quarta-feira, 5 de setembro de 2012

"Paisagens com Sentimentos"

"Paisagens com Sentimentos", um artigo de Ana Paula Laborinho sobre a obra ligada "ao percurso oriental" de Maria Ondina Braga - A China fica ao lado (C)Estátua de Sal (ES)Angústia em Pequim (AP)  e Nocturno em Macau (NM) - publicado na revista MacaU de Setembro de 1992:



 PAISAGENS COM SENTIMENTOS
Ana Paula Laborinho
Maria Ondina Braga confronta-se com o espaço (tradições, usos e costumes esculpidos na ancestral consciência) e a sua dupla estranheza - mulher e estrangeira - determinam o que observa e nos dá a ler.


Só entusiasmo não chega para fixar na memória tão vasta paisagem. Tão-pouco uma impressão demasiado nítida pode dar um bom quadro. Importante é pôr lá os nossos sentimentos.
É com estas palavras de um grande pintor chinês (Liu Haisu, n. 1896) que Maria Ondina Braga inicia Angústia em Pequim, obra que escreveu nos anos 80 relatando a sua experiência de vida na capital chinesa.
Esta epígrafe parece particularmente adequada ao tipo de ficção que encontramos nas suas obras, sobretudo aquelas que estão ligadas ao seu percurso oriental. De facto, não temos propriamente um enredo, mas quadros, retratos, crónicas que vão traçando os contornos de uma paisagem-estranheza que, por ser diferente, tende a tornar-se fabulosa, quer dizer, ficcional.
Aliás, a própria autora insiste nesta indistinção de planos (real/imaginário) em que se misturam memórias e sonhos (Sonhei uma vida inteira com Pequim, e Pequim dos meus sonhos, o que costuma ocorrer nos sonhos: uma cidade ao mesmo tempo surpreendente e familiar, tal se a houvesse habitado noutra encarnação. AP, 152)
Trata-se, pois, de visões. Resultado de olhares propiciando a descrição de lugares e gentes. Mas também um cruzamento de paisagens e sentimentos que produz uma imagem única e selectiva. A escritora, mulher ocidental, confronta-se com o espaço (tradições, usos e costumes esculpidos na ancestral consciência) e a sua dupla estranheza - mulher e estrangeira - determinam o que observa e nos dá a ler.
Sublinho a condição de estrangeira. O movimento da escrita é, em geral, razoavelmente impulsionado por este estado de conflito com o lugar alheio. Escreve-se não só por causa da novidade dos lugares mas também pela angústia do desconhecido e intrínseca solidão - ainda que as novas terras sejam acolhedoras e estimulem a descoberta.
É de todos estes matizes que se constroem as obras de Maria Ondina Braga. Entre o prazer de descobrir fabulosos lugares e o desespero de uma saudade teimosamente apelativa percorremos páginas de uma velha condição de portugueses aventureiros, desejosos de partir e importunados pelo regresso. São estes dois movimentos que encetamos nestas narrativas. Com o Oriente pelo meio da paisagem.

