quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Estória di Maria co Alféris Juám - Dia Já Nacê


George Chinnery (1774-1852)
Vendedores ambulantes junto da Santa Casa da Misericórdia. 
Desenho a pena sobre papel, com esboço subjacente a lápis. 1836

"Macau - Desenhos de George Chinnery" - Museu de Arte de Macau



Ano di Dios 1825 ta perto-perto cavá.
(...)
DIA JÁ NACÊ
Na rua, china cartá cesto, subi, decê, gritá "Min-pao! Vendê min-pao, quente-quente!" Cúli pussá caréta, gongchông-gongchông, dôs pê pa-chac, pa-chac chám, sai voz gritá "Uai, uai!"
Di lóngi ta vêm china di vendê catupá, co quánto apô-apô tá cartá águ-fonte. Áma-áma cartá cesto ta vai bazar comprá sôm. Na riva di travessa, dôs vêla cubrí dol tá andá vai greza.
Unga caro roda-di-pau torto-torto, co unga bôi na diánte ta pussá, vagar-vagar ta deslizá na chám di rua, levá águ-fónte vai casa di nhu-nhum gente grándi.
(..)
Dia já nacê. Más unchinho ora, sã ta olá Sol imburcá cabeça pa sai trás di Mato-Guia.
Agora sã merendéro co lata na riva di cabéça gritá: "Apa-bico quente-quente! Coquéla! Bicho-bicho! Quim quelê complá! Quente-quente!"
José dos Santos Ferreira. Macau Di Tempo Antigo. Edição do Autor, 1985


*******
ÁGU-FONTI - Água para beber
ÁMA - Criada. Áma no dialecto macaense não tem o significado de ama, "mulher que amamenta criança de leite". Esta designa-se por áma-lête. Áma-seco: criada que trata de crianças, sem as amamentar.
APA-BICO - Apa salgada com recheio de carne de porco picada e outros condimentos
APÔ - Mulher chinesa de certa idade. Termo derivado do chinês ap'ó que significa velhinha. Apô di cartá águ: mulher que traz a água, aguadeira
BICHO-BICHO - Doce macaense à base de farinha e ovos e coberto de açúcar derretido. O nome bicho-bicho deriva da forma torcida do doce semelhante a bichos.
CARTÁ - Transportar, trazer ou levar
CARÉTA - Carro, veículo
CAPUTÁ - Bolo salgado chinês, feito com arroz, carne de porco, etc.
CAVÁ - Acabar, terminar
CO - Com, e. Iou vai juntado co ele: vou juntamente com ele. Pedro co Ana já vêm: o Pedro e a Ana vieram
DOL - Peça de vestuário, espécie de touca ou manto com que as mulheres se cobram para irem à igreja.  O termo dol vêm de dó (luto)
DÔS - Dois, duas. Dôs-dôs: aos pares
GONGCHÔNG - Chocalhar, agitar.
GREZA - Igreja
MIN-PAU - Termo chinês que significa pão. Min-pau quente-quente: pão quentinho, acabado de sair do forno
NHUM - Rapaz. Nhu-nhum: senhores, homens. Nhónha-nhónha: senhoras, mulheres
PUSSÁ - Puxar
RIVA - Cima; em cima
TORTO - Torto. Torto-torto: entortado
UNGA - Um ou uma
VAGAR - Devagar, sem pressa. Vagar-vagar: muito devagar, devagarinho
VÊLA / VÊLO - Velha / velho
SÔM - Termo chinês que significa comida. Comprá sôm: ir ás compras no mercado

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

José dos Santos Ferreira (Adé)

Estátua de José dos Santos Ferreira (Adé), da autoria de Carlos Marreiros, no Jardim das Artes. O monumento foi inaugurado a 5 de Outubro de 1999.



José Inocêncio dos Santos Ferreira (Macau, 1919 - Hong Kong 1993), mais conhecido por Adé, foi o grande poeta popular de Macau e o defensor do "dóci papiaçâm di Macau".

