quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A Cidade de Macau - por Raquel Soeiro de Brito


A Cidade
"Na cidade, nas horas de maior bulício, as pessoas acotovelam-se e os transportes colectivos e individuais têm dificuldade em passar. Com uma densidade populacional de cerca de 29 000 h/km2, Macau integra-se bem no tipo da cidade oriental, formigueiro de gente.
Por entre o amontoado de casario sobressaem algumas colinas graníticas a que a densa vegetação, que as cobre quase por completo, e a aspereza das encostas dão maior realce. Em pleno centro, a colina do Monte, encimada por uma fortaleza à Vauban, mandada edificar pelos Portugueses, domina a cidade; no flanco do Noroeste ergue-se a elegante fachada de pedra, restos da "mais linda igreja do Oriente", que um incêndio devorou em 1825. À roda da igreja e no contraforte da fortaleza situou-se, até ao século passado, o mais importante bairro português. Ainda aí hoje se vêem alguns palácios e sobrados que se desafiaram uns aos outros em beleza; mas na quase totalidade foram abandonados pelos descendentes dos antigos moradores e acabaram por ter o triste destino dos palácios de Xabregas, em Lisboa. Apenas na Rua de Santo António algumas destas casas grandes continuam habitadas por famílias de dinheiro e de bom gosto. Ainda no centro, a colina de Camões é inteiramente ocupada por um grandioso jardim. A oeste da Península encontram-se as colinas da Barra e da Penha, uma e outra conquistadas pela implantação de vivendas ricas envoltas em jardins floridos, o mesmo se verificando de 1960 para cá, com os relevos de São Januário e Guia, a sudeste; porém em Mong-há, a norte, e na Ilha Verde, a noroeste, onde ainda não chegou a onda de construção, salientam-se as manchas de verdura intactas, fazendo realçar ainda mais as elevações."

Missa ao ar livre nas Ruínas de S. Paulo. 1964
Fotografia de Leong Chi Cheng in
Cinquenta Anos Num Olhar: Meio Século Documentado pela Associação Fotográfica de Macau. 
Museu de Arte de Macau, 2008
"De todas as zonas em que se pode dividir a cidade (fig. 3), a que mais atrai a atenção do Ocidental é a do bairro do Bazar, habitado principalmente por chineses e com uma vida comercial muito intensa. Ruas estreitas e sombrias são ladeadas por prédios esguios de dois ou três andares; quase todos possuem varandas muito salientes, as dos andares inferiores protegidas pelas varandas dos outros, apoiadas em colunas geralmente de madeira; as dos últimos andares são cobertas com folhas de zinco ou simples oleados, que as abrigam das chuvadas de monção de Abril a Setembro. O rés-do-chão de quase todos os prédios é ocupado por lojas , indicando os grandes letreiros, em vistosos e coloridos caracteres chineses, o ramo de negócio. E muito mais do que uma loja de aldeia europeia, cada pequenina loja é um mundo de artigos; bancadas de madeira de um e outro lado das portas, às vezes em montras, e uma amostragem seleccionada indica os artigos que há para venda: produtos alimentares, de vestuário, calçado, brinquedos, bugigangas várias, uma secção de câmbios, etc., etc. Mas também existem lojas especializadas na venda de certos produtos: antiguidades, ervanárias (é bem conhecido de todos os ocidentais a sua importância na medicina oriental), casas de vinho chinês, isto é, de álcool destilado de arroz, diferindo de sabor consoante os animais que se juntam, até ficarem desfeitos (por exemplo: gatinhos, cobras, lagartos). É nestas ruas que o bulício é maior e as pessoas se acotovelam mais amiúde nas horas de maior movimento; quando subitamente todo este movimento cessa e a azáfama comercial se interrompe, as janelas iluminadas e as portas entreabertas, donde sai o ruído surdo das pedras de majongue, são o único sinal de vida, pela noite fora."