De Braga ao Oriente - as viagens e a escrita
Maria Ondina é natural de Braga. Lugar que o seu nome parece reter, apesar da sedução de outros percursos. Primeiro a viagem levou-a a lugares europeus que teima em recordar já ancorada em paisagens mais distantes. Inglaterra, Paris. Os nevoeiros londrinos, as matas da Escócia, os cais do Sena, os pequenos cafés da beira-rua. Depois, Angola. Aí ensinou Português e Inglês a meninas africanas tal como ensinou o mesmo Português e Inglês a meninas chinesas.
Porém, como constata em Estátua de Sal (1969), se este gesto repetido - a condição de professora - constitui um traço de permanência no trânsito da sua vida, cada paisagem assume contornos distintos e aparece recordada de rápidas e impressivas pinceladas (o nevoeiro/solidão de Londres, a claridade festiva de Paris, a melancolia do cacimbo africano).
Depois de África segue-se Goa, onde se encontra aquando da invasão pela União Indiana. Obrigada a abandonar Goa, chega a Hong-Kong três dias antes do Natal de 1961. Por todo o lado há sinais de celebração: coroas de azevinho, presépios, ornamentações. O contraste entre esse Natal europeu e o escarlate e oiro dos anúncios chineses provocam-lhe uma profunda impressão que se tornará um dos seus temas favoritos: o confronto das religiões e dos comportamentos.
Dos tempos passados em Macau resultam duas obras que datam dos anos 60, e uma terceira publicada mais recentemente. Estátua de Sal, apesar de publicada depois de A China Fica ao Lado (1968), parece ter sido escrita primeiro, visto que aí encontramos o cruzamento de memórias várias. Os lugares da sua errância sucedem-se produzindo os capítulos, aparecendo e reaparecendo ao sabor  das recordações (Braga, Londres, Paris, Malange, Goa, Macau), como se a autora ainda não se considerasse por inteiro do lado de Macau.
Já aqui se encontra de forma muito incisiva o binómio vida/escrita, fundamental em Ondina Braga (Assim vou contando de noite o que de dia vivo. ES, 50), aparecendo igualmente uma subtil advertência ao trânsito real/imaginário: Tempo de anotar tudo: o que a memória ressuscita (ou reinventa), o que o peito gastou de entesourar (ES, 50).
Mas, sobretudo, já aqui aparece explicitado outro vector desta escrita: os lugares constituem, em última instância, perscrutações interiores, e tanto mais penetrantes quanto estranhos eles se revelarem (Macau é, portanto, inédito para mim na medida em que eu próprio nele me busco. ES, 6)

Em busca do universo chinês

É isto a paisagem com sentimentos que referirá em narrativas posteriores. Mesmo quando parece fazer crónica ou descrever de forma próxima a realidade (aparentando um relato sem ficção) estamos sempre perante um sujeito que se procura, constrói e reinventa nas malhas da escrita. Através das paisagens, dos retratos, das histórias estrangeiras, quem se pretende alcançar e conhecer é esse sujeito da escrita que desesperadamente continua a insistir na solidão que o estrangeiro lhe provoca e na sua condição de insolúvel angústia.
Tal se encontra na obra escrita em Pequim nos anos 80 quando Ondina Braga regressa ao Oriente, mais uma vez na qualidade de professora de Português, ensinando no Instituto de Línguas Estrangeiras. Apesar do entusiasmo que revela pelo mundo chinês aparecem as marcas dolorosas do exílio (a doença da alma) que se vão tornando dominantes à medida que a narrativa avança.
Pequim, cidade de sonho, não consegue sobrepor-se à melancolia, à depressão, ao tédio - males desconhecidos dos chineses e que são a marca mais ocidental desta escrita oscilando entre o entusiasmo e o sofrimento.
Existe ainda outra dominante nesta obra: a presença dos poetas e da poesia chinesa (Se reconsidero, acho que jamais me teria apaixonado assim pela China, não fossem os seus poetas. AP, 45). Voz atravessada por outras vozes, assim vai dando a conhecer a literatura chinesa a um público português que, na sua maioria, ignora ou apenas soletra o nome de poucos autores chineses.

Esta mesma exaltação pelas "coisas" chinesas atravessa os contos de A China Fica ao Lado. Traduzidos recentemente para chinês, em simultâneo com uma nova edição publicada em 1991, estas narrativas continuam a tendência para a ausência de história, preferindo o breve recorte de personagens e quadros. A figura feminina aparece destacada (como aliás se verifica em toda a obra de Ondina Braga): a jovem que vem abortar a casa do doutor Yu e que acompanhamos na longa noite de memórias e dores; a solitária Miss Caroll, professora chinesa do colégio de Macau que enche o quarto de espelhos-lembrança; a pura e inocente Tai Ku, que assassina a nova concubina do pai por ódio de raça (Tinha encontrado Deus, era verdade, mas jamais se encontrará a si própria - C, 24); a paixão de A-Mou, crescendo ao ritmo da lepra que a vai devorando; a misteriosa louca que espera um ausente nas praias de Coloane; e ainda as histórias de avós de onde quase sempre vem a sabedoria e uma sagrada energia - vasta galeria de mulheres envoltas em sopros de mistério que faz delas as detentoras do tempo e do seu trânsito.

Outra característica assinalável no conjunto destas narrativas - traço igualmente fundamental em Estátua de Sal e, por maioria de razão, em Angústia em Pequim: o convívio com a comunidade chinesa. Macau-português praticamente se reduz ao espaço da língua portuguesa que a professora ensina. De resto é a ausência preenchida com os lugares chineses, as histórias chinesas, os amigos chineses.


