao miúdo em chinês e a seguir virou-se para mim:
- Já é tarde. Ele tem de ir para casa e eu também. Gostei de falar consigo e de ver que a tristeza... chamou-lhe "depressão", não foi? Bom, seja o que for, já passou. Boa noite. A propósito, chamo-me Sèong Ngó.
Abri a boca para retorquir com um "muito prazer" sincero e para dizer o meu nome. Porém, nesse instante preciso, o malandro do garoto soltou um brado, qualquer coisa como um "iupiii!" festivo, e disparou, sobre a sua roda, em direcção à água e, para minha angústia, entrou no mar e continuou avançando. A rapariga abanou a cabeça:
- É mesmo incorrigível! Bom, tenho de ir...
E afastou-se, dizendo bem alto, mas num tom muito sereno:
- Na Cha! Vem cá imediatamente! Na Cha, não ouves?
Sem que eu o pressentisse, o Luís Augusto surgiu ao meu lado.
- Pronto, já falei tudo. Desculpa a interrupção...
Meio atordoado, observei que aquela chamada devia ter custado uma fortuna. Ele abriu muito os olhos:
- Porquê? Falei durante meio minuto, se tanto! - e, atentando melhor em mim: - O que é que tu tens, que estás com um ar esquisito?
Enchi o peito de ar, expirei lentamente.
- Não sei. Estive a falar com um miúdo chinês muito engraçado mas muito estranho. E com uma rapariga linda, chamada Sèong Ngó.
O Luís Augusto semicerrou os olhos.
- Tem piada, não vi ninguém ao pé de ti. E essa rapariga podia ser bonita, mas esteve a gozar-te. Sèong Ngó é o nome da deusa da Lua.
Quando um choque é muito violento pode deixar-nos impassíveis - na aparência. Mantive-me muito quieto, muito sereno. Só a minha voz, quando falei, parecia sair a custo.
- Então, esteve a gozar-me, claro. E um outro nome, Na Cha, conheces?
Ele encolheu os ombros. - Nunca lhe fui apresentado, mas conheço. E tu também: não te lembras de ir comigo visitar aquele templo pequenino, junto à Travessa Sancho Pança?
Foi então que veio a vertigem e caí, redondo como a Lua, na areia da praia de Hac-Sá".
João Aguiar. "Sândalo e Jasmim". Rio das Pérolas. Livros do Oriente, 2000

O escritor João Aguiar (1943-2010), recentemente falecido, deixa-nos belíssimas histórias. Como esta, publicada originalmente, em 2000, nas edições portuguesa e inglesa da revista MacaU. Rio das Pérolas é uma colectânea de contos, que têm Macau por tema e que, para além de "Sândalo e Jasmim", inclui ainda "O Deus dos Pássaros", "Sinal Nove" e "O princípio da compaixão", com ilustrações de Joaquim de Sousa e António Andrade.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Ruínas de S. Paulo

Bilhete Postal Ilustrado. Editor não referenciado. Sem data (década de 70 ?).
Legenda: The Ruins of St. Paul's.

Camilo Pessanha: Macau e a Gruta de Camões

"Dos templos profanos portugueses dedicados ao culto da Pátria e ao culto do génio é sem dúvida um dos mais venerados o modesto jardim de Macau, chamado a Gruta de Camões. Nenhum português absolutamente, nenhum estrangeiro de mediana instrução vem a Macau, mesmo de passagem, cujo primeiro cuidado não seja o de irem em romagem a esse recinto sobre cujo solo é tradição que poisaram os pés do poeta máximo de Portugal – um dos máximos poetas de todo o mundo e de todos os tempos –, enquanto o seu génio elaborava algumas das estrofes de bronze dos Lusíadas. E a nenhuma deixa de invadir, apenas transporte o vulgaríssimo portal de quintalejo suburbano, que dá acesso ao local, um sentimento dominador de religiosidade, a todos impondo silêncio, como se do lado de dentro das duas insignificantes umbreiras de granito estivesse aquela tela que existiu à entrada da cartuxa do Bussaco, onde a pintura de um frade fitava imperativa, com o seu olhar imóvel, os que se aproximavam, erguendo verticalmente diante da boca o indicador da mão direita.