Rua da Felicidade, anos 1960-70.
Fotografia de Lei Chiu Vang do álbum Visita ao Passado
Museu de Arte de Macau e Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais. 2004

"Na larga Avenida Almirante Sérgio, que rodeia o porto interior, em contraste, encontra-se o maior número de casas comerciais dedicadas a um mesmo ramo: tudo relativo à pesca, desde a venda dos mais variados apetrechos para os barcos e para a faina, até à compra e exportação do pescado. Também é nesta zona da cidade que está localizada a grande maioria das suas pequenas indústrias (serração de madeira e construção naval, tinturaria e estampagem de tecidos, confecção de vestuário, luvas e calçado, artigos eléctricos, esmaltagem, garrafas térmicas), que ocupam 16 000 pessoas (1/4 na confecção de artigos de vestuário e outro 1/4 no fabrico de explosivos e pirotecnia) e contribuem para alimentar, pela maior parte, as exportações e abastecer uma clientela modesta de grande número de portos da África Oriental."
A larga Avenida Almirante Sérgio, cerca de 1970.
Fotografia de Lei Chiu Vang do álbum Visita ao Passado
Museu de Arte de Macau e Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais. 2004

No istmo, perto da porta do Cerco e bordejando a periferia oriental da cidade, vêem-se desenvolvendo aterros há mais de três décadas; em 1961, formavam um conjunto de 68 ha, repartidos por quatro pequenos retalhos (fig.3). À medida que iam crescendo logo se implantavam hortas, minuciosamente cuidadas por agricultores que "têm atrás de si um tesouro de experiência acumulada por gerações de camponeses pacientes e engenhos" (Gourou). Estas hortas iam substituir as que o crescimento da cidade expulsava do seu núcleo; nos últimos cinco anos elas próprias tiveram a mesma sorte, dada a expansão rápida da cidade. Os moradores foram obrigados a retirar para as ilhas, onde, por enquanto, há espaço susceptível de ser aproveitado para a agricultura.
Raquel Soeiro de Brito. "Achegas para a Geografia de Macau". Revista da Junta de Investigação do Ultramar, nº 81 (Colóquios sobre as províncias do Oriente. Volume 2), 1968. 
 As Portas do Cerco, cerca de 1970.
Fotografia de Lei Chiu Vang do álbum Visita ao Passado
Museu de Arte de Macau e Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais. 2004

***

Raquel Soeiro de Brito  [Assunção/Elvas, 1925]  
Geógrafa. De seu nome completo Maria Raquel Viegas Soeiro de Brito, doutorou-se em 1955 em Ciências Geográficas, na Universidade de Lisboa. Assistente na Faculdade de Letras de Lisboa (1955-60), professora extraordinária (1960-66) e catedrática (1966-77) no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina e na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (desde 1977). Professora titular de Paris X (1980-81).

Foi adjunta à Missão de Geografia à Índia, entre outras realizadas no então Ultramar português, entre 1955 e 1974. Em 1957 foi louvada pela missão científica feita ao vulcão dos Capelinhos, nos Açores. Em 1967, foi-lhe atribuído o Prémio Internacional Almirante Gago Coutinho pelo trabalho Goa e as Praças do Norte. Fundadora do Departamento de Antropologia (1974) e de Geografia e Planeamento Regional (1980) na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Dirigiu a revista da Sociedade de Geografia de Lisboa, Geographica. Realizou numerosas viagens de estudo, conferências e cursos.

Tem dirigido e participado em trabalhos de investigação e pesquisa no âmbito de programas lançados por outras universidades e organismos internacionais. Comendadora da Ordem do Marechal José Pessoa (Brasil, 1964), Officier des Palmes Académiques (França, 1974), Membre d'Honneur da Sociedade de Geografia de Paris (1982), membro da Academia da Marinha (1987). Tem colaboração em revistas da especialidade estrangeiras e portuguesas como: GeographicaFinisterraGarcia de OrtaNaturalia, etc.

