A festa do tempo em terras da China. A Lua, que contou os dias e os meses, marca enfim a data, e o ano vai nascer. Toda a gente sai para a rua. Estalam panchões para afastar os demónios e purificar o ar. É o primeiro dia da semana comemorativa da criação do mundo.
Pregões em chinês: "Compre o ramo da sorte! O ramo da felicidade!"
Tendas de achares; barracas de frituras de peixe e de porco; sementes e frutas cristalizadas em açúcar; bolos de coco, de melaço, de feijão, de batata-doce, de gergelim; crisântemos, dálias, flor de pessegueiro.
O velho herbanário, de óculos na ponta do nariz e barba comprida e rala, senta-se na penumbra da loja a ver passar as pessoas e a fumar, pensativo. Não fuma narcóticos, embora os venda em segredo e só para remédio. Alimenta o cachimbo com uma mistura de ervas aromáticas e medicinais. Condena o pakfanismo. Sabe uma história de deuses que se embriagaram de ópio e enlouqueceram. Daí já não haver deuses. O ópio compara-se à celebridade. Os deuses encheram-se de si próprios, do seu poder, abismaram-se na sua glória - pakfanistas em delírio -, descuidaram o governo do mundo e sobreveio o caos. Desataram-se os ventos, a terra tremeu, os rios transbordaram do leito arrasando cidades e campos. Desde então, o homem ficou na confusão do cosmo. E ilude-se venerando as imagens dos deuses antigos, desses que perderam o juízo, que já não são. E fuma ele próprio o pó branco (Pak-fân) imaginando-se no Sétimo Céu.
A religião do herbanário é a Natureza: as plantas, os animais, os elementos. Estender o corpo nu ao sol uma hora por dia dá mais força do que um bom repasto de ade salgado. A água das fontes que brota entre pedras, bebida de noite, quanto mais fria, pode conceder a juventude eterna, talvez - quem sabe? - a imortalidade. Da banha de tigre alguém extraiu um bálsamo para todas as dores - medicamento célebre no mundo inteiro; o seu descobridor tornou-se o homem mais rido do Sul da China. E a flor branca do trigo e os seus poderes analgésicos?
Boticário,curandeiro, tirante a médico, o herbanário recebe doentes e receita. As pessoas procuram-no quando sofrem de insónias (ele aconselha engolir dentes de alho cru), de friagem nos ossos, de sezões. No seu dizer, todas as plantas guardam propriedades benéficas ou maléficas, só que a maior parte dessas propriedades se desconhecem ou não se aproveitam. A papoila, por exemplo é a flor do mal. Mas já o alecrim o bem que não faz a certos estados debilitados ou de convalescença! Antigamente nenhuma mulher de parto prescindia de uma inalação de alecrim e vinho quente. Águila, pucho, abuta, formam juntas uma das mais importantes mezinhas da farmacopeia chinesa. E a água de cozer arroz - o arroz, a planta por excelência da terra da China! - não cura males de estômago e de intestinos, não é boa para lavar o rosto suado depois das febres?
Hoje, porém, véspera de Ano Lunar, com as ruas iluminadas, fogo de artifício, divertimentos e bulício por toda a parte, o herbanário bebe chá de jasmim, sozinho, na soleira da porta, e fuma as suas ervas. Em noite de Ano Bom ninguém adoece. As pessoas passam, a palrar, a rir, a trincar pevides tingidas, e nem nele reparam. Um ou outro ainda lhe lança de longe a saudação da época: Kung Hei Fat Choi (Feliz Ano Novo), à qual não responde. Um escárnio aquelas palavras. Ano Novo? O tempo é sempre o mesmo. Estagnou. Quando havia realmente deuses (deve ter havido porque as suas figuras lá estão no pagode), decerto que cada ano representava uma benção do Céu. Generosos, os governantes divinos dotavam-no de ventura, abundância, vigor. Filho da Lua e do Sol, os homens recebiam-no com bem merecidos festejos. Nova era que se prolongava diante deles, fecunda, cheia de promessas. Presentemente, no entanto, que triste arremedo! No dia seguinte, logo de madrugada (ele toda a noite acordado; o estampido dos panchões não o deixa dormir), lá virá bater-lhe à porta o que comeu e bebeu de mais (geralmente amparado por um amigo), desolhado, aos arrancos, e lá terá de lhe arranjar um vomitório e de lhe suster, com engulho, a testa escaldante. E as raparigas que aparecem a suplicar um impedimento para a gravidez! "Ainda irá a tempo?". Vê-as nos braços dos homens. Quantos? Noite de Ano Bom, farra, dão largas aos instintos, desmandam-se. Agora, todavia, choram, agarradas às mangas da sua cabaia, como se ele não fosse também homem. Sente ganas de as levar para as traseiras da loja e de as derrubar na esteira. Sempre, sempre esse desejo vil lhe sobe do fundo do ser, mas sempre também o reprime. Nem em moço (e bem parecido que era!) deixara de se dominar. Mulheres nunca lhe haviam faltado, mas mulheres que o queriam e o esperavam. Talvez por haver tantas e tão belas mulheres na terra da China é que jamais se casara. Como as plantas, cada mulher possui grandes virtudes ou grandes defeitos, mas só depois de as tomarem por esposas é que os homens as conhecem. E não vale a pena. Antes de casar, são elas as flores e eles os besouros. Amá-las não passa de um gracioso esvoaçar à sua volta, um estonteamento. As plantas, essas, sim, interessam-lhe: estudar-lhes longamente defeitos e virtudes, numa espécie de volúpia.