Tem-se debatido desde há anos a questão de se Camões residiu ou não em Macau, se esteve ou não preso no tronco da cidade, se aqui desempenhou ou pôde ter desempenhado as apagadas funções de provedor dos defuntos e ausentes. A polémica há-de decerto renascer mais animada algum dia; e provável é que o problema venha a decidir-se finalmente pela negativa.

É a sorte de todas as tradições consagradas. A crítica histórica, a história-ciência, positiva e experimental, vem fazendo tábua rasa de quando é anedótico e pessoal, das atitudes esculturais, dos gestos dramáticos, das frases eloquentemente concisas, em que tradições lentamente evoluídas, haviam definido, em termos quási sempre de inexcedível beleza, um carácter, um acontecimento ou uma época. Para só me referir à história literária, basta lembrar que, demonstradamente, Homero nunca existiu; e que, quanto a Shakespeare, se é, ao que suponho, incontestado ter havido no século XVI a XVII um actor inglês desse nome, não falta já quem lhe negue a autoria de todas e cada uma das tragédias que o mesmo nome imortalizaram e para apreciação de cujo valor não se encontra termo de comparação mesmo nas supremas criações do teatro grego clássico.

Mas discussões são essas de carácter puramente académico, só interessando à investigação erudita. Se as tradições estão bem arraigadas e vivas, não será a demonstração de sua inexatidão histórica que as poderá destruir. É que não foi nas dissertações dos sábios que elas germinaram e medraram, nem é delas, mas do sentimento popular, que tiram a seiva. A Ilíada e a Odisséia hão-de chamar-se sempre os poemas homéricos; e quando os infatigáveis sapadores que são os historiadores modernos chegarem à conclusão de que Shakespeare não existiu, ou de que não sabia escrever, nem por isso a série de assombrosas figuras animadas que, no Hamlet, no Macbeth, no Otelo, no Rei Lear, se estorcem nas grandes crises das suas paixões sobre-humanas, traduzindo, ampliadas até ao grandioso, todas as modalidades de afectividade, cessariam de construir a galeria das personagens shakespearianas.

Há, é certo, lendas e lendas, tradições e tradições: umas sublimes, outras grotescas. Estas são efémeras, aquelas eternas. Basta como exemplo da indestrutibilidade destas últimas o da lenda heróica da Grécia.

A vitalidade das tradições lendárias, ou quási lendárias, depende essencialmente de dois requisitos. É necessário que o objecto a que se referem se imponha pela sua grandeza à admiração contemplativa de todos os tempos. É-o igualmente que a própria tradição, nos diversos factores que a constituem, seja adequada a esse objecto. As tradições pertencem ao folclore, há nelas, preponderante, um elemento estético; e toda a obra de arte precisa, antes de mais nada, de ser bem equilibrada.
Quanto à grandeza gigantesca de Camões, e à da assombrosa epopeia marítima que culminou na formação do vasto império português do século XVI, estão acima de qualquer discussão. Resta apenas ponderar se Macau, esta exígua península portuguesa do Mar da China ligada ao distrito chinês de Heong-Shan, tem qualidades que a recomendem para assim andar associada à memória dessa epopeia e à biografia do poeta sublime que a cantou.

Ora essas qualidades tem-nas Macau como nenhum outro ponto do globo. Macau é o mais remoto padrão da estupenda actividade portuguesa no Oriente nesses tempos gloriosos. Note-se que digo padrão, padrão vivo: não digo relíquia. Há, com efeito, padrões mortos. São essas inscrições obliteradas em pedra, delidas pelas intempéries e de há muito esquecidas ou soterradas, que os arqueólogos vão pacientemente exumando e penivelmente decifrando, tão lamentavelmente melancólicas como as ressequidas múmias dos faraós.