"Uma linda paisagem de Macau"

"Uma linda paisagem de Macau" 

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

"Macau" - por Artur Lobo d' Ávila (2ª parte)


MACAU
Apontamentos históricos - A incuria portugueza nas relações com a China - De Lisboa a Macau - Macau pittoresco - O anno novo china - A procissão do Dragão

(CONCLUSÃO)

Segunda parte de um artigo de Artur Lobo d' Ávila publicado na revista Serões, Nº 62 de Agosto de 1910 ( Hemeroteca Digital)







"Macau" - por Artur Lobo d' Ávila (1ª parte)

MACAU
Apontamentos históricos - A incuria portugueza nas relações com a China - De Lisboa a Macau - Macau pittoresco - O anno novo china - A procissão do Dragão


Primeira parte de um artigo de Artur Lobo d' Ávila publicado na revista Serões, Nº 60 de Junho de 1910 ( Hemeroteca Digital)












terça-feira, 30 de outubro de 2012

Macau nos longes do tempo

Macau nos longes do tempo: uma crónica de Maria Ondina Braga publicada na revista Sábado de 3 de Abril de 1982

"Vivi em Macau três anos, na casa-das-professoras do Colégio de Santa Rosa de Lima, mesmo por trás da igreja. Todas as manhãs, quase sobre a minha cabeça, badalava o sino mais antigo da terra. Acordava estremunhada com o retumbar do bronze: os passos das religiosas, o esvoaçar das pombas no escuro. Se não conseguia conciliar o sono, ficava a cismar num livro que havia de escrever. Foi assim que, certo dia abafado, negro de chuva, nasceu Estátua de Sal
Escrevia numa mesinha de três palmos de comprido, ao entardecer. No triângulo que o estreito guarda-vestidos formava com a parede, ano após ano, uma osga de corpo de jaspe construía o seu ninho. Não posso deixar de recordar o translúcido réptil, a sua habilidade na caça aos mosquitos, a maneira como deslizava, ia dizer, patinava do canto do tecto ao suporte da lâmpada. Noites de luar. Já então, bebida a última chávena de chá, eu apagara a luz e me enfiara sob o mosquiteiro de tule. As silenciosas acrobacias da osga ao redor do quarto. A nuvem de mosquitos na janela escancarada. As minhas memórias. Lembro-me de tudo isso como se fosse hoje. Disso e da solidão. 
À volta das aulas nocturnas no Clube Católico -- tão magros os meus honorários no colégio que ensinava, lá fora, português a chineses e inglês a soldados portugueses -- era um sapinho à minha espera no jardim. "Um bichinho bonito, sabem? E como se adivinhasse a hora da minha chegada..." "Cuidado, sapo é espírito, professora!". Um moço com três nomes: português, chinês e inglês. Como queres que te chame? Edward. Um portento, o Edward, aprendia de cor vinte frases em cada lição, sem se enganar nos verbos, e quando me vim embora convidou-me para um jantar de cão no restaurante da especialidade. "Comer cão, Edward, é -- sei lá? -- canibalismo. Já reparaste nos olhos humanos de cão?" Ora, muito gostosa carne de cão. Na Peregrinação, Fernão Mendes Pinto conta que cheirava de longe, cozinhava-se com laranjas espremidas. 
Macau será também para mim A China Fica ao Lado: o conhecimento dos chineses e seus usos, as festas tradicionais, o exotismo da paisagem, e a flutuante e espectral cidade dos barcos a arrostar milagrosamente com tufões e epidemias. Todavia, pensar hoje Macau é quase apenas ver-me, perdida, na "cela" da casa-das-professoras de Santa Rosa, por trás da igreja. Da banda de lá ficava o mar cinzento, os juncos de velas de meio-leque com remendos do feitio de dedos. De vez em quando a madre-mestre-dos-estudos trazia-me carinhosamente um copo de leite: "Está a fazer um livro? Leia-me um bocadinho!" O seu ar circunspecto, as mãos cruzadas no regaço. "E eu que julgava que sabia escrever!..." Dirigia o jornal da escola portuguesa, compunha poemas. 
Na sala pegada, um piano desafinado martelava todo o dia. Principiantes da classe de música vinham para ali estudar escalas. "Só mais uma página!", implorava a freirinha a consultar o relógio de algibeira. Ai, que tocava para o terço, para a novena... Chegavam as colegas chinesas com choco num papel besuntado, e muita algazarra. Espreitavam a oferecer. O petisco comia-se com palitos, temperado com molho picante. No calor, a porta aberta para trás e as pessoas que passavam no corredor dentro do espelho do guarda-vestidos; as pessoas ali a meu lado no quarto da largura de uma abraço. Aparecia um velho de feições mongóis que, pelo Natal, vendia telas de Meninos Jesus a manejar o fachis do arroz. Aparecia a empregada a distribuir a roupa lavada, uma muda, toda mesureira se eu lhe dava um vestido. Apareciam velhas freiras, e filhos pequenos de mulheres-a-dias no inverno entrouxados no min-nap. E o cão de guarda que se soltava ao pôr-do-sol, solene, de orelhas mordidas pelas moscas. E minhocas gigantes no enxurro do pátio. E gatos. E ratos. O piano, tan-tan-tan-tan. As máquinas da lavandaria, por baixo, a roncar. Eu a rogar a Deus a bênção da noite.
A noite, a estrela rosada da osga, o misterioso sapo, a lua (em Março? em Setembro?) redonda e vermelha como uma tigela de laca, o sino histórico a sobressaltar-me (nunca me acostumei ao sino) -- coisas que jamais posso esquecer de Macau. Isso e a solidão". 


