"Notas sobre o Passaleão"
de João Aguiar
Os Comedores de Pérolas
"Há coisa de meio século e meio, houve em Macau outro 25 de Agosto insuportavelmente quente. As ruas da cidade estavam então bem silenciosas, não só porque havia menos habitantes mas também porque os habitantes se calavam, tolhidos pelo medo.
A Sé Catedral. Cerca de 1910.
Fotografia do Catálogo da Exposição Reminiscências. Fotografias de Macau Antigo. 2009
Na Sé, em frente do altar-mor, rodeado de flores que já começavam a murchar, jazia em modesta pompa o corpo do governador Ferreira do Amaral. O caixão estava fechado e devia ser selado nesse mesmo dia. Não houvera exposição: não se podia mostrar aquele corpo sem cabeça, sem braço direito e sem mão esquerda. Nem as conveniências nem os estômagos o permitiam.
A igreja estava deserta, o corpo mutilado repousava solitário dentro do caixão desde que o bispo D. Jerónimo da Mata pronunciara as orações fúnebres com a devoção de quem não sabia muito bem se estava a rezar pelo governador se por si próprio.
Ninguém o sabia, de facto. Desde que Ferreira do Amaral fora trazido assim da Porta do Cerco, Macau esperava o cutelo chinês. Das fortalezas - do Monte, da Guia, de Mong Ha, os soldados tinham visto, nos últimos dois dias, tropas a concentrar-se no outro lado, dentro e em redor do Pak-Shan-Lan. Ninguém duvidava de que o assassínio fora ordenado pelo vice-rei de Cantão. E embora naquela parte do mundo houvesse forças ocidentais - navios ingleses rondavam costumeiramente por onde quer que fosse -; embora os ministros das potências europeias tivessem declarado solidariedade e alguns dos omnipresentes barcos da Rainha Vitória viessem a caminho, não seriam muitos os que acreditavam que os novos impérios da Europa se incomodariam verdadeiramente com a desgraça do velho leão lusitano.
Aliás, precisamente nessa manhã de 25 de Agosto, enquanto os resto do governador entrevam em processo natural de decomposição, os ministros estrangeiros aconselhavam grande prudência ao Conselho que o substituíra.
O Conselho do Governo estava reunido no Palácio, embrenhado numa daquelas discussões inúteis que só são possíveis em circunstâncias serenamente desesperadas, quando o fim ainda não chegou mas está próximo. E os ministros das potências velavam recatadamente o cadáver futuro.
Acontecia isto quando a cidade ouviu os canhões.
No Palácio também os ouviram e o bispo estremeceu. O ajudante-de-campo do Conselho, um jovem alferes de Artilharia, precipitou-se para a rua, montou a cavalo e abalou à procura de notícias. Voltou, não muito mais tarde, com o uniforme desalinhado e o rosto fechado e duro; o seu cavalo resfolegava de cansaço. O oficial desmontou de um salto, entrou a correr para a sala onde o Conselho se encontrava.
- Estão a bombardear a Porta do Cerco! - gritou ele da entrada, sem se preocupar com etiquetas. Os senhores do Conselho falaram todos ao mesmo tempo e o alferes precisou de levantar a voz para se fazer ouvir:
- Temos lá cento e vinte homens e três bocas de fogo que não alcançam o inimigo. Não vão aguentar muito mais tempo.
- Como sabe?! - perguntou o barão de Forth-Rouen, o ministro francês, que na excitação se esqueceu, ele também, do protocolo.
O alferes voltou-se para o grupo dos diplomatas estrangeiros e envolveu-os num olhar frio. Era uma sensação desagradável, ver aqueles olhos rasgados de oriental que lhes lembravam mais a tropa concentrada no Pak-Shan-Lan do que um soldado português: o oficial chamava-se Vicente Nicolau Mesquita, nome cristão, civilizado; mas era macaense, um filho daquele estranho e decadente império luso, que cruzara tanto sangue diferente.
- Sei - respondeu ele - porque venho da Porta do Cerco e aquilo é um inferno. - Dirigiu-se então ao bispo, como seu comandante supremo, visto que presidia ao Conselho: - Não podemos responder ao fogo com a nossa artilharia. Temos de atacar o Passaleão.
