quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Praça Ferreira do Amaral

Praça Ferreira do Amaral, 1986
Fotografia de Fong Chi Fung do catálogo da exposição Ontem para Sempre.

"Além do visto que não tínhamos necessitaríamos de um carro com dupla matrícula (macaense e chinesa) para passar as portas com propriedade chamadas do cerco, um arco erigido em póstuma homenagem ao cavaleiro da estátua indesejada, João Maria Ferreira do Amaral, que, ao desembarcar, em 1846, como governador, no Território, já não possuía o braço direito. Perdera-o vinte e três anos antes, na batalha de Itaparica, cidadezinha da Baía.
(...)
Cedo no território o Governador se faria temido. A sua ousadia roçando a insensatez, profundo desprezo pela vida, não se coadunaria com peitas, subornos, lisonjas, golpes palacianos. A variação brusca das suas reacções, tornando-o resvaladiço, incalculável, faziam-no também distante, muitíssimo perigoso. Era diferente, estranho, incoerente e isto assustava, frustrava, confundia, afastava as pessoas que não podiam contar com o comandante, nele confiar. (...)"
António Rebordão Navarro. As Portas do Cerco. Livros do Oriente, 1992

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Comovente de qualquer modo, Macau. Comovente porque único.

Avenida do Infante D. Henrique. Década de 60
Praça Ferreira do Amaral. Década de 70

Fotografias de Ou Ping do catálogo da exposição Uma Viagem no Tempo. Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais e Museu de Arte de Macau, Julho de 2005.

"Macau, agora. Inverno frio. O céu baixo e brumoso. E apertada nos braços lamacentos do Rio das Pérolas (que ironia!), a terra como se terminasse aqui. Estreitas também as ruas de Macau, sombrias e tortuosas. E daqui para acolá, pequenos e activos, os seus habitantes formiguinhas num formigueiro. Gente que passa por nós sem quase nos enxergar, os chineses. Estreitos igualmente os olhos deles, como quem visse para dentro. Que Macau, afinal, os chineses: as suas falas, as suas feições, os seus vícios de viver. E os portugueses? O quê, aqui, os portugueses? Uns estranhos? Uns intrusos?
(...)
A cidade do Santo Nome de Deus, para quem veio lá de Angola, os seus pagodes, os seus conventos, o espectro das ruínas de S. Paulo, os fantásticos funerais dos sequazes de Confúcio, um espiritualismo melancólico, aqui, senão mesmo lúgubre. Isto a par da festa das tendas e tintins, o teatro budista, a dança do dragão, o estralejar de panchões. Sem já mencionar, por tudo quanto é parede, porta ou pilar, ainda que escalavrados, o espectáculo dos caracteres sínicos a escarlate e ouro. Comovente de qualquer modo, Macau. Comovente porque único. Por mim comparo-o ao peixe-dourado-da-china, um rubi nas águas espessas e paradas (podres?), de um vaso ritual".
Maria Ondina Braga, Passagem do Cabo. Editorial Caminho, 1994

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Passeio de triciclo à chuva

Passeio de triciclo à chuva. Avenida de Almeida Ribeiro, ca. de 1960
Fotografia de Lei Chiu Vang, do álbum Visita ao Passado.

"(...) Quanto aos passeios de sam-lun-ché nas tardes de domingo, aí a professora-de-inglês a emparceirar com a vizinha de quarto. E sem que houvessem feito qualquer promessa, Ester e Xiao Hé Huá. Não. Tudo começando por uma coincidência, melhor um equívoco. Certo domingo, uma delas a chamar um triciclo a meio de Sam-Ma-Lou e meia dúzia de passos adiante a outra em igual situação. O veículo parou entre as duas. É seu, disse Xiao. Não, você estava primeiro. Teimaram. Por favor! Por favor! Assim uns segundos de delicadeza. Verão. Chovia a potes. Muito pretendido, àquela hora, muito requisitado, o condutor: tlim-tlim! Grosseiro, o condutor? Dava-se-lhe um desconto. Pang-yau de manhã à noite a pedalar de costas curvadas, que ganhava o pobre que lhe sobrasse para cortesia? Elas pelo menos assim o entenderam, pulando uma atrás da outra para dentro do coche, rápidas, encharcadas, a abrigar-se, a enxugar o rosto molhado. Para onde quer ir?, perguntou então a professora da Escola Chinesa. Ora, para onde quero ir!... Num domingo de chuva em Macau tudo quanto se podia desejar era um sam-lun-ché, não era? Riram, radiantes, e não só por terem conseguido transporte como pelo encontro, pela convivência. Abotoavam as bandas do oleado que as cobria da cabeça aos pés. Diga-lhe que nos leve sem destino, queremos é matar o tempo!, propôs Ester. Sem destino? Xiao franzia o sobrolho. Não. Isso sem destino o homem não compreendia."
Maria Ondina Braga. Nocturno em Macau. Editorial Caminho, 1991