As raparigas vêm rogar-lhe ajuda, aflitas, e ele dá-lhes ervas de desfazimento que as farão estorcer de dores uma noite inteira, o que nada condiz com os votos de alegria e felicidade que os namorados lhes ofereceram, no dia da festa, em largas faixas de papel vermelho a letras de oiro.
Ah, ele, o mais famoso herbanário de Macau, com prática de largos anos nas maiores cidades da China, o que sabe da miséria dos homens e das suas ilusões! Ilusões ou ignorância?
"Diga-me, isto não é lepra, pois não?" Há quarenta, há cinquenta anos. Dia de festa, também. O homem mais abastado da região. Mesa posta (sopa cheirosa de cobra, aguardente de arroz velha e loira- jade líquido), um ror de convidados... E a chaga a devorar-lhe raivosamente o peito. "Se me curar, dou-lhe uma bolsa de oiro!".
Tinha calcorreado longos caminhos até a casa do doente, e não podia senão receitar-lhe o pó branco, para ao menos lhe abrandar o padecimento. Tão desgraçados os homens que, para não desesperarem, chegavam a valer-se da flor do mal.
Duas semanas atrás fora o Dia do Grande Frio, dia em que os Chineses comem arroz carolino (ló-mai), e desde então a preparação para o Ano Novo.
O herbanário assistira a essa preparação com um sorriso céptico. Vendera mais que nunca, naturalmente. Toda a gente queria chá purgativos, todos compravam mezinhas contra ventos sujos, ervas da fortuna e da inveja, filtros de amor e de sedução. As mães pobres pediam caroços chamuscados de anona para limpar de parasitas a cabeça dos filhos. E havia quem o fizesse devassar prateleiras e gavetas em busca de uma especiaria muito fina (mais picante que o gengibre, mais doce que o anis) para temperar um pudim de Ano Bom destinado ao templo.
A todos atendia o herbanário, mal tendo tempo de mexer os pauzinhos às refeições cozinhadas ali mesmo, na loja, ou de sorver um gole de chá.
O Dia do Grande Frio. Dia da rendição dos deuses? Do seu enlouquecimento? As pessoas não reflectiam nessa designação, ocupadas que andavam com o advento da festividade, e atribuíam-na à descida de temperatura. Ele, porém, que sabia do tempo parado, nulo, meditava na ironia das palavras: Grande Frio - morte. Ano Novo - vida. Como podia a morte gerar vida, o fim vir antes do princípio? Necessário ser herbanário e viver só para perscrutar tais mistérios. Necessário ter gasto a vida a tentar curar carnes ulceradas, olhos baços de cegueira, nervos rasgados de convulsões, pestíferos, tolhidos, tísicos, alucinados, histéricos empecidos. Ter passado noites em claro a preparar tisanas, emplastros, cáusticos e elixires, a manipular unguentos, a pulverizar cristais, resinas, raízes, mucosidades, detritos. (Não havia nos excrementos de certas aves grandes propriedades terapêuticas?). E ter falhado miseravelmente, recorrido a soporíferos, a expedientes, a paliativos. Necessário, acima de tudo, ser, dia a dia, testemunha da ausência da Guarda Divina, o mesmo que dizer: do desamparo das criaturas.
Noite de Ano Novo chinês. Meio oculto no vão da porta, e imperturbável, o herbanário assiste ao espectáculo das ruas: homens e mulheres passando, eufóricos, com o ramo de pessegueiro erguido alto, como meninos pequenos segurando a amarra dos papagaios. Vão ao pagode apresentar oferendas, trocam presentes entre si, compram bolos pesados e enjoativos, comem e bebem, jogam jogos de azar, amam. Nessa noite o herbanário não existe. Morrer fica para o dia seguinte. Morrer ou sofrer - que ainda é pior. O herbanário, pessimista e ateu, não tem nada com aquilo, nada com eles, de momento. Não o vêem nem o querem ver. Que masque as suas folhas e rumine os seus lúgubres pensamentos na sombra da loja. Rebentam com mais estrondo os panchões. O ar fica completamente limpo à meia-noite., hora marcada para o nascimento do ano, quando o relógio da praça deixar cair solenemente as doze badaladas. Kung Hei Fat Choi - Festas Felizes!.
"Acuda-me. Excedi-me. Tenho setenta e mais anos e um martelo no coração!"
"Dormi com um marinheiro que me pegou humores ruins..."
Enquanto avia as mezinhas, em silêncio, o herbanário vai cogitando no Dia do Grande Frio. Celebração da morte do tempo? Aniversário do suicídio dos deuses?
Maria Ondina Braga. A China fica ao lado. Lisboa, Unibolso, Bertand.
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
Maria Ondina Braga: "O Dia do Grande Frio"
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