O pai, Francisco dos Santos Ferreira, natural de Seia, que veio para Macau como militar, morreu tinha Adé apenas 5 anos. Era o mais novo dos 18 filhos de Florentina Maria, natural de Macau, viúva quando casou com Francisco Ferreira. As dificuldades económicas da família obrigaram Adé a interromper os estudos após o 5º ano do Liceu. Trabalhou nas Obras Públicas, nos serviços de Saúde e, em 1956, passou a Chefe de Secretaria do Liceu de Macau. Aqui, "iniciou uma empenhada acção em prol dos estudantes mais desfavorecidos, que praticaria toda a sua vida"(1).

"Dotado de espírito solidário e sendo um incansável lutador, José dos Santos Ferreira não deixou de se associar às instituições tradicionalmente macaenses, tendo integrado, entre outras, a Mesa Directora da Santa Casa da Misericórdia e a Direcção do Clube de Macau, mas foi sobretudo ao nível desportivo que mais entusiástico contributo deu às associações locais" (2). Neste âmbito, foi um dos fundadores do Hóquei Clube de Macau e da Associação de Futebol de Macau. Foi, ainda, presidente da direcção do Clube de Ténis Civil e esteve igualmente ligado ao karate-do e ao tiro, tendo recebido, em 1983, a medalha de mérito desportivo do Governador de Macau.

Colaborou na revista Renascimento, em vários periódicos desportivos e no jornal infantil Tio Tareco. Trabalhou em diversos jornais, nomeadamente O Clarim, a Gazeta Macaense, a Comunidade e o Notícias de Macau.

Em 1968 publicou Macau Sã Assi, o seu primeiro livro em patoá. Macau Sã Assi marca "o início de um labor que originará mais de vinte títulos, na sua quase totalidade em patois (...) e uma vasta colaboração em programas radiofónicos e televisivos. Mas, terá sido principalmente no palco, no desempenho das inúmeras peças, récitas, comédias e representações, que escreveu, encenou e organizou, que José dos Santos Ferreira mais terá contribuído para manter vivo na memória dos seus conterrâneos esse crioulo então já praticamente extinto"(3).

Em 1960, a convite da S.A.S. deslocou-se à Suécia. As crónicas dessa viagem encontram-se reunidas no seu livro - o primeiro que publicou, em 1961 - Escandinávia. Região de Encantos Mil. Da sua vasta obra em dialecto macaense destacam-se, para além de Macau Sã Assi (1968), Papia Cristám di Macau. Epítome de Gramática Comparada (1978), Camões, Grándi na Naçám (1982), Poéma di Macau (1983) e  Macau di Tempo Antigo (1985).  A História de Maria e Alferes João, publicada em 1987, é a versão portuguesa da Estória di Maria co Alféris Juám, publicada em 1985, em dialecto macaense, no livro Macau Di Tempo Antigo (poesia e prosa).

"O trabalho de Adé foi simplesmente fabuloso, há que dizê-lo e que reconhecê-lo. Ajudou a dar solidez a esse linguajar nebuloso e sincrético, não só só com a utensilhagem conceptual que criou, a gramática e o vocabulário, por exemplo, mas sobretudo com a criação literária e com a revisitação evocativa dos ambientes familiares e dos mitos urbanos (...) Reviver é reinventar a língua, com o sangue novo a circular nas velhas artérias da memória, irrigando um passado que assim se faz presente" (4). Na apresentação do seu livro  Macau Di Tempo Antigo, Adé realça que "a dóci língu di Macau di tempo  antigo é também obra de Portugal", criação dos descendentes dos primeiros portugueses, que "revela não apenas o poder de criação e de assimilação dos nossos maiores, como ainda os bons sentimentos, a índole, o espírito cordial e feitio bonachão dum povo inconfundível. São predicados que identificam o dialecto com a alma macaense"(5). A sua obra, em poesia ou prosa, fala-nos sobretudo de Macau e das suas gentes, sem contudo deixar de estabelecer uma forte ligação entre as culturas portuguesa e macaense. Ou não fosse Macau: "Tera di fé qui têm coraçám, / Tem alma, inchido di beléza, / Sã Macau! Nôsso bérço cristám, / Di Portugal chistosa princésa"(6).



