sexta-feira, 3 de outubro de 2014

“Aconteceu em Mong-Há”, uma história de Macau

“Aconteceu em Mong-Há” é uma história de Macau narrada por Ana Maria Amaro, publicada na revista MacaU de Julho de 1996


Foi há muitos, muitos anos…
Um dia, ao fim da tarde, um bul-bul de dorso verde azeitona, manchado de amarelo, fugiu de uma das gaiolas de bambu de hastilhas finas, onde o seu dono acabara de prender um lindo bebedouro em porcelana pintada. A ave voou para um dos ramos da maior árvore do Largo do Arvoredo, em Mong-Há, e ficou a balouçar-se assustada, errando à toa, sem saber para onde ir, ignorante dos caminhos da liberdade. Saltava, de ramo em ramo, entontecida, alheia ao desespero do seu velho dono, que a adquirira por bom preço e a via agora aparecer e desaparecer entre a folhagem verde escura da árvore de gondom (1).
Um rapaz azougado da aldeia, que assistira à cena, subiu lesto à árvore para apanhar o pássaro fugitivo. Porém, quando agarrou a ave, o tronco onde se apoiava cedeu ao seu peso e, desamparadamente, veio despenhar-se, de muito alto, sobre o velho banco de pedra onde os anciãos se reuniam a jogar cheong kei (2).
A queda foi fatal. Nenhum remédio foi eficaz para o curar. Foi chamado o mais famoso médico tradicional da aldeia, que achou a cura impossível. Veio a man-héong-pó. Veio o bonzo de Tou, famoso pelas suas artes mágicas curativas, que morava para as bandas de San Kiu. Tudo em vão. O rapaz morreu nos seus verdes anos, desastrosamente, sem ter cumprido a sua missão na terra. Para mais, era mau filho; não cumpria os seus deveres para com a sua velha mãe, obrigando-a a trabalhar arduamente para o sustentar, enquanto passava os dias a divagar pela cidade, jogando dados e cartas de pau (3), sem nada fazer de útil.
A partir de então, aquela árvore passou a ser temida. Na sua densa ramagem passara a habitar uma alma faminta, um espírito errado, um kwâi.
Os aldeões de Mong-Há evitaram, desde aí, passar, de noite, pelo Largo do Arvoredo fronteiro ao Kun Iâm Ku Miu, onde se encontrava aquela árvore malissombrada, a mais frondosa do terreiro.
Contavam-se várias histórias…
Á-Fai, um aguadeiro da aldeia, que residia perto do chi tei (4) do Kun Iâm Ku Miu, possuía, para o transporte da água que vendia aos moradores da cidade, uma pequena zorra de madeira, onde levava os môk tong (5) cheios do precioso líquido. De noite, este pesado carro ficava na rua, diante da sua casa. O kwâi da árvore fronteira divertia-se, então, a deslocá-lo, por vezes para enormes distâncias, as quais, no dia seguinte, o aguadeiro tinha de percorrer, antes de iniciar a sua faina. E isto porque um dia Á-Fai troçara dos aldeões que acreditavam naquele kwâi que residia na grande árvore, a mais velha de Mong-Há.
De outra vez, o lou lei pak (6) da aldeia, homem já muito idoso, ao passar a desoras pelo Largo do Arvoredo, viu alguns garotos a trepar e a brincar perigosamente empoleirados nos ramos da famigerada árvore. Receoso de alguma queda desastrosa, incentivou-os, mandando-os para casa. Eram horas de dormir. Não eram horas de brincar! Como resposta, foi agredido por uma saraivada de pedras. É que aqueles garotos eram kwâis que vinham brincar com o outro que ali residia há muitos anos.
Não só os chineses, porém, eram alvo das diabruras daquela pobre alma penada. Um dia, um militar português, seguindo, de noite, em direcção à chácara da família Senna Fernandes, quando subia a chamada ladeira de San Tei num jerinxá manual, ao aproximar-se do Largo do Arvoredo, foi quase arremessado ao chão, porque o jerinxá parou bruscamente. O cule sentiu, de repente, que não podia avançar, porque o peso do seu carrinho de um só lugar aumentara inexplicavelmente, ultrapassando a capacidade de tracção dos seus braços. O militar, irritado, pensando ser manha do condutor, deu-lhe um pontapé, com certa violência. Imediatamente recebeu uma forte bofetada dada por mão invisível. É que se tratava do kwâi que vivia na árvore mofina e que se apoiara no jerinxá, fazendo-o assim parar mercê do peso adicional. A bofetada dada pelo kwâi foi de tal ordem que o militar ficou em estupor e com a boca torta (7).
Com a abertura da Avenida Coronel Mesquita o grande largo do Kun Iâm Ku Miu foi amputado e, com ele, as suas velhas árvores, entre as quais a malissombrada, que ninguém ousara, até ali, abater.
Árvore com leng… árvore respeitável. Mas também árvore onde morava um kwâi.
Vieram os bonzos. Queimaram-se papéis. Fizeram-se orações para que os deuses não se ofendessem com as transformações impostas à aldeia. E houve, ainda, quem se lembrasse do rapaz que, há muito, muito tempo, por causa de um bul-bul, passara a viver no imaginário colectivo da população pacífica de Mong-Há
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(1) Nome de Macau dado às árvores-de-pagode (árvores do género Ficus, cujos frutos têm a forma de pequenas esferas).(2) Xadrez chinês.(3) Dominó chinês. (4) Pequeno altar exterior dedicado a Tou Tei, o Espírito do Solo.(5) Baldes chineses de transporte de água, feitos em madeira.(6) Guarda-nocturno e marcador de períodos horários.(7) Forma local de referir acidentes vasculares cerebrais.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Altar dedicado a Tou Tei