De novo, todos falaram ao mesmo tempo, a dizer a mesma coisa. Sabiam que o bombardeamento era o prelúdio da tomada de Macau. Mas no Passaleão (como os portugueses chamavam ao forte de Pak-Shan-Lan) havia, pelos cálculos dos vigias, cerca de quinhentos soldados; nas elevações vizinhas estavam mais de mil e quinhentos, com artilharia, e chegavam constantemente reforços. Era impossível atacar, ninguém o podia fazê-lo.
- Eu posso! - gritou o ajudante-de-campo.
***
Ninguém pode saber. Como ninguém pode saber o que ia na cabeça do ajudante-de-campo quando saiu do Palácio e marchou para a Porta do Cerco à frente de dezasseis voluntários, com um morteiro - para atacar as linhas inimigas e uma fortaleza eriçada de artilharia. Só posso recorrer à imaginação, porque as próprias gravuras não merecem inteira confiança. É com os olhos da imaginação que vejo Mesquita chegar à Porta com os seus dezasseis malucos (mais o morteiro) e entregar ao comandante a ordem do Conselho e preparar-se para avançar sobre os arrozais. Tudo isto debaixo de fogo.
A Macau dessa época desapareceu completamente. Não consigo ver a paisagem dos arrozais. Mas vejo os cento e vinte homens - com os reforços: dezasseis voluntários e um morteiro - alapados no terreno alagadiço; e Mesquita a carregar e a assestar a peça; e o tiro e a explosão que provocou morte e pânico dentro do Passaleão...
O morteiro era francês. Mas, muito portuguesmente, ficou inutilizado com esse primeiro tiro. Vejo Mesquita, furioso com o seu material. E enquanto as balas disparadas do forte passam e assobiam, vejo-o apostrofar o capitão Sampaio, o comandante da guarnição, e invocar a autorização do bispo e gritar aos homens, quem se oferece, vamos atacar. Debaixo do tiroteio, mais vinte soldados dão um passo em frente.
Ah, sim, foi uma história muito portuguesa: a fraqueza irremediável de Macau, a avaria do morteiro, o avanço de Mesquita com os trinta e seis voluntários. Com o recrudescer do fogo, o capitão, lá atrás, ordenou retirada; Mesquita, ao ouvir o toque, deu ao seu corneteiro a ordem contrária. Uma bala veio partir a corneta em dois bocados e foi ele que gritou à carga, vamos a isto, vamos dar cabo deles.
Tomaram o forte. Um soldado goês chamado António Simão desfraldou a bandeira portuguesa no alto das muralhas. Lançaram fogo aos paióis. E voltaram com a cabeça e o braço de um mandarim morto: o que se pode chamar uma subtil alusão ao que haviam feito os assassinos de Ferreira do Amaral.
E esta é a história que eu queria escrever. Mas não convém. Neste final de século e de ciclo, tanto Ferreira do Amaral como Vicente Nicolau Mesquita estão profundamente esquecidos pela esmagadora maioria dos portugueses. E aqui em Macau, não estão esquecidos mas são profundamente incómodos.
Fim das notas sobre o Passaleão.
E por que é que esta história me fascina?
Porque, com todos os seus defeitos, Vicente Nicolau de Mesquita e João Maria Ferreira do Amaral pertencem àquela raça, hoje extinta, dos portugueses que fizeram e durante séculos mantiveram Portugal como país. Além disso, ambos são heróis trágicos, ambos pagaram o tributo exigido pelos deuses. Um foi assassinado, o outro enlouqueceu. A estátua de Vicente Nicolau de Mesquita foi derrubada e desapareceu nos tumultos da Revolução Cultural; a do governador, tão sólida que resistiu aos esforços dos revolucionários culturais, deve ser desmontada muito em breve.
Há ainda outra razão. Embora ninguém o diga abertamente, sinto que eles hoje são um embaraço para a nossa diplomacia sínica (!). E só isso bastaria. Desde que me estreei no jornalismo, nunca resisti à tentação de tentar embaraçar o Poder." (p. 54-58)
João Aguiar. Os Comedores de Pérolas. Edições Asa, 1993
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