Fontes:
(1), (2) e (3). Maria Teresa Sena "Ferreira, José Inocêncio dos Santos". Dicionário Temático de Macau,  Volume II. Universidade de Macau, 2011.
(4) António Aresta. "José dos Santos Ferreira". Tribuna de Macau de 17 de Fevereiro de 2011
(5) e (6) José dos Santos Ferreira. Macau Di Tempo Antigo. Edição do Autor, 1985

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A ilha da Taipa - por Raquel Soeiro de Brito



Fábrica de Panchões Yick Loong, Taipa. Década de 1960 
Fotografia de Ou Ping 
in Uma viagem no Tempo. Fotografias de Macau por Ou Ping". IACM, 2007


A ilha da Taipa
"Com seus 3,5 km2 e 4600 habitantes (1960) (fig. 9), Taipa tem uma densidade de população de 1315 h/km2; mas este número aumenta consideravelmente se for calculado em relação à superfície cultivável (área de 40 ha, em 1960): 11 500 h/km2.
Facilmente se compreende que nem as técnicas minuciosas, que os Chineses dominam como ninguém, tal população pode ter como base a agricultura. De facto, assim sucede: parte da população dedica-se à pesca, seguindo as técnicas já apontadas para as outras parcelas do território de Macau.
Contudo, não é nenhum destes modos de vida o principal na ilha, mas a indústria dos panchões, isto é, "canudos" de papel enrolados, cheios de pólvora e que, atados uns aos outros em longas "bichas", são queimados, com muito estrondo, em todas as festas. São as dependências isoladas das pequenas fábricas, a trepar pelas encostas nuas de SE, que se vêem do mar; é o emprego que as sete fábricas, hoje em laboração, proporcionam a mais de metade da população da ilha. Mas é também a ocupação, como indústria caseira, de todos os minutos livres, entre saídas para a pesca, os labores nas hortas, nos pequenos intervalos do trabalho doméstico; é principalmente o trabalho moroso e quase incerto dos meninos que dão a medida da importância deste ganha-pão. Se já na cidade esta actividade, aí secundária, é importante, aqui é-o muito mais, mesmo primordial. Nas fábricas só se efectuam os trabalhos perigosos ou de acabamento; todas as fases preliminares de execução dos "canudos" e seu envolvimento em papel colorido são feitos em casa ou, mais concretamente, à porta e no meio das ruas; e quantas vezes os olhos ficam pregados nos deditos dos garotos, mais pequenos do que o comprimento dos "canudos"... Quando os proventos familiares são escassos - e é o caso em toda esta região - há que recorrer a todas as possibilidades de ajuda.

Fabrico de Panchões, Taipa.  Década de 1960. 
Fotografia de Ou Ping 
in Uma viagem no Tempo. Fotografias de Macau por Ou Ping". IACM, 2007

As unidades fabris são compostas por grande número de barracões de cimento (pela maior parte), independentes, onde se procede ao enchimento dos canudos com pólvora, encaixotamento e armazenagem. Algumas operações são feitas ao ar livre, por grupos alegres de raparigas que, como em qualquer parte do mundo, aproveitam a mínima oportunidade para chacotearem umas com as outras.
As operações mais perigosas são as de confecção e transporte da pólvora (serviço só feito por homens) e do enchimento dos canudos; este processa-se quase às escuras, apenas participando em cada barraca três ou quatro mulheres.
Na eventualidade das explosões - que infelizmente são frequentes - existem em cada fábrica um ou mais tanques de água, sempre muito próximos dos barracões onde se manuseia a pólvora. Por vezes a violência das explosões é tal que rapidamente o fogo se propaga a vários edifícios; e infelizmente muitas são as ocasiões em que há vítimas a lamentar.
Por esta actividade tão importante na ilha, Taipa faz bem figura de "terra industrial", pelo menos ao lado da vizinha Coloane".
Raquel Soeiro de Brito. "Achegas para a Geografia de Macau". Revista da Junta de Investigação do Ultramar, nº 81 (Colóquios sobre as províncias do Oriente. Volume 2), 1968.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A ilha de Coloane - por Raquel Soeiro de Brito