Tal opção está também presente em Nocturno em Macau (1991), de todas as narrativas citadas a única que recebe a designação de romance e obedece aos imperativos da ficção através da personagem Ester que, no entanto, é muito identificável com a personagem-autora das narrativas anteriores.
Macau é representado através do microcosmos da casa-das-professoras: pequena comunidade de vozes cochichadas e muita solidão. Ester aparece sempre carente de uma conversa íntima e amiga mas as suas companheiras, da chinesa Xiao à goesa Dhora, escondem-se detrás de máscaras várias. Cada um constrói a sua fortaleza armadilhada de indecifráveis expressões, e o jogo alheio consistem interpretar e efabular os minúsculos sinais que podem revelar a vida anterior.
Os habitantes deste pequeno universo sem tempo procuram representar-se como seres imutáveis, alimentando-se contudo do movimento veloz das suas paixões ocultas. O vulcão debaixo das montanhas - retrato pessoal que serve para descrever Macau. Da terra poucas paisagens se recortam, poucos lugares reconhecemos, mas essa impressão de fogo lento consegue numa pincelada dar corpo ao que de mais misterioso e palpitante existe nesta terra. 
Contudo, mantém-se a tendência já apontada em narrativas anteriores para afastar da representação o mundo português de Macau. Ester tem uma clara preferência pelo universo chinês, o que se consubstancia na paixão por Lu. Nunca existe, porém, a presunção de que se compreende esse mundo estrangeiro: tal como na relação amorosa, o encanto é fugaz e incompleto, quer dizer, nunca satisfeito e por isso se revela duradoiro. Esse Macau-chinês que Ester tanto aprecia é interpretado e lido da mesma forma que os caracteres da carta enviada por Lu: A inventar mais que a traduzir, a professora-de-inglês, e a gozar com tal jogo (NM, 57).

A China fica ao lado - mistério insondável

Também a paisagem é um jogo que é dado ao leitor para que invente aquilo que falta ao quadro, embora as histórias transmitam muita informação sobre a China: usos, costumes, a condição feminina e as transformações sociais.
Apesar do entusiasmo que transparece pela nova China, em contraste com o subdesenvolvimento e miséria da China imperial, não deixa de existir uma fina e sensível apreciação dos traumatismos que resultam das abruptas mutações. Um dos exemplos que aparece repetido é o desligar dos pés: embora simbolize a libertação das mulheres constitui igualmente uma humilhação mal vivida, além de uma real dor física que ilustra a dualidade do bem e do mal. É este tipo de duplicidade que Maria Ondina Braga gosta de explorar mostrando a complexidade existencial.
Várias histórias apresentam Macau como lugar de fuga e de refúgio para os chineses desiludidos com a nova China, sobretudo no período da Revolução cultural. Deste modo, o território constrói-se como espaço de exílios vários: portugueses saudosos da pátria, goeses fugidos da invasão, chineses em em busca de um eldorado.
Por via da saudade, em Pequim ou em Macau, a escrita destila um sofrimento só possível de resolver com o regresso ao lugar de origem (como acontece no final de Nocturno em Macau): a palavra torna-se dor mesmo quando parece dedicar-se por inteiro à descrição de uma paisagem ou de um retrato. Por mais que os lugares atraiam Maria Ondina Braga é ela própria que se procura na violência do conflito com o espaço estrangeiro.
Quanto mais estranho mais longe se chega na deambulação interior. Talvez por isso se rejeite qualquer proximidade com o mundo português de Macau e se prefira caminhar por entre a densidade do mistério chinês. A China fica ao lado porque o seu entendimento é inalcansável. Em comum, a dor - como diz Li Po que Ondina Braga escolhe para epígrafe de uma das suas obras: É indizível / a dor que está / no coração / do homem (tradução de Jorge de Sena).