Pormenor do chi tei ou altar exterior  dedicado a Tou Tei , que se encontra à entrada do templo de Kun Iam na vila de Coloane. 
Tou Tei é o espírito protector dos lugares, o deus da rua, do bairro ou da povoação e encontra-se nas ruas, à entrada das casas e dos templos, em pequenos nichos ou em altares - chi tei - com a estátua do Tou Tei ou, por vezes, uma simples pedra simbolizando o deus.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

A Festa da Lua no Macau do século XVII

"Aproximava-se o mês de Outubro e com ele a festa da nona Lua, denominada "lua do crisântemo". De acordo com a tradição, as casas enfeitavam-se de balões vermelhos e as ruas de estandartes, cartazes e luminárias à noite. Foi a primeira festa na cidade realizada após o regresso de D. Catarina, que com saudosa satisfação revia aqueles enfeites alusivos ao acontecimento, distribuídos por toda a parte e com maior profusão no Bazar chinês, no largo do Senado, no largo de S. Domingos e em frente à Sé. Durante três a cinco dias, jovens e adultos compravam bolos da lua para oferecer aos amigos, cumprindo um voto tradicional de amizade entre os moradores, com base numa história em que o exemplo da cooperação e boa vizinhança salvara Macau de ser tomada pelos inimigos. Admirada de ver as ruas todas engalanadas, Ana Maria exclamou:
-- Grande festa bonita! É também para mim, nhónha mãe?
-- É sim, minha pequerrucha. É para toda a gente. Todos os anos, quando chega a nona Lua, a cidade inteira faz esta festa.
-- É festa de casamento?
-- Não! É para lembrar uma história antiga que salvou a cidade de ser atacada por homens maus.
-- Conta essa história...
-- Dizem que certa vez, um boca de rua* achou maneira de enviar a todos os vizinhos uma mensagem, metendo um papel escrito dentro de cada bolo, que distribuiu de porta em porta. No bilhete pedia a todos os homens que se reunissem com as suas armas, à mesma hora e no lugar marcado para defesa da cidade, que estava prestes a ser atacada por um malfeitor.
-- E os homens foram lá, a esse lugar?
-- Foram, e não deixaram o pirata fazer mal aos moradores.
-- O pirata veio de noite?
-- Não sei minha filha. Porque perguntas isso?
-- Ah! Porque tem muitos balões com luminárias. Como é que não se queimam?
(...)"
Maria Helena S.R. do Carmo. Uma Aristocrata Portuguesa no Macau do Século XVII. Nónha Catarina de Noronha. Inquérito e Fundação Jorge Álvares, 2006

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* Porta voz dos moradores de uma rua ou bairro


NOTA: Existem diversas lendas associadas à festa da lua e, em particular, no que respeita à lenda do bolo lunar ou "bolo bate-pau" são conhecidas várias versões, como por exemplo esta narrada por Luís Gonzaga Gomes.