"Avenida". Vila de Coloane, ca. de 1960. 
Fotografia de Lei Chiu Vang do álbum Visita ao Passado
Museu de Arte de Macau e Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais. 2004


A ilha de Coloane

"A ilha de Coloane, situada a 6 km ao sul de Macau, é um arco granítico formado por uma série de picos, de que o mais alto, aberto a sul-sudeste, tem 173m, separados uns dos outros por colos estreitos a alturas compreendidas entre os 50 e os 110 m (fig. 8). A costa é abrupta, à excepção da baía de Hac-Sá, a sudeste, e de pequenos anfiteatros formados pela junção de linhas de água, de que os mais importantes são Ká-Hó, Siac Pai Van, Tai Van e Coloane. É o mais extenso e menos povoado dos três territórios: 6,6 km2 de superfície, 2800 habitantes (1960) praticamente repartidos pela vila de Coloane, 1660, e pelas duas aldeias, Hác-Sá, 220, e Ká-Hó, 240. Todos os importantes lugares povoados se situam, pois, perto das melhores enseadas e são rodeados por um aro de culturas que começam por hortas junto das casas, e depois quase sempre arroz disposto em socalcos, mais ou menos estreitos, que trepam pelas encostas até onde os riachos e as nascentes podem fornecer água necessária a esta cultura. Apenas uns 40 ha (6 p. 100 da superfície) estão sujeitos a cultura regular, sendo o arroz a mais importante. Este é sempre plantado primeiro em viveiro cuidadosamente estruturado e, depois de umas três semanas, passa então aos tabuleiros definitivos; as espécies mais empregadas ficam na terra cerca de três meses, procedendo-se a uma monda sensivelmente a meio tempo. Fazem-se geralmente duas sementeiras por ano: em Março e em Julho; logo em Novembro se dá novo arranjo à terra para a produção de horta até ao mês de Março seguinte: há que aproveitar ao máximo toda a terra, que a gente é muita e o espaço agrícola reduzido.
Nas aldeias e lugares as casas são juntas em pequenos núcleos familiares, por entre os quais se insinuam os pedacitos de horta. As casa são térreas, de tejolinho de cutelo, como é tradicional no Sul da China, geralmente de planta rectangular e telhado de duas ou quatro águas. Este é sempre de telha plana, sendo as juntas protegidas por telhas de "meia cana", sucessoras dos antigos bambus partidos ao meio. Portas pequenas e estreitas e poucas aberturas para o exterior deixam sempre a casa com luz escassa. Além da sala - onde noite e dia ardem "pivetes" e lamparinas - e da cozinha, todas as outras dependências servem para guarda de utensílios e para dormir, abrindo-se os "burros" em qualquer canto e arrumando-os de dia contra qualquer parede.
A vila é pequena:  duas ruas paralelas entre si e à baía, ligadas por algumas pequenas transversais. Em quase todas as casas, tal como sucede no bairro do Bazar, na cidade, os pisos térreos são dedicados ao comércio: na rua fronteira à baía, quase só para o negócio da pesca; nas outras, para o comércio em geral. Em qualquer caso, os andares superiores são destinados à habitação. Tal como as aldeias, a vila termina por uma cintura de terrenos de cultura e só se distingue daquelas por ser maior, possuir casas de andar e pelo intenso movimento ligado à pesca. E porque aqui tudo está mais concentrado do que na cidade temos a ilusão de o movimento ser ainda maior, principalmente ao cair do dia e às primeiras horas da noite, quando se ultimam os preparativos para a faina.

"Remendando uma rede de pesca".  Ka-Ho, Coloane. Ca. 1970. 
Fotografia de Lei Chiu Vang do álbum Visita ao PassadoMuseu de Arte de Macau e Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais. 2004

Ao norte da vila e separado dela por um pequeno morro fica um velho estaleiro de construção naval, pertença de uma família de construtores que há cerca de dois séculos aqui se estabeleceu, vinda da ilha fronteira da Lapa, que continua fazendo e remendando barcos pelos tradicionais processos, entre os quais os de arqueação pelo fogo.