George Chinnery: «Rapariga com uma criança ao colo»

George Chinnery 
«Rapariga com uma criança ao colo». C. 1827-30. Lápis obre papel.
(in Oriente, nº 5. Abril de 2003)

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O Arco das Portas do Cerco

O Arco das Portas do Cerco, cerca de 1920
Fotografia do Catálogo da Exposição Reminiscências. Fotografias de Macau Antigo. 2009


O Arco das Portas do Cerco foi construído entre 22 de Agosto de 1870 e 31 de Outubro de 1871, tendo sido inaugurado nesta última data.
Dedicado à memória do Governador João Maria Ferreira do Amaral, bem como à tomada do forte de Passaleão, no arco encontram-se quatro lápides, duas nas paredes exteriores e as outras duas nas paredes interiores. As duas primeiras evocam, respectivamente, as datas do assassinato de Ferreira do Amaral - 22 de Agosto de 1849 - e a tomada do forte de Passaleão - 25 de Agosto de 1849. Nas outras duas encontram-se gravadas as datas de 22 de Agosto de 1870 e 31 de Outubro de 1871.

Data de 1573 a construção da muralha do istmo. A porta, conhecida entre os portugueses por  "Porta do Limite" ou "Porta do Cerco" e entre os chineses por "Kuan Chap", terá sido levantada em 1574, e possuía na sua parte superior residências para os guardas chineses. "Tendo posteriormente ruído, foi reconstruída em 1674, ficando então as residências em edifício anexo"( in História da Arquitectura em Macau).  Inicialmente, só eram abertas dois dias em cada lua, para a realização de um mercado onde os portugueses abasteciam-se dos géneros necessários; passados anos estabeleceu-se um mercado semanal. Por fim, a "Porta do Cerco passou a abrir-se todos os dias, o mercado internou-se e fixou-se; pouco a pouco o zelo dos procuradores enfraqueceu, a brilhante e industriosa actividade chinesa insinuou-se, fez-se benquista e foi construindo e multiplicando casas, lojas e oficinas" (As Alfândegas Chinesas de Macau, citado pelo P. Manuel Teixeira). Após a tomada de Pak Shán Lan ou Passaleão, por Vicente Nicolau de Mesquita, a muralha foi destruída e substituída por um posto avançado português que ocupava toda a área entre as Portas do Cerco e o Passaleão.

O Arco das Portas do Cerco encontra-se classificado património cultural.


Fontes:
Maria de Lourdes Rodrigues Costa. História da Arquitectura em Macau. Instituto Cultural de Macau, 1997
P. Manuel Teixeira. A Voz das Pedras de Macau. Macau, Imprensa Nacional, 1980
Pedro Dias. A Urbanização e a Arquitectura dos Portugueses em Macau, 1557-1911, Edição Portugal Telecom, Lisboa 2005.

"Notas sobre o Passaleão" de João Aguiar


"Notas sobre o Passaleão" 
de João Aguiar
Os Comedores de Pérolas 

"Há coisa de meio século e meio, houve em Macau outro 25 de Agosto insuportavelmente quente. As ruas da cidade estavam então bem silenciosas, não só porque havia menos habitantes mas também porque os habitantes se calavam, tolhidos pelo medo.

A Sé Catedral. Cerca de 1910. 
Fotografia do Catálogo da Exposição Reminiscências. Fotografias de Macau Antigo. 2009