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Uma Lenda sobre Macau


"Contam que, nos primeiros tempos em que se principiou a povoar o local que veio mais tarde a ser a cidade de Macau, isto é, quando este sítio era ainda uma abandonado ermo, um pescador, tendo terminado a faina do dia, recolhera-se a uma das lapas que havia por essas colinas e que lhe servia de habitação, para preparar o seu jantarinho e para descansar.
Quando terminou a sua frugal refeição e, depois de ter consertado a sua rede de pesca, como já não tivesse mais nada a fazer, deitou-se no chão e, daí a pouco, dormia a bom dormir.
A meio da noite acordou, porém, sobressaltado devido a uma estranho rumor que ora crescia de intensidade e ora diminuía, até ao ponte de se tornar inaudível.
O pescador não sabia a que atribuir aquele intrigante barulho que viera tão despropositadamente perturbar o seu sono.
Cheio de curiosidade, tratou de apurar o ouvido e, tendo-lhe já desaparecido por completo o sono, pôde verificar que tal rumor era causado pelas vozes de duas pessoas que estavam a conversar à entrada da lapa.
O pescador esforçou-se então por se aproximar mais da entrada, mas sem se deixar pressentir, e conseguiu ouvir o que um dos interlocutores dizia, referindo-se a Macau:
- Acho que, não obstante o nome de Hou-Kóng (Rio das Ostras) e de estar rodeado de tantas rochas, dia virá em que desaparecerá este local devido à acção da água salgada que fará desaparecer essas rochas que o suportam.
A outra voz respondeu:
- Estúpido bonzo! Então não vê que as ostras, aderindo-se às rochas as conservam intimamente unidas, conseguindo assim manter entre elas uma forte coesão? Desta forma como é que elas poderão deixar de resistir ao violento embate das ondas?
O pescador percebeu, nesta altura, que se tratava duma discussão entre duas almas doutro mundo. Enchendo-se então de coragem, deixou-se mostrar e, intervindo na conversa, disse, no meio dum suspiro:
- Eu, por mim, acho que os meus semelhantes hão-de juntar-se, a pouco e pouco, para virem residir neste sítio. É claro que aumentando a população em breve desaparecerão todas as ostras que serão procuradas para seu alimento. Portanto não há dúvida que há-de vir um dia em que as rochas que amparam esta exígua faixa de terra se desagregarão e nada obstará então a que o mar a invada, fazendo-a desaparecer por completo.
- Bronco pescador! - disse todo irritado a mais inteligente das duas almas do outro mundo. - Você não vê que, se a população aumentar, também há-de aumentar o número de porcos que os habitantes não deixarão de criar de forma a chegarem para o seu sustento? Ora, o mesmo há-de suceder com as ostras. Esteja, portanto, descansado que elas jamais desaparecerão.
E, a verdade é que, desde então, as ostras nunca deixaram de se reproduzir, tão gordinhas e em tão grande quantidade que não são só exportadas para as cidades vizinhas, onde são muito apreciadas, como fornecem abundante matéria prima para a confecção dos famosos molhos de ostras, um dos mais importantes produtos da indústria local.
Luís Gonzaga Gomes. Lendas Chinesas de Macau. Notícias de Macau. 1951