"Estaleiro em Coloane". Ca de 1970.  
Fotografia de Lei Chiu Vang do álbum Visita ao Passado
Museu de Arte de Macau e Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais. 2004
O interior da ilha é completamente desocupado e, como praticamente não tem vegetação, é presa fácil de erosão, que cava enormes grotas por onde, no tempo da chuva, rolam as águas em turbilhões, arrastando atrás de si massas enormes de material arrancado, descarnando a ilha com enorme rapidez. Urge, por isso, proceder ao repovoamento florestal, o que começou a fazer-se nos últimos anos.
Raquel Soeiro de Brito. "Achegas para a Geografia de Macau". Revista da Junta de Investigação do Ultramar, nº 81 (Colóquios sobre as províncias do Oriente. Volume 2), 1968. 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Maria Ondina Braga: "O Dia do Grande Frio"


A festa do tempo em terras da China. A Lua, que contou os dias e os meses, marca enfim a data, e o ano vai nascer. Toda a gente sai para a rua. Estalam panchões para afastar os demónios e purificar o ar. É o primeiro dia da semana comemorativa da criação do mundo.
Pregões em chinês: "Compre o ramo da sorte! O ramo da felicidade!"
Tendas de achares; barracas de frituras de peixe e de porco; sementes e frutas cristalizadas em açúcar; bolos de coco, de melaço, de feijão, de batata-doce, de gergelim; crisântemos, dálias, flor de pessegueiro.
O velho herbanário, de óculos na ponta do nariz e barba comprida e rala, senta-se na penumbra da loja a ver passar as pessoas e a fumar, pensativo. Não fuma narcóticos, embora os venda em segredo e só para remédio. Alimenta o cachimbo com uma mistura de ervas aromáticas e medicinais. Condena o pakfanismo. Sabe uma história de deuses que se embriagaram de ópio e enlouqueceram. Daí já não haver deuses. O ópio compara-se à celebridade. Os deuses encheram-se de si próprios, do seu poder, abismaram-se na sua glória - pakfanistas em delírio -, descuidaram o governo do mundo e sobreveio o caos. Desataram-se os ventos, a terra tremeu, os rios transbordaram do leito arrasando cidades e campos. Desde então, o homem ficou na confusão do cosmo. E ilude-se venerando as imagens dos deuses antigos, desses que perderam o juízo, que já não são. E fuma ele próprio o pó branco (Pak-fân) imaginando-se no Sétimo Céu.
A religião do herbanário é a Natureza: as plantas, os animais, os elementos. Estender o corpo nu ao sol uma hora por dia dá mais força do que um bom repasto de ade salgado. A água das fontes que brota entre pedras, bebida de noite, quanto mais fria, pode conceder a juventude eterna, talvez - quem sabe? - a imortalidade. Da banha de tigre alguém extraiu um bálsamo para todas as dores - medicamento célebre no mundo inteiro; o seu descobridor tornou-se o homem mais rido do Sul da China. E a flor branca do trigo e os seus poderes analgésicos?
Boticário,curandeiro, tirante a médico, o herbanário recebe doentes e receita. As pessoas procuram-no quando sofrem de insónias (ele aconselha engolir dentes de alho cru), de friagem nos ossos, de sezões. No seu dizer, todas as plantas guardam propriedades benéficas ou maléficas, só que a maior parte dessas propriedades se desconhecem ou não se aproveitam. A papoila, por exemplo é a flor do mal. Mas já o alecrim o bem que não faz a certos estados debilitados ou de convalescença! Antigamente nenhuma mulher de parto prescindia de uma inalação de alecrim e vinho quente. Águila, pucho, abuta, formam juntas uma das mais importantes mezinhas da farmacopeia chinesa. E a água de cozer arroz - o arroz, a planta por excelência da terra da China! - não cura males de estômago e de intestinos, não é boa para lavar o rosto suado depois das febres?
Hoje, porém, véspera de Ano Lunar, com as ruas iluminadas, fogo de artifício, divertimentos e bulício por toda a parte, o herbanário bebe chá de jasmim, sozinho, na soleira da porta, e fuma as suas ervas. Em noite de Ano Bom ninguém adoece. As pessoas passam, a palrar, a rir, a trincar pevides tingidas, e nem nele reparam. Um ou outro ainda lhe lança de longe a saudação da época: Kung Hei Fat Choi (Feliz Ano Novo), à qual não responde. Um escárnio aquelas palavras. Ano Novo? O tempo é sempre o mesmo. Estagnou. Quando havia realmente deuses (deve ter havido porque as suas figuras lá estão no pagode), decerto que cada ano representava uma benção do Céu. Generosos, os governantes divinos dotavam-no de ventura, abundância, vigor. Filho da Lua e do Sol, os homens recebiam-no com bem merecidos festejos. Nova era que se prolongava diante deles, fecunda, cheia de promessas. Presentemente, no entanto, que triste arremedo! No dia seguinte, logo de madrugada (ele toda a noite acordado; o estampido dos panchões não o deixa dormir), lá virá bater-lhe à porta o que comeu e bebeu de mais (geralmente amparado por um amigo), desolhado, aos arrancos, e lá terá de lhe arranjar um vomitório e de lhe suster, com engulho, a testa escaldante. E as raparigas que aparecem a suplicar um impedimento para a gravidez! "Ainda irá a tempo?". Vê-as nos braços dos homens. Quantos? Noite de Ano Bom, farra, dão largas aos