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Macau, 1850


Imagem e texto do Arquivo Digital 7cv

"Macáu. - Esta cidade está edificada n'uma pequena peninsula de pouco mais de 1 leg. de comprimento que faz parte de uma ilha situada na entrada do vasto golfo de Cantão, pouco abaixo do rio Si-Kiang no Sul da China em lat. N. 22º, e long. E. de Paris 110º, 46', a 2,400 leg. em linha recta de Lisboa. Os Portuguezes, depois de terem estabelecido as suas feitorias de commercio em Liampó e Tchongtcheu mais ao Sul, as abandonárão e forão fundar Macáu em 1557 pela superior salubridade do lugar, e com licença especial do Imperador, a quem ainda hoje pagão pelo seu territorio o fôro de 600$000 rs. annuaes. Não foi porém esse onus o que mais contribuio para que os Chinas deixassem e deixem ainda subsistir esta possessão estrangeira nos seus dominios, mas sim os relevantes serviços que aquelles lhes prestárão no XVIº seculo contra os piratas que infestavão esses mares, fazendo-se em seu favor tão insigne e singular excepção na politica do celeste Imperio. O viajante D' Urville assim se expressa a este respeito: "Quando o Imperador Kiang-Hi, pelo meiado do seculo XVIº consentio em dar aos Portuguezes onde puzessem um pé no seu territorio, em recompensa dos serviços prestados por elles no exterminio dos piratas, soube-o combinar de tal sorte com a politica que, sem faltar aos deveres de gratidão, prejudicasse com a admissão de novos hospedes a immunidade do territorio vizinho; e assim, em lugar de dar-lhes  uma ilha inteira, cedeu-lhes sómente parte della, tirada logo uma linha de demarcação que assignava os limites de uns e outros." Com effeito, no isthmo da peninsula ha uma muralha que communica com o dominio chinez por uma porta chamada do Cêrco, e que os Europeos não podem transpôr.
A população portugueza da cidade anda por 6,000 a 6,500 almas, e a chineza por 26,000, sendo esta governada por mandarins. O seu distinctivo politico é de Cidade do Santo Nome de Deos de Macáu: está sit. em amphitheatro, e o primeiro objecto que sobresahe ao approximar-se-lhe do mar, são uma bateria portugueza que a domina, e o convento da Guia, notavel por suas altas muralhas e copadas de arvores. Por cima tem outro mosteiro no cimo da rocha, e pela encosta da collina vem descendo as suas casas á maneira de degráos até à praia. Tem alguns edificios espaçosos e de boa architectura européa, mas as ruas são estreitas e pouco asseiadas. Quatro fortalezas a defendem: n'uma dellas que tem cisterna, 4 fontes d'agua nativa e quarteis para 1,000 homens, existião ainda ha pouco tempo 40 peças de grosso calibre. Outra mais pequena, com 30 peças iguaes, e uma fonte perenne, não póde acommodar mais de 300 homens. Ainda que seja tão acanhado o territotio desta colonia que em 2 horas se possa dar-lhe a volta, não deixa de conter, além da cathedral e do acastellado convento da Guia, a residencia do bispo e dos 12 conegos seus vigarios, umas 10 igrejas ou conventos, assim como 3 hospitaes. A sua diocese comprehende as duas provincias de Kuangtong (Cantão), Kuang-Si e a ilha de Hainan. Póde hoje calcular-se em 50,000 o numero de christãos desta diocese, pois que é agora o ponto de asylo e de partida dos sacerdotes europeos propagadores da fé, os quaes em Macáu occupão dous conventos e tem conseguido numerosos proselytos. - "A corôa de Portugal, por direito de padroado Real concedido por differentes Papas, nomeia tambem bispos para Pekim e Nankim, assim como na India o arcebispo de Cranganor e os bispos de Cochim, Meliapor (Madras) e o de Malaca, cujas dioceses são mui vastas em terras pertencentes a varios potentados, e principalmente á Gran-Bretanha." (E.A. Monteverde).
O porto de Macáu é excellente, nelle se faz consideravel commercio maritimo, e chegou a ser de grande importancia por mais de dous seculos emquanto foi a unica praça da China franqueada a Europeos, e onde os Portuguezes erão os unicos agentes nas suas transacções. Com o decurso do tempo faltando-lhes o apoio e recursos da mãi-patria, e franqueando os Chinas o porto de Cantão aos Europeos, foi diminuindo a sua prosperidade, mui principalmente na ultima guerra de 1842, em que os Inglezes dictárão a lei á China e começárão a negociar livremente com ella. Igualmente se forão os Chinas introduzindo na cidade, onde hoje se achão em triplice numero dos Portuguezes, entre os quaes por vezes tem havido serias questões: em caso de desintelligencia com os mandarins, impedem estes de entrar do continente mantimentos na cidade, donde todos lhe vem, afim de conseguirem seus intentos, pondo em apertada crise os Portuguezes, os quaes não podem passar do seu territorio. A cidade é guarnecida por um batalhão da terra, alguns Sipaes e Europeos. As relações dos habitantes e autoridades de Macáu com os Chinas tornão o seu systema governativo de um genero particular e diverso das outras colonias portuguezas. Ha nesta peninsula a celebre gruta denominada de Camões, onde o principe dos poetas portuguezes ia matar suadades da patria, compondo parte do seu immortal poema."
Paulo Perestrello da Camara. Diccionario Geographico Historico Politico e Literario do Reino de Portugal e seus Domínios. Lisboa, 1850