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Praia Grande e Fortim de S. Pedro.
George Chinnery (1825-1852)


O Fortim de S. Pedro - ou Naunhuan - "era considerado como um complemento da fortaleza de S. Francisco, juntamente com o forte de Nossa Senhora do Bom Parto"(1) . Ficava situado em frente do antigo palácio do governo, onde actualmente se encontra o antigo edifício das Repartições (antigo Tribunal), "mais ou menos onde se ergue hoje a estátua de Jorge Álvares"(2). Construído em 1622, foi quase destruído por completo pelo tufão de Setembro de 1874. Foi demolido em 1934, quando foi aterrado este trecho da Praia Grande.


(1) Pedro Dias. A Urbanização e a Arquitectura dos Portugueses em Macau. 1557-1811. Edição Portugal Telecom, Lisboa, 2005.
(2) P. Manuel Teixeira. Toponímia de Macau. Volume I. Instituto Cultural de Macau, 1997

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

"Paisagens com Sentimentos"

"Paisagens com Sentimentos", um artigo de Ana Paula Laborinho sobre a obra ligada "ao percurso oriental" de Maria Ondina Braga - A China fica ao lado (C)Estátua de Sal (ES)Angústia em Pequim (AP)  e Nocturno em Macau (NM) - publicado na revista MacaU de Setembro de 1992:



 PAISAGENS COM SENTIMENTOS
Ana Paula Laborinho
Maria Ondina Braga confronta-se com o espaço (tradições, usos e costumes esculpidos na ancestral consciência) e a sua dupla estranheza - mulher e estrangeira - determinam o que observa e nos dá a ler.


Só entusiasmo não chega para fixar na memória tão vasta paisagem. Tão-pouco uma impressão demasiado nítida pode dar um bom quadro. Importante é pôr lá os nossos sentimentos.
É com estas palavras de um grande pintor chinês (Liu Haisu, n. 1896) que Maria Ondina Braga inicia Angústia em Pequim, obra que escreveu nos anos 80 relatando a sua experiência de vida na capital chinesa.
Esta epígrafe parece particularmente adequada ao tipo de ficção que encontramos nas suas obras, sobretudo aquelas que estão ligadas ao seu percurso oriental. De facto, não temos propriamente um enredo, mas quadros, retratos, crónicas que vão traçando os contornos de uma paisagem-estranheza que, por ser diferente, tende a tornar-se fabulosa, quer dizer, ficcional.
Aliás, a própria autora insiste nesta indistinção de planos (real/imaginário) em que se misturam memórias e sonhos (Sonhei uma vida inteira com Pequim, e Pequim dos meus sonhos, o que costuma ocorrer nos sonhos: uma cidade ao mesmo tempo surpreendente e familiar, tal se a houvesse habitado noutra encarnação. AP, 152)
Trata-se, pois, de visões. Resultado de olhares propiciando a descrição de lugares e gentes. Mas também um cruzamento de paisagens e sentimentos que produz uma imagem única e selectiva. A escritora, mulher ocidental, confronta-se com o espaço (tradições, usos e costumes esculpidos na ancestral consciência) e a sua dupla estranheza - mulher e estrangeira - determinam o que observa e nos dá a ler.
Sublinho a condição de estrangeira. O movimento da escrita é, em geral, razoavelmente impulsionado por este estado de conflito com o lugar alheio. Escreve-se não só por causa da novidade dos lugares mas também pela angústia do desconhecido e intrínseca solidão - ainda que as novas terras sejam acolhedoras e estimulem a descoberta.
É de todos estes matizes que se constroem as obras de Maria Ondina Braga. Entre o prazer de descobrir fabulosos lugares e o desespero de uma saudade teimosamente apelativa percorremos páginas de uma velha condição de portugueses aventureiros, desejosos de partir e importunados pelo regresso. São estes dois movimentos que encetamos nestas narrativas. Com o Oriente pelo meio da paisagem.