instintos, desmandam-se. Agora, todavia, choram, agarradas às mangas da sua cabaia, como se ele não fosse também homem. Sente ganas de as levar para as traseiras da loja e de as derrubar na esteira. Sempre, sempre esse desejo vil lhe sobe do fundo do ser, mas sempre também o reprime. Nem em moço (e bem parecido que era!) deixara de se dominar. Mulheres nunca lhe haviam faltado, mas mulheres que o queriam e o esperavam. Talvez por haver tantas e tão belas mulheres na terra da China é que jamais se casara. Como as plantas, cada mulher possui grandes virtudes ou grandes defeitos, mas só depois de as tomarem por esposas é que os homens as conhecem. E não vale a pena. Antes de casar, são elas as flores e eles os besouros. Amá-las não passa de um gracioso esvoaçar à sua volta, um estonteamento. As plantas, essas, sim, interessam-lhe: estudar-lhes longamente defeitos e virtudes, numa espécie de volúpia.
As raparigas vêm rogar-lhe ajuda, aflitas, e ele dá-lhes ervas de desfazimento que as farão estorcer de dores uma noite inteira, o que nada condiz com os votos de alegria e felicidade que os namorados lhes ofereceram, no dia da festa, em largas faixas de papel vermelho a letras de oiro.
Ah, ele, o mais famoso herbanário de Macau, com prática de largos anos nas maiores cidades da China, o que sabe da miséria dos homens e das suas ilusões! Ilusões ou ignorância?
"Diga-me, isto não é lepra, pois não?" Há quarenta, há cinquenta anos. Dia de festa, também. O homem mais abastado da região. Mesa posta (sopa cheirosa de cobra, aguardente de arroz velha e loira- jade líquido), um ror de convidados... E a chaga a devorar-lhe  raivosamente o peito. "Se me curar, dou-lhe uma bolsa de oiro!".
Tinha calcorreado longos caminhos até a casa do doente, e não podia senão receitar-lhe o pó branco, para ao menos lhe abrandar o padecimento. Tão desgraçados os homens que, para não desesperarem, chegavam a valer-se da flor do mal.
Duas semanas atrás fora o Dia do Grande Frio, dia em que os Chineses comem arroz carolino (ló-mai), e desde então a preparação para o Ano Novo.
O herbanário assistira a essa preparação com um sorriso céptico. Vendera mais que nunca, naturalmente. Toda a gente queria chá purgativos, todos compravam mezinhas contra ventos sujos, ervas da fortuna e da inveja, filtros de amor e de sedução. As mães pobres pediam caroços chamuscados de anona para limpar de parasitas a cabeça dos filhos. E havia  quem o fizesse devassar prateleiras e gavetas em busca de uma especiaria muito fina (mais picante que o gengibre, mais doce que o anis) para temperar um pudim de Ano Bom destinado ao templo.
A todos atendia o herbanário, mal tendo tempo de mexer os pauzinhos às refeições cozinhadas ali mesmo, na loja, ou de sorver um gole de chá.
O Dia do Grande Frio. Dia da rendição dos deuses? Do seu enlouquecimento? As pessoas não reflectiam nessa designação, ocupadas que andavam com o advento da festividade, e atribuíam-na à descida de temperatura. Ele, porém, que sabia do tempo parado, nulo, meditava na ironia das palavras: Grande Frio - morte. Ano Novo - vida. Como podia a morte gerar vida, o fim vir antes do princípio? Necessário ser herbanário e viver só para perscrutar tais mistérios. Necessário ter gasto a vida a tentar curar carnes ulceradas, olhos baços de cegueira, nervos rasgados de convulsões, pestíferos, tolhidos, tísicos, alucinados, histéricos empecidos. Ter passado noites em claro a preparar tisanas, emplastros, cáusticos e elixires, a manipular unguentos, a pulverizar cristais, resinas, raízes, mucosidades, detritos. (Não havia nos excrementos de certas aves grandes propriedades terapêuticas?). E ter falhado miseravelmente, recorrido a soporíferos, a expedientes, a paliativos. Necessário, acima de tudo, ser, dia a dia, testemunha da ausência da Guarda Divina, o mesmo que dizer: do desamparo das criaturas.
Noite de Ano Novo chinês. Meio oculto no vão da porta, e imperturbável, o herbanário assiste ao espectáculo das ruas: homens e mulheres passando, eufóricos, com o ramo de pessegueiro erguido alto, como meninos pequenos segurando a amarra dos papagaios. Vão ao pagode apresentar oferendas, trocam presentes entre si, compram bolos pesados e enjoativos, comem e bebem, jogam jogos de azar, amam. Nessa noite o herbanário não existe. Morrer fica para o dia seguinte. Morrer ou sofrer - que ainda é pior. O herbanário, pessimista e ateu, não tem nada com aquilo, nada com eles, de momento. Não o vêem nem o querem ver. Que masque as suas folhas e rumine os seus lúgubres pensamentos na sombra da loja. Rebentam com mais estrondo os panchões. O ar fica completamente limpo à meia-noite., hora marcada para o nascimento do ano, quando o relógio da praça deixar cair solenemente as doze badaladas. Kung Hei Fat Choi - Festas Felizes!.
"Acuda-me. Excedi-me. Tenho setenta e mais anos e um martelo no coração!"
"Dormi com um marinheiro que me pegou humores ruins..."
Enquanto avia as mezinhas, em silêncio, o herbanário vai cogitando no Dia do Grande Frio. Celebração da morte do tempo? Aniversário do suicídio dos deuses?
Maria Ondina Braga. A China fica ao ladoLisboa, Unibolso, Bertand.