A fatalidade do determinismo histórico fez que a colonização portuguesa quási exclusivamente se desenvolvesse a dentro dos trópicos, e, com exclusão de Macau, todas as colónias portuguesas, ou ex-portuguesas de clima relativamente temperado são situadas no hemisfério austral. Assim é Macau a única terra do ultramar português em que as estações são as mesmas da Metrópole e sincrónicas com estas. É a única em que a Missa do Galo é celebrada em uma noite frígida de Inverno; em que a exultação da aleluia nas almas religiosas coincide com o alvoroço da Primavera – Páscoa florida com a alegria das aves novas ensaiando os seus primeiros voos; em que a comemoração dos mortos queridos tem lugar no Outono. Mais ainda: em Macau é fácil à imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos frequentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas, das misteriosas inscrições chinesas, destacando a cada canto em rectângulos de papel vermelho, das águas amarelas do rio e da rada, onde deslizam as lentas embarcações chinesas de forma extravagante, com as suas velas de esteira fantasmáticas, e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão de terra portuguesa. Quem estas linhas escreve teve, por várias vezes (há quantos anos isso vai!), deambulando pelo passeio da Solidão, a ilusão, bem vivida apesar de pouco mais duradoira que um relâmpago, de caminhar ao longo de uma certa colina da Beira Alta, muito familiar à sua adolescência.

Ora a inspiração poética é emotividade, educada, desde a infância e com profundas raízes, no húmus do solo natal. É por isso que os grandes poetas são em todos os países os supremos intérpretes do sentimento étnico. Toda a poesia é, em certo sentido, bucolismo; e bucolismo e regionalismo são tendências do espírito inseparáveis. Notáveis prosadores (basta lembrar, dentre os contemporâneos, Lafcádio Hearn, Wenceslau de Moraes e Pierre Loti) têm celebrado condignamente os encantos dos países exóticos. Poeta, nenhum. Os poucos que vagueiam e se definham por longínquas regiões, se acaso escrevem em verso, é sempre para cantar a pátria ausente, para se enternecerem (os portugueses) ante as ruínas da antiga grandeza da pátria e, sobretudo para dar desafogo à irremediável tristeza que os punge. E se na reduzida obra poética colonial desses escritores – Tomaz Ribeiro, Alberto Osório de Castro, Fernando Leal (este último nascido na Índia, mas nem por isso menos exilado ali, português como era pelo sangue e pela educação) – se encontram dispersos alguns traços fulgurantes de exotismo, é só para tornar mais pungente pela evocação do meio hostil de inadequado pela sua estranheza à perfeita floração das almas – a impressão geral de tristeza – da irremissível tristeza de todos os exílios.

Veio toda esta divagação a propósito de dizer que ainda é Macau a única terra de todo o ultramar português em que se pode ter até certo ponto a ilusão de se estar em Portugal, essencial ao exercício por portugueses da sua especial actividade imaginativa... Para concluir, contra toda a tradição e contra toda a evidência histórica que tenha sido escrita ou concebida em Macau uma parte considerável da vastíssima obra poética de Camões? Seria verdadeira loucura.

O génio de Camões, alimentado embora exclusivamente da seiva que trouxera da Pátria – da imagem viva da sua paisagem, da lembrança minuciosa e fiel dos seus costumes, da sua história, das suas lendas, das suas crenças, da sua cultura científica e literária – tem pujança bastante para triunfar dos meios mais adversos, para resistir aos mais implacáveis factores de perversão e de atrofia. As suas composições são datadas (indirectamente datadas) dos mais diversos pontos e dos mais inclementes climas – da África e da Ásia, por onde no século XVI se estendia o imenso império português e se despendia a exuberante energia da raça portuguesa. Muitas das obras primas do seu lirismo, das mais tipicamente nacionais pelo acentuado tom elegíaco de que estão impregnadas, brotaram na Índia do seu coração saudoso: e uma delas, das mais comoventes e das mais conhecidas, nasceu entre essa penedia sinistra da costa do Mar Vermelho, dessas nuas penedias incandescentes, que escaldam os pés de quem ali desembarca, e parecem, vistas a certa distância, formadas de escumalha de ferro.

Mas a terrível acção depressiva do clima e do ambiente físico e social dos países tropicais, se não tiveram poder contra a assombrosa vitalidade criadora do poeta máximo, têm-no todavia, não só para esterilizar em cada um de nós outros, os pigmeus que a quatro séculos de distância o contemplamos, o pouco de aptidão versificadora que algum tivesse, mas ainda para destruir, mesmo nos melhor dotados, a comezinha parcela de imaginação de que é indispensável dispor quem intente evocar a estatura do gigante, o seu esbelto perfil e a sua figura augusta. E, pois que Macau, não só pelas suas condições climáticas mas também como mais remoto padrão da acção portuguesa na Ásia, é o palmo de terra mais próprio para essa evocação se fazer, natural é que, à semelhança do que sucedia com os mais célebres santuários pagãos, situado cada um deles em terra ilustrada por algum episódio da vida da divindade a que era dedicado, seja em Macau o santuário nacional – pan-lusitano – consagrado ao génio do poeta, e que a Macau a biografia deste particularmente se refira.