De Braga ao Oriente - as viagens e a escrita
Maria Ondina é natural de Braga. Lugar que o seu nome parece reter, apesar da sedução de outros percursos. Primeiro a viagem levou-a a lugares europeus que teima em recordar já ancorada em paisagens mais distantes. Inglaterra, Paris. Os nevoeiros londrinos, as matas da Escócia, os cais do Sena, os pequenos cafés da beira-rua. Depois, Angola. Aí ensinou Português e Inglês a meninas africanas tal como ensinou o mesmo Português e Inglês a meninas chinesas.
Porém, como constata em Estátua de Sal (1969), se este gesto repetido - a condição de professora - constitui um traço de permanência no trânsito da sua vida, cada paisagem assume contornos distintos e aparece recordada de rápidas e impressivas pinceladas (o nevoeiro/solidão de Londres, a claridade festiva de Paris, a melancolia do cacimbo africano).
Depois de África segue-se Goa, onde se encontra aquando da invasão pela União Indiana. Obrigada a abandonar Goa, chega a Hong-Kong três dias antes do Natal de 1961. Por todo o lado há sinais de celebração: coroas de azevinho, presépios, ornamentações. O contraste entre esse Natal europeu e o escarlate e oiro dos anúncios chineses provocam-lhe uma profunda impressão que se tornará um dos seus temas favoritos: o confronto das religiões e dos comportamentos.
Dos tempos passados em Macau resultam duas obras que datam dos anos 60, e uma terceira publicada mais recentemente. Estátua de Sal, apesar de publicada depois de A China Fica ao Lado (1968), parece ter sido escrita primeiro, visto que aí encontramos o cruzamento de memórias várias. Os lugares da sua errância sucedem-se produzindo os capítulos, aparecendo e reaparecendo ao sabor  das recordações (Braga, Londres, Paris, Malange, Goa, Macau), como se a autora ainda não se considerasse por inteiro do lado de Macau.
Já aqui se encontra de forma muito incisiva o binómio vida/escrita, fundamental em Ondina Braga (Assim vou contando de noite o que de dia vivo. ES, 50), aparecendo igualmente uma subtil advertência ao trânsito real/imaginário: Tempo de anotar tudo: o que a memória ressuscita (ou reinventa), o que o peito gastou de entesourar (ES, 50).
Mas, sobretudo, já aqui aparece explicitado outro vector desta escrita: os lugares constituem, em última instância, perscrutações interiores, e tanto mais penetrantes quanto estranhos eles se revelarem (Macau é, portanto, inédito para mim na medida em que eu próprio nele me busco. ES, 6)

Em busca do universo chinês

É isto a paisagem com sentimentos que referirá em narrativas posteriores. Mesmo quando parece fazer crónica ou descrever de forma próxima a realidade (aparentando um relato sem ficção) estamos sempre perante um sujeito que se procura, constrói e reinventa nas malhas da escrita. Através das paisagens, dos retratos, das histórias estrangeiras, quem se pretende alcançar e conhecer é esse sujeito da escrita que desesperadamente continua a insistir na solidão que o estrangeiro lhe provoca e na sua condição de insolúvel angústia.
Tal se encontra na obra escrita em Pequim nos anos 80 quando Ondina Braga regressa ao Oriente, mais uma vez na qualidade de professora de Português, ensinando no Instituto de Línguas Estrangeiras. Apesar do entusiasmo que revela pelo mundo chinês aparecem as marcas dolorosas do exílio (a doença da alma) que se vão tornando dominantes à medida que a narrativa avança.
Pequim, cidade de sonho, não consegue sobrepor-se à melancolia, à depressão, ao tédio - males desconhecidos dos chineses e que são a marca mais ocidental desta escrita oscilando entre o entusiasmo e o sofrimento.
Existe ainda outra dominante nesta obra: a presença dos poetas e da poesia chinesa (Se reconsidero, acho que jamais me teria apaixonado assim pela China, não fossem os seus poetas. AP, 45). Voz atravessada por outras vozes, assim vai dando a conhecer a literatura chinesa a um público português que, na sua maioria, ignora ou apenas soletra o nome de poucos autores chineses.