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Pátio com fruto e vento. E tudo

Altar no Pátio do Mestre, junto da Travessa dos Becos.
Macau, Março de 2010


PÁTIO COM FRUTO E VENTO.  E TUDO
O fruto
e
o vento
sabem-se
merecem-se
e
o tempo
de serem um tempo só

João Rui Azeredo. Pátio das Palavras. Edições Mar-Oceano, Macau 1995

António Manuel Couto Viana: no Bazar macaense


"(...)
Vida e morte se enlaçam e trepidam e fervilham por ruas e praças, que, a partir dali, se espalham numa área ampla, onde se impõe o colorido e alarido do Bazar macaense. Bulício pitoresco e odoroso a evolar-se das pequenas tendas: umas, álacres de frutos tropicais (a tangerina, a banana, a manga, a papaia, o ananás...), outras, reclinando, nas névoas gordurosas, alimentos quase minúsculos, de que não se consegue decifrar os ingredientes e os subtis condimentos.
E o estendal de roupas, o amontoar do calçado, das plantas e flores, de velharias semeadas pela azáfama dos tintins,  no centro das ruas, nos passeios, nas lojas escancaradas à curiosidade e à cobiça.
O poeta perde-se por estes dédalos, aspira estes aromas, deixa perder o olhar por estes tesoiros decadentes, ganha inspiração para novos versos:

Mergulho na vida, na voz deste bazar
Com lojas, tendas, vendedores de rua:
É um rio de rumor e de cor, tentacular,
Que flui, eflui e, de repente, estua.
Afoga-me o fascínio da faiança, do jade,
Dos electrónicos subtis, sofisticados,
Dos adivinhos da felicidade,
Com óculos severos de letrados. 
Aqui, na margem de um afluente,
Junto de velhos móveis, de ferragens, de moedas,
De um deus irado, de outro sorridente,
Ambos sujos de pó, nuns farrapos de sedas. 
De um disco fatigado de rock, da legenda
Que eu não decifro, com provérbios chins,
Senta-se atento à mão que ávida se estende
O homem dos tintins
(Viu ele um português, pertinaz e sem pressa,
De olhar estranho, magro, a longa barba preta,
Descobrir, entre o inútil, o valor de uma peça,
Com a ciência de sábio e arte de poeta?) 
Além, fumega e aromatiza o gosto
A tenda dos petiscos. Tentação!
Como tudo apetece, quando exposto!
Mas, comê-lo... Não sei se sim ou não.
Mais além, Hong-Kong, no templo do Bazar,
Um bom mercado ao mercador promete.
E ele, submisso, lhe vem pôr no altar
A tangerina, a flor, e lhe acende o pivete. 
Entro no Loc-Koc, "casa de tomar chá".
No alvor das madrugadas,
É uma gaiola imensa, durante o iam-chá,
Servido entre gorjeios de asas excitadas. 
Lá fora, o riquexó, hoje triciclo, rasa
A multidão: persegue uma nesga de espaço,
Levando a rapariga a caminho de casa,
Com sacos das compras no regaço. 
E ao ritmo da rua e da emoção,
Os meus olhos descobrem, deslumbrados,
Navegando ao pulsar do coração,
Um navio vermelho de caracteres doirados. 
(...) 
António Manuel Couto Viana. O Poeta no Oriente do Oriente. Instituto Internacional de Macau. Colecção Mosaico, Volume V, 2007



terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

"Os Tintins - Shops de Macau" por Filipe Emílio de Paiva


Igreja de Stº António
Bilhete Postal editado por M. Sternberg - Hong Kong
in João Loureiro. Postais Antigos de Macau 

"Permanecendo um certo tempo em Macau, mais tarde ou mais cedo, tem que se ir aos tintins, ou lojas de bricabraque chinesas.
Aglomeram-se estas lojas por detrás da Igreja de Stº António.
Tudo o que há de mais esquisito e disparatado em mobílias, loiças, antigas e modernas, chinesas ou europeias, aparece no amontoamento destas lojas, de envolta com lixo, maus cheiros, a cozinha e o menage dos proprietários.
Quem tem paciência para andar de um para outro tintin, rebuscando, regateando, consegue às vezes, mas raramente, encontrar algum bordado antigo e raro, alguma porcelana, jarra ou chávena de algum valor, e que se adquire barato. Porém isto já está tão explorado, e como em Hong Kong o mercado é maior e mais rico, os tintins de Macau nada dão ao curioso, que recompense a maçada de regatear com os chineses, discutir, entrar e sair em recusas de oferecimentos cinco ou seis vezes na mesma loja.
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"Mas nestas lojas está tudo amontoado! São barracas que extravasam a rua. louças, botas e sapatos, ferragens, armas, pratos e estatuetas, oleografias, números dos jornais ilustrados, ingleses ou franceses, tudo isto abrigado do sol ou da chuva por toldos seguros por varas de bambu, ou ripados de tábuas negras ardidas pelo sol e pela chuva.
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É isto o que se chama um tintin.
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Filipe Emílio Paiva. Um Marinheiro em Macau - 1903 - Álbum de Viagem. Museu Marítimo de Macau, 1997