Festa da Lua


O redondo
da fruta redonda
no arredondado
de um prato
ao luar

a gema circular
no interior
do bolo lunar
guardado em cada mão

e na praia nua
crianças luzindo
na escuridão
luzinhas a fingir de lua

Jorge Arrimar. Secretos Sinais. ICM, 1992

sábado, 19 de julho de 2014

No Museu de Macau: uma exposição de fotografias da China de John Thomson: Colotipia ‧ Retorno - Perspectivas Convergentes de John Thomson e Wong Ho Sang



A exposição Colotipia Retorno - Perspectivas Convergentes de John Thomson e Wong Ho Sang, organizada pelo Museu de Macau, sob a égide do Instituto Cultural, será inaugurada no dia 29 de Maio, às 18:00, da parte da tarde, convidando o Museu residentes e turistas a visitá-la entre os dias 30 de Maio e 31 de Agosto.

Esta exposição contém duas secções. A primeira exibe os trabalhos do fotógrafo britânico John Thomson (1837-1921) na sua primeira visita ao Extremo Oriente no séc. XIX. Thomson viajou pela China entre 1868 e 1872, registando a vida e os costumes locais através da fotografia. Estas fotografias tornaram-se preciosos materiais de referência de investigação da sociedade chinesa da época. O álbum colecção Illustrations of China and Its People (Londres, 1873-1874), exibido na exposição, foi publicado em Londres através da técnica da colotipia, compreendendo mais de 200 fotografias obtidas por colódio húmido, tiradas em Macau, Hong Kong, Guangzhou, Shantou, Fuzhou, Xiamen, Taiwan, Shanghai, Ningbo, Nanjing, Sichuan, Tianjin, Beijing e Pequim, entre outros locais.

Não satisfeito com a qualidade proporcionada pela técnica de impressão tradicional da época, Thomson recorreu à colotipia, o mais avançado e inovador método de impressão na altura capaz de produzir imagens de elevada resolução. Para garantir uma boa impressão, ele próprio supervisionava todo o processo. O colotipo é categorizado com litografia, e um dos primeiros exemplos de foto-litografia. Em geral, sobre uma matriz constituída por uma chapa de vidro, estendia-se uma capa de emulsão fotossensível constituída por gelatina bicromática, a qual era cozida e depois impressa mediante contacto com o negativo fotográfico, e por tal também conhecida como “impressão por chapa de vidro”.
Para tornar mais compreensível aos visitantes a técnica fotográfica oitocentista utilizada por John Thomson no século XIX, a segunda secção da exposição exibe trabalhos obtidos pelo processo de colódio húmido realizados especialmente para a exposição pelo fotógrafo contemporâneo de Macau Wong Ho Sang. Tendo Macau como tema, esta série de fotografias inclui retratos, paisagens, construções e naturezas-mortas. O artista produziu um conjunto de obras de arte fotográficas nas quais coexiste o antigo e o moderno, integrando o velho e o novo, através da combinação de técnicas primitivas de fotografia e de conceitos criativos contemporâneos. Além das fotografias por colódio húmido, será também exposto o equipamento que o fotógrafo usou, que inclui três câmaras em madeira de grande formato, respectivamente das décadas de 1890, de 1960 e, a mais recente, de 2013.

A fim de permitir aos visitantes aprenderem mais sobre técnicas fotográficas da época e sobre as obras de John Thomson, o Museu de Macau irá ainda promover uma palestra sobre o assunto no próximo dia 31 de Maio, pelas 15:00 horas, no Auditório do Museu. O célebre académico, fotógrafo e designer inglês Michael Gray irá proferir esta palestra subordinada ao tema “Além dos Negativos de Vidro-John Thomson e Fotografia na China”. Esta palestra irá fazer uma introdução à história da invenção da fotografia e à contribuição da Inglaterra e da França para esta arte; irá também examinar o conceito fotográfico de John Thomson através de registos e manuscritos e apresentar a tecnologia de impressão por colódio húmido que adoptou. A mesma será conduzida em inglês com tradução simultânea para cantonense. Caso os cidadãos tenham interesse na palestra, podem contactar a Sr.ª Leong através do telefone n.º 8394 1218 para fazer a sua reserva.
O Museu de Macau encontra-se aberto diariamente das 10:00 às 18:00 horas (a bilheteira encerra às 17:30 horas). No entanto, no dia 29 de Maio, a bilheteira o Museu irá encerrar às 16:00 horas devido aos preparativos da cerimónia de abertura desta exposição temporária.
Para mais informações sobre a presente exposição e outras actividades conexas, é favor ligar para o tel. (853) 2835 7911 durante as horas de expediente ou visitar: www.macaumuseum.gov.mo ou www.icm.gov.mo.



http://www.icm.gov.mo/pt/News/NewsDetail.aspx?id=11586