sábado, 5 de junho de 2010

João Aguiar, Na Cha e a Deusa da Lua

Sândalo e Jasmim
"(...)
A Lua aparecera, redonda e grande. Só para me contrariar, resmunguei no meu íntimo.
- Temos de ver melhor - prosseguiu o Luís Augusto. - Vamos meter-nos no carro e vamos a Coloane, à praia.
- Misericórdia! - murmurei. Não ligou; pegou-me firmemente no braço enquanto se levantava.
(...)
Não foi fácil - como eu previra - encontrar um espaço para estacionar o carro junto da praia de Hac-Sá. Mas conseguimos por fim, para meu secreto pesar. Daí a pouco estávamos na praia, com mais umas largas centenas de pessoas. Perto das árvores, pairava no ar um cheiro a comida que me fez estremecer o estômago, ainda cheio do jantar, por isso avançámos um pouco e sentámos-nos na areia.
Olhámos em silêncio para a Lua, que resplandecia, livre de nuvens, e depois conversámos. Não sei já sobre o quê, porém conversámos longamente e o tempo foi escorregando sem que, no entanto, a minha disposição melhorasse. A coisa, pensei eu, não vai com passeios nem conversas nem, sobretudo, com festas dedicadas à deusa da Lua.
(...)
Agora que a minha atenção se virava para o exterior, pude ver a praia tinha menos gente e que muitos dos que ainda lá estavam se preparavam para partir. Senti, de repente, um grande cansaço e respirei fundo. Ao fazê-lo, reparei que o cheiro a comida, que, embora mitigado, ainda nos atingia, fora substituído por outro, mais agradável. Muito mais agradável, mesmo: um misto indefinível que me fez pensar em sândalo e jasmim.
Curioso, pensei; de onde virá isto?
Não esperava resposta e não a tive. E, logo a seguir, a minha atenção fixou-se novamente, numa cena tão curiosa, pelo menos, quanto o perfume que pairava no ar: uma criança corria, sozinha, na areia molhada, junto ao mar, por vezes mesmo na água, quando alguma onda pequena avançava. Corria a uma velocidade espantosa, como se deslizasse; percorria assim uma centena de metros, depois fazia meia volta e fazia o percurso inverso. O passatempo devia ser divertido, porque eu podia ouvir-lhe o riso. A luz era escassa, apenas a vinha dos candeeiros do parque de estacionamento e das barracas de comes e bebes montadas para a festa da Lua. Não conseguia distinguir-lhe bem os contornos, porém a vós, quando ria, chegava nítida, pura, vibrante de alegria.
Pessimista por natureza, reflecti que não era muito seguro, uma criança tão pequena - não teria mais de três anos - ali à beira-mar, sem vigilância. Onde raio estarão os pais, perguntei-me, que não vêem isto?
De repente, o jogo mudou de forma inesperada: o pequeno vulto afastou-se da beira-mar e, sempre com a mesma velocidade, veio pela areia na minha direcção. Não tardei a distingui-lo melhor e vi então vários pormenores que me surpreenderam.
Era um garoto com cerca de três anos, como eu calculava, vestido de forma estranha (na minha ignorância, julguei que se tratava de uma veste tradicional, própria da festividade): uma espécie de túnica, ou melhor, um avental, vermelho e dourado, que esvoaçava na corrida e deixava ver que não cobria mais nada excepto o seu corpo, ou seja, não usava roupa interior. Mas o que mais me espantou, embora explicasse a forma como se movia, era que vinha sobre uma roda com pedais, um monociclo de um género que eu nunca vira antes. Era extremamente destro com esse brinquedo, nem eu entendia como conseguia equilibrar-se, sem qualquer outro apoio que não fossem os pedais.
(...)
Ele parou então. Num milagre de equilíbrio, manteve-se imóvel sobre os pedais da roda. E disse-me qualquer coisa em chinês - não sei, evidentemente, se em cantonense se em mandarim.
- Tenho pena, filho, mas não entendi uma palavra... respondi-lhe. E era verdade, tinha pena porque teria gostado de conversar com o miúdo.
Mal acabara de falar, ouvi, atrás de mim, uma voz de mulher, uma voz grave, musical, explicar em bom português:
- Ele disse que o senhor é um kwai-lou simpático e que não vale a pena andar tão triste.
Voltei-me. Era uma chinesa, ainda jovem, também ela vestida - deduzi - com trajo adequado à data festiva. O perfume que eu sentira, de sândalo e jasmim, tornara-se mais forte. O seu perfume, com certeza.