Na Sé, em frente do altar-mor, rodeado de flores que já começavam a murchar, jazia em modesta pompa o corpo do governador  Ferreira do Amaral. O caixão estava fechado e devia ser selado nesse mesmo dia. Não houvera exposição: não se podia mostrar aquele corpo sem cabeça, sem braço direito e sem mão esquerda. Nem as conveniências nem os estômagos o permitiam.
A igreja estava deserta, o corpo mutilado repousava solitário dentro do caixão desde que o bispo D. Jerónimo da Mata pronunciara as orações fúnebres com a devoção de quem não sabia muito bem se estava a rezar pelo governador se por si próprio.
Ninguém o sabia, de facto. Desde que Ferreira do Amaral fora trazido assim da Porta do Cerco, Macau esperava o cutelo chinês. Das fortalezas - do Monte, da Guia, de Mong Ha, os soldados tinham visto, nos últimos dois dias, tropas a concentrar-se no outro lado, dentro e em redor do Pak-Shan-Lan. Ninguém duvidava de que o assassínio fora ordenado pelo vice-rei de Cantão. E embora naquela parte do mundo houvesse forças ocidentais - navios ingleses rondavam costumeiramente por onde quer que fosse -; embora os ministros das potências europeias tivessem declarado solidariedade e alguns dos omnipresentes barcos da Rainha Vitória viessem a caminho, não seriam muitos os que acreditavam que os novos impérios da Europa se incomodariam verdadeiramente com a desgraça do velho leão lusitano.
Aliás, precisamente nessa manhã de 25 de Agosto, enquanto os resto do governador entrevam em processo natural de decomposição, os ministros estrangeiros aconselhavam grande prudência ao Conselho que o substituíra.
O Conselho do Governo estava reunido no Palácio, embrenhado numa daquelas discussões inúteis que só são possíveis em circunstâncias serenamente desesperadas, quando o fim ainda não chegou mas está próximo. E os ministros das potências velavam recatadamente o cadáver futuro.
Acontecia isto quando a cidade ouviu os canhões.
No Palácio também os ouviram e o bispo estremeceu. O ajudante-de-campo do Conselho, um jovem alferes de Artilharia, precipitou-se para a rua, montou a cavalo e abalou à procura de notícias. Voltou, não muito mais tarde, com o uniforme desalinhado e o rosto fechado e duro; o seu cavalo resfolegava de cansaço. O oficial desmontou de um salto, entrou a correr para a sala onde o Conselho se encontrava.
- Estão a bombardear a Porta do Cerco! - gritou ele da entrada, sem se preocupar com etiquetas. Os senhores do Conselho falaram todos ao mesmo tempo e o alferes precisou de levantar a voz para se fazer ouvir:
- Temos lá cento e vinte homens e três bocas de fogo que não alcançam o inimigo. Não vão aguentar muito mais tempo.
- Como sabe?! - perguntou o barão de Forth-Rouen, o ministro francês, que na excitação se esqueceu, ele também, do protocolo.
O alferes voltou-se para o grupo dos diplomatas estrangeiros e envolveu-os num olhar frio. Era uma sensação desagradável, ver aqueles olhos rasgados de oriental que lhes lembravam mais a tropa concentrada no Pak-Shan-Lan do que um soldado português: o oficial chamava-se Vicente Nicolau Mesquita, nome cristão, civilizado; mas era macaense, um filho daquele estranho e decadente império luso, que cruzara tanto sangue diferente.
- Sei - respondeu ele - porque venho da Porta do Cerco e aquilo é um inferno. - Dirigiu-se então ao bispo, como seu comandante supremo, visto que presidia ao Conselho: - Não podemos responder ao fogo com a nossa artilharia. Temos de atacar o Passaleão.
De novo, todos falaram ao mesmo tempo, a dizer a mesma coisa. Sabiam que o bombardeamento era o prelúdio da tomada de Macau. Mas no Passaleão (como os portugueses chamavam ao forte de Pak-Shan-Lan) havia, pelos cálculos dos vigias, cerca de quinhentos soldados; nas elevações vizinhas estavam mais de mil e quinhentos, com artilharia, e chegavam constantemente reforços. Era impossível atacar, ninguém o podia fazê-lo.
- Eu posso! - gritou o ajudante-de-campo.