Esta mesma exaltação pelas "coisas" chinesas atravessa os contos de A China Fica ao Lado. Traduzidos recentemente para chinês, em simultâneo com uma nova edição publicada em 1991, estas narrativas continuam a tendência para a ausência de história, preferindo o breve recorte de personagens e quadros. A figura feminina aparece destacada (como aliás se verifica em toda a obra de Ondina Braga): a jovem que vem abortar a casa do doutor Yu e que acompanhamos na longa noite de memórias e dores; a solitária Miss Caroll, professora chinesa do colégio de Macau que enche o quarto de espelhos-lembrança; a pura e inocente Tai Ku, que assassina a nova concubina do pai por ódio de raça (Tinha encontrado Deus, era verdade, mas jamais se encontrará a si própria - C, 24); a paixão de A-Mou, crescendo ao ritmo da lepra que a vai devorando; a misteriosa louca que espera um ausente nas praias de Coloane; e ainda as histórias de avós de onde quase sempre vem a sabedoria e uma sagrada energia - vasta galeria de mulheres envoltas em sopros de mistério que faz delas as detentoras do tempo e do seu trânsito.

Outra característica assinalável no conjunto destas narrativas - traço igualmente fundamental em Estátua de Sal e, por maioria de razão, em Angústia em Pequim: o convívio com a comunidade chinesa. Macau-português praticamente se reduz ao espaço da língua portuguesa que a professora ensina. De resto é a ausência preenchida com os lugares chineses, as histórias chinesas, os amigos chineses.


Tal opção está também presente em Nocturno em Macau (1991), de todas as narrativas citadas a única que recebe a designação de romance e obedece aos imperativos da ficção através da personagem Ester que, no entanto, é muito identificável com a personagem-autora das narrativas anteriores.
Macau é representado através do microcosmos da casa-das-professoras: pequena comunidade de vozes cochichadas e muita solidão. Ester aparece sempre carente de uma conversa íntima e amiga mas as suas companheiras, da chinesa Xiao à goesa Dhora, escondem-se detrás de máscaras várias. Cada um constrói a sua fortaleza armadilhada de indecifráveis expressões, e o jogo alheio consistem interpretar e efabular os minúsculos sinais que podem revelar a vida anterior.
Os habitantes deste pequeno universo sem tempo procuram representar-se como seres imutáveis, alimentando-se contudo do movimento veloz das suas paixões ocultas. O vulcão debaixo das montanhas - retrato pessoal que serve para descrever Macau. Da terra poucas paisagens se recortam, poucos lugares reconhecemos, mas essa impressão de fogo lento consegue numa pincelada dar corpo ao que de mais misterioso e palpitante existe nesta terra. 
Contudo, mantém-se a tendência já apontada em narrativas anteriores para afastar da representação o mundo português de Macau. Ester tem uma clara preferência pelo universo chinês, o que se consubstancia na paixão por Lu. Nunca existe, porém, a presunção de que se compreende esse mundo estrangeiro: tal como na relação amorosa, o encanto é fugaz e incompleto, quer dizer, nunca satisfeito e por isso se revela duradoiro. Esse Macau-chinês que Ester tanto aprecia é interpretado e lido da mesma forma que os caracteres da carta enviada por Lu: A inventar mais que a traduzir, a professora-de-inglês, e a gozar com tal jogo (NM, 57).

A China fica ao lado - mistério insondável

Também a paisagem é um jogo que é dado ao leitor para que invente aquilo que falta ao quadro, embora as histórias transmitam muita informação sobre a China: usos, costumes, a condição feminina e as transformações sociais.
Apesar do entusiasmo que transparece pela nova China, em contraste com o subdesenvolvimento e miséria da China imperial, não deixa de existir uma fina e sensível apreciação dos traumatismos que resultam das abruptas mutações. Um dos exemplos que aparece repetido é o desligar dos pés: embora simbolize a libertação das mulheres constitui igualmente uma humilhação mal vivida, além de uma real dor física que ilustra a dualidade do bem e do mal. É este tipo de duplicidade que Maria Ondina Braga gosta de explorar mostrando a complexidade existencial.
Várias histórias apresentam Macau como lugar de fuga e de refúgio para os chineses desiludidos com a nova China, sobretudo no período da Revolução cultural. Deste modo, o território constrói-se como espaço de exílios vários: portugueses saudosos da pátria, goeses fugidos da invasão, chineses em em busca de um eldorado.
Por via da saudade, em Pequim ou em Macau, a escrita destila um sofrimento só possível de resolver com o regresso ao lugar de origem (como acontece no final de Nocturno em Macau): a palavra torna-se dor mesmo quando parece dedicar-se por inteiro à descrição de uma paisagem ou de um retrato. Por mais que os lugares atraiam Maria Ondina Braga é ela própria que se procura na violência do conflito com o espaço estrangeiro.
Quanto mais estranho mais longe se chega na deambulação interior. Talvez por isso se rejeite qualquer proximidade com o mundo português de Macau e se prefira caminhar por entre a densidade do mistério chinês. A China fica ao lado porque o seu entendimento é inalcansável. Em comum, a dor - como diz Li Po que Ondina Braga escolhe para epígrafe de uma das suas obras: É indizível / a dor que está / no coração / do homem (tradução de Jorge de Sena).