É a Gruta de Camões, com o seu cenário irremediavelmente mesquinho – mas suscetível, apesar disso, de correcção em muitos dos seus defeitos –, esse lugar sobre todos prestigioso, dedicado ao culto de Camões, que é também o culto da Pátria. Culto e prestígio que não podem extinguir-se enquanto houver portugueses; e enquanto não se extinguem, há-de ser verdade intuitiva, superior a todas as investigações históricas, que o maior génio da raça lusitana sofreu, amou, meditou, em Macau, aqui tendo composto, em grande parte o seu poema imortal, e que o local predilecto aos devaneios do seu espírito solitário era essa colina, então êrma, sobre o porto interior, junto das penhas com aparência de "dólmen" em cujo vão foi colocado há anos o seu busto, de proporções reduzidas, fundido em bronze."
Macau, Junho de 1924
Camões nas Paragens Orientais. Textos por Camilo Pessanha e Venceslau de Morais. Reedição anastática do opúsculo editado por Petrus em 1927. Fundação Macau e Instituto Internacional de Macau. 1999

Blasco Ibáñez no Jardim e Gruta de Camões

Gruta de Camões
Colecção Colonial Marques Pereira e Pires Marinho.
Cerca de 1910
Bilhete Postal publicado em João Loureiro. Postais Antigos de Macau.

"Visitamos por fim o mais interessante para nós, o que nos trouxera a Macau com o atractivo da devoção literária. O governador* mostra-nos o jardim onde se encontra a gruta em cujo interior Camões meditava e escrevia, durante as horas de calor desta região quase tropical. Este jardim tem atractivos iguais aos dos móveis que começam a envelhecer. Nos seus alegretes e bosques misturam-se a melancolia das antigas hortas chinesas e a majestade dos jardins portugueses de Sintra. Vemos estátuas de mandarins que têm a cabeça e as mãos de louça; o resto do corpo é feito de plantas a que os jardineiros com as suas tesouras deram forma humana.
O retiro predilecto do poeta foi desfigurado e banalizado por uma admiração excessiva. A gruta não é mais do que um corredor entre grandes pedras, ocupado agora pelo busto de Camões. Todas as rochas próximas desapareceram sob lápides que têm esculpidos fragmentos poéticos do autor de Os Lusíadas ou versos de autores célebres que o glorificam. Tantas placas de mármore dão a este local, que, com razão, se pode chamar poético, o aspecto antipático de cemitério.
Alguns moradores de Macau, especialmente casais novos, vêm merendar para o histórico jardim e, ao som de um gramofone ou de um harmónio, dançam diante do busto coroado de louros. Não importa; é fácil suprimir com a imaginação essas fealdades da realidade e ver o antigo jardim tal como foi, com os seus bosques em colina, a sua pequena gruta livre de adornos, e meditando, sob o fresco arco, o fidalgo português que perdeu um olho na guerra, soldado heróico como o manco Cervantes, e desterrado de Goa para um dos pontos mais distantes da monarquia portuguesa, então senhora de colónias nas costas de África, no mar das Índias, e nos arquipélagos situados para além do estreito de Malaca".
Vicente Blasco Ibáñez. A Volta ao Mundo. Volume II. Livraria Peninsular Editora, 2ª edição Lisboa, 1944

* Governador Rodrigo Rodrigues (1923-24)


terça-feira, 1 de junho de 2010

Calçada da Feitoria

Calçada da Feitoria. Macau, Maio de 2010

A feitoria pertencia a Francisco António de Seabra que, vindo do Brasil, instalou-se em Macau em 1819. A Calçada da Feitoria começa na Rua de S. José, junto à Rua do Barão, e termina na Travessa do Cais, junto à Rua da Prainha.
A feitoria situava-se junto à Prainha, que possuía um cais por onde entravam os navios que nela eram consertados.

Fonte: P. Manuel Teixeira. Toponímia de Macau. Vol. 1, ICM, 1997