***

... E eu não posso continuar a perder tempo com este assunto.  Não sei sequer se o que escrevi aconteceu assim, a 25 de Agosto de 1849. O que disse exactamente Vicente Nicolau de Mesquita ao bispo D. Jerónimo? O que lhe respondeu o bispo? O que disse o barão de Forth-Rouen? E terá Mesquita olhado friamente os ministros estrangeiros, entre os quais estava, por exemplo, o espanhol Sinibaldo de Mas, que além de um nome impossível deixou excelente reputação em Macau?
Ninguém pode saber. Como ninguém pode saber o que ia na cabeça do ajudante-de-campo quando saiu do Palácio e marchou para a Porta do Cerco à frente de dezasseis voluntários, com um morteiro - para atacar as linhas inimigas e uma fortaleza eriçada de artilharia. Só posso recorrer à imaginação, porque as próprias gravuras não merecem inteira confiança. É com os olhos da imaginação que vejo Mesquita chegar à Porta com os seus dezasseis malucos (mais o morteiro) e entregar ao comandante a ordem do Conselho e preparar-se para avançar sobre os arrozais. Tudo isto debaixo de fogo.
A Macau dessa época desapareceu completamente. Não consigo ver a paisagem dos arrozais. Mas vejo os cento e vinte homens - com os reforços: dezasseis voluntários e um morteiro - alapados no terreno alagadiço; e Mesquita a carregar e a assestar a peça; e o tiro e a explosão que provocou morte e pânico dentro do Passaleão...
O morteiro era francês. Mas, muito portuguesmente, ficou inutilizado com esse primeiro tiro. Vejo Mesquita, furioso com o seu material. E enquanto as balas disparadas do forte passam e assobiam, vejo-o apostrofar o capitão Sampaio, o comandante da guarnição, e invocar a autorização do bispo e gritar aos homens, quem se oferece, vamos atacar.  Debaixo do tiroteio, mais vinte soldados dão um passo em frente.
Ah, sim, foi uma história muito portuguesa: a fraqueza irremediável de Macau, a avaria do morteiro, o avanço de Mesquita com os trinta e seis voluntários. Com o recrudescer do fogo, o capitão, lá atrás, ordenou retirada; Mesquita, ao ouvir o toque, deu ao seu corneteiro a ordem contrária. Uma bala veio partir a corneta em dois bocados e foi ele que gritou à carga, vamos a isto, vamos dar cabo deles.
Tomaram o forte. Um soldado goês chamado António Simão desfraldou a bandeira portuguesa no alto das muralhas. Lançaram fogo aos paióis. E voltaram com a cabeça e o braço de um mandarim morto: o que se pode chamar uma subtil alusão ao que haviam feito os assassinos de Ferreira do Amaral.
E esta é a história que eu queria escrever. Mas não convém. Neste final de século e de ciclo, tanto Ferreira do Amaral como Vicente Nicolau Mesquita estão profundamente esquecidos pela esmagadora maioria dos portugueses. E aqui em Macau, não estão esquecidos mas são profundamente incómodos.
Fim das notas sobre o Passaleão.
E por que é que esta história me fascina?
Porque, com todos os seus defeitos, Vicente Nicolau de Mesquita e João Maria Ferreira do Amaral pertencem àquela raça, hoje extinta, dos portugueses que fizeram e durante séculos mantiveram Portugal como país. Além disso, ambos são heróis trágicos, ambos pagaram o tributo exigido pelos deuses. Um foi assassinado, o outro enlouqueceu. A estátua de Vicente Nicolau de Mesquita foi derrubada e desapareceu nos tumultos da Revolução Cultural; a do governador, tão sólida que resistiu aos esforços dos revolucionários culturais, deve ser desmontada muito em breve.
Há ainda outra razão. Embora ninguém o diga abertamente, sinto que eles hoje são um embaraço para a nossa diplomacia sínica (!). E só isso bastaria. Desde que me estreei no jornalismo, nunca resisti à tentação de tentar embaraçar o Poder." (p. 54-58)
João Aguiar. Os Comedores de Pérolas. Edições Asa, 1993


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (XIX)