Perguntei-lhe se era a mãe do rapaz. Respondeu, a rir, que não, não lhe era nada. Então, comentei:
- Ele acha que sou simpático, é? Nesse caso, por que é que me chama kwai-lou?
Estava a brincar, explicou ela, e acrescentou: - É uma criança muito traquinas, eu conheço-o bem. Mas é muito bom menino.
Disso eu não duvidava, o miúdo irradiava... bem, o miúdo irradiava, muito simplesmente. E era extraordinariamente simpático.
(...)
A criança falou então durante um bom bocado. O seu rosto expressivo tão depressa ficava sério como se abria num riso amplo, cheio de gargalhadas. Sem o compreender, eu sentia um prazer enorme em vê-lo e ouvi-lo e dei-me conta de que estava a rir com ele, o que era idiota, mas não me importei. No fim da tirada, a rapariga virou-se para mim:
- Ele quer que o senhor repare naquela roda. E disse-me assim: umas vezes estamos na parte de cima da roda, depois a roda move-se e passamos para baixo e depois, logo a seguir, para cima. De modo que não vale a pena ficar triste quando nos encontramos no lado de baixo, compreende? Ah, e disse também: a minha roda anda muito depressa, mas o centro está sempre parado, no centro da roda há sempre muita paz. Experimente olhar para o centro da roda e há-de ver que essa é a parte mais importante...
Acho que deixei cair o queixo, de espanto.
- Ele disse isso? Um miúdo com esta idade disse isso?
Oh, ele é muito esperto, replicou a rapariga. E tem razão, sabe? Veja, por exemplo: o senhor ainda não reparou, mas já se sente melhor, não é verdade?
E era incrível, mas tinha razão. Sem motivo, sem sentido, sem explicação, eu sentia-me mais leve, o negrume interior desvanecera-se.
Fiquei sem saber o que dizer. Não teve grande importância, pois a minha intérprete falou ao miúdo em chinês e a seguir virou-se para mim:
- Já é tarde. Ele tem de ir para casa e eu também. Gostei de falar consigo e de ver que a tristeza... chamou-lhe "depressão", não foi? Bom, seja o que for, já passou. Boa noite. A propósito, chamo-me Sèong Ngó.
Abri a boca para retorquir com um "muito prazer" sincero e para dizer o meu nome. Porém, nesse instante preciso, o malandro do garoto soltou um brado, qualquer coisa como um "iupiii!" festivo, e disparou, sobre a sua roda, em direcção à água e, para minha angústia, entrou no mar e continuou avançando. A rapariga abanou a cabeça:
- É mesmo incorrigível! Bom, tenho de ir...
E afastou-se, dizendo bem alto, mas num tom muito sereno:
- Na Cha! Vem cá imediatamente! Na Cha, não ouves?
Sem que eu o pressentisse, o Luís Augusto surgiu ao meu lado.
- Pronto, já falei tudo. Desculpa a interrupção...
Meio atordoado, observei que aquela chamada devia ter custado uma fortuna. Ele abriu muito os olhos:
- Porquê? Falei durante meio minuto, se tanto! - e, atentando melhor em mim: - O que é que tu tens, que estás com um ar esquisito?
Enchi o peito de ar, expirei lentamente.
- Não sei. Estive a falar com um miúdo chinês muito engraçado mas muito estranho. E com uma rapariga linda, chamada Sèong Ngó.
O Luís Augusto semicerrou os olhos.
- Tem piada, não vi ninguém ao pé de ti. E essa rapariga podia ser bonita, mas esteve a gozar-te. Sèong Ngó é o nome da deusa da Lua.
Quando um choque é muito violento pode deixar-nos impassíveis - na aparência. Mantive-me muito quieto, muito sereno. Só a minha voz, quando falei, parecia sair a custo.
- Então, esteve a gozar-me, claro. E um outro nome, Na Cha, conheces?
Ele encolheu os ombros. - Nunca lhe fui apresentado, mas conheço. E tu também: não te lembras de ir comigo visitar aquele templo pequenino, junto à Travessa Sancho Pança?
Foi então que veio a vertigem e caí, redondo como a Lua, na areia da praia de Hac-Sá".
João Aguiar. "Sândalo e Jasmim". Rio das Pérolas. Livros do Oriente, 2000

O escritor João Aguiar (1943-2010), recentemente falecido, deixa-nos belíssimas histórias. Como esta, publicada originalmente, em 2000, nas edições portuguesa e inglesa da revista MacaU. Rio das Pérolas é uma colectânea de contos, que têm Macau por tema e que, para além de "Sândalo e Jasmim", inclui ainda "O Deus dos Pássaros", "Sinal Nove" e "O princípio da compaixão", com ilustrações de Joaquim de Sousa e António Andrade.

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