XIX
A Festividade

Terminado o julgamento de Cheng-Cheong-Van, e cumpridas as formalidades da lei, foi entregue ao Superior do Templo de Á-Má a preciosa imagem.
Este veio ao Tribunal Judicial, acompanhado duma comitiva de bonzos, receber o Tesouro e com ele se dirigiu, em procissão, para o Templo da Barra, seguido de imenso povo.
Dois dias depois, à meia-noite, o Templo de Á-Má mostrava-se profusamente iluminado e tudo indicava ser dia de festa.
A escadaria e o pátio estavam apinhados de vendilhões ambulantes que expunham aos olhares cobiçosos dos fiéis, que acorriam ao templo, belas frutas e apetitosos bolos, canjas e chás.
A população fluvial da Colónia quase se encontrava toda em terra com os seus trajes de festa.
Os lenços, bordados e estampados a ouro e a vermelho das tancareiras contrastavam as cuias de cabelos lisos e brilhantes de paufá, de que se orgulhavam as mulheres da cidade.
As cores berrantes das cabaias davam ao ambiente um ar de gala, que não se confundia.
Os homens, em vozearia interminável, indicavam esperar qualquer acontecimento de importância, e a petizada embasbacada mantinha-se a distância, em ar de reserva.
No Templo, no altar central, a preciosa imagem da Deusa Á-Má, expunha-se altiva aos olhares dos fiéis.
Ladeando o altar, filas de altas cadeiras de pau-preto mostravam que se aguardava cerimónia de importância, a que assistiriam pessoas de alta categoria.
No chão, em frente ao altar, um grande incensador emparelhava com uma preciosa pira de bronze onde o fogo votivo era mantido pelo bonzo de serviço que, de momentos a momentos, fazia soar um gongo, colocado à direita do altar, com duas pancadas secas e intervaladas.
No Largo do Pagode, a multidão afastava-se aos gritos dos cúlis e, junto à escadaria, sucediam-se as cadeirinhas e os jerinxás, donde se apeavam algumas autoridades da Colónia e chineses de categoria.
À meia-noite e meia-hora, os bonzos tomavam lugar nas cadeiras colocadas à direita do altar e as autoridades e pessoas de categoria nos assentos da esquerda.
Lau-Sin tinha lugar de honra junto ao Procurador dos Negócios Sínicos, que ocupava o primeiro lugar.
O Superior avançou para o altar, vestido de paramenta festiva, acendeu alguns pivetes, que colocou junto à imagem, ajoelhou, bateu cabeça três vezes e começou um recitativo, que os restantes bonzos repetiam em coro.
Finda a reza inicial, foram apresentados cumprimentos ao Procurador e, seguidamente, Lau-Sin foi convidado a celebrar a cerimónia, que o ritual impunha.
O polícia, ricamente trajado de longa cabaia de brocado, sapatos de seda preta e sola branca e de barretinho de brilhante cetim, ajoelhou junto ao altar, recebeu das mãos do bonzo, mestre de cerimónias, alguns pivetes e, respeitosamente, bateu cabeça, segundo o estilo.
Finda esta ligeira e impressionante cerimónia, entregou cem patacas ao Superior, dinheiro que se destinava aos pobres e, fazendo as vénias da etiqueta, retirou-se para o seu lugar.
Então as autoridades e pessoas de categoria entregaram todas o seu óbolo, aguardando que fosse dado o sinal de que a cerimónia estava terminada.
O gongo começou a soar e, à terceira pancada, o Superior deu por finda a cerimónia religiosa, convidando os seus distintos hóspedes a entrarem na Bonzaria.
Uma longa mesa de pau-preto, com embutidos de madrepérola, encontrava-se coberta de variadas iguarias que todos comeram, bebendo de quando em quando o precioso chá de pétalas de  crisântemo.
Entretanto, no átrio, os bonzos distribuíam esmolas aos pobres, que de toda a cidade acorriam a prestar homenagem à Santa de tanta devoção.
Começou então a ouvir-se o estalejar de intermináveis fiadas de pauchèong, até que o gongo da Bonzaria anunciou estar terminada a festividade.


E, com o decorrer do tempo, foi esquecido o "Caso do Tesouro do Templo de Á-Má", que aqui deixamos revivido, até que volte a ser esquecido... como a quase tudo acontece.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

"Fire Crackers" e Panchões

"Fire Crackers" e Panchões
"Os chinezes são um povo essencialmente amigo de tudo que é ruidoso; nas ruas a gritaria é de ensurdecer, porque milhares de pessoas fallam e gritam constantemente; para elles são desconhecidos os sons de uma musica suave, porque só gostam do "forte" e do fortissimo".
Assim para elles não haveria festa completa, se não tivessem descoberto um meio de fazer bulha; inventaram os "fire-crackers", chamados entre nós "fogos da China"; nome que não adoptámos, porque não dá, como a expressão ingleza, uma idéa exacta do que é.
Os "fire-crackers" são pequenas bombas feitas com envolucro de papel, e do tamanho e feitio da metade de um cigarro. Estas pequenas bombas estão ligadas umas ás outras, aos centos e aos milhares; com essa especie de restea envolve-se um mastro erguido no chão, ou suspende-se a restea do ramo de uma arvore; é a isto o que se chama um panchão. Chega-se-lhe fogo, e começa a fuzilaria, que dura ás vezes mais de meia hora, ouvindo-se de espaço a espaço os indispensaveis petardos, a que se vem juntar o estalar de caixas dos mesmos fire-crackers, que se atiram ardendo ao chão.
Um bom chinez, - embora pobre e sem arroz para comer - deixar de queimar fire-crackers por qualquer festa?!... isso nunca!"
J. Heliodoro Callado Crespo. Cousas da China - Costumes e Crenças. Lisboa, Imprensa Nacional, 1898, p. 244