George Chinnery: «Rapariga com uma criança ao colo»

George Chinnery 
«Rapariga com uma criança ao colo». C. 1827-30. Lápis obre papel.
(in Oriente, nº 5. Abril de 2003)

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O Arco das Portas do Cerco

O Arco das Portas do Cerco, cerca de 1920
Fotografia do Catálogo da Exposição Reminiscências. Fotografias de Macau Antigo. 2009


O Arco das Portas do Cerco foi construído entre 22 de Agosto de 1870 e 31 de Outubro de 1871, tendo sido inaugurado nesta última data.
Dedicado à memória do Governador João Maria Ferreira do Amaral, bem como à tomada do forte de Passaleão, no arco encontram-se quatro lápides, duas nas paredes exteriores e as outras duas nas paredes interiores. As duas primeiras evocam, respectivamente, as datas do assassinato de Ferreira do Amaral - 22 de Agosto de 1849 - e a tomada do forte de Passaleão - 25 de Agosto de 1849. Nas outras duas encontram-se gravadas as datas de 22 de Agosto de 1870 e 31 de Outubro de 1871.

Data de 1573 a construção da muralha do istmo. A porta, conhecida entre os portugueses por  "Porta do Limite" ou "Porta do Cerco" e entre os chineses por "Kuan Chap", terá sido levantada em 1574, e possuía na sua parte superior residências para os guardas chineses. "Tendo posteriormente ruído, foi reconstruída em 1674, ficando então as residências em edifício anexo"( in História da Arquitectura em Macau).  Inicialmente, só eram abertas dois dias em cada lua, para a realização de um mercado onde os portugueses abasteciam-se dos géneros necessários; passados anos estabeleceu-se um mercado semanal. Por fim, a "Porta do Cerco passou a abrir-se todos os dias, o mercado internou-se e fixou-se; pouco a pouco o zelo dos procuradores enfraqueceu, a brilhante e industriosa actividade chinesa insinuou-se, fez-se benquista e foi construindo e multiplicando casas, lojas e oficinas" (As Alfândegas Chinesas de Macau, citado pelo P. Manuel Teixeira). Após a tomada de Pak Shán Lan ou Passaleão, por Vicente Nicolau de Mesquita, a muralha foi destruída e substituída por um posto avançado português que ocupava toda a área entre as Portas do Cerco e o Passaleão.

O Arco das Portas do Cerco encontra-se classificado património cultural.


Fontes:
Maria de Lourdes Rodrigues Costa. História da Arquitectura em Macau. Instituto Cultural de Macau, 1997
P. Manuel Teixeira. A Voz das Pedras de Macau. Macau, Imprensa Nacional, 1980
Pedro Dias. A Urbanização e a Arquitectura dos Portugueses em Macau, 1557-1911, Edição Portugal Telecom, Lisboa 2005.

"Notas sobre o Passaleão" de João Aguiar


"Notas sobre o Passaleão" 
de João Aguiar
Os Comedores de Pérolas 

"Há coisa de meio século e meio, houve em Macau outro 25 de Agosto insuportavelmente quente. As ruas da cidade estavam então bem silenciosas, não só porque havia menos habitantes mas também porque os habitantes se calavam, tolhidos pelo medo.

A Sé Catedral. Cerca de 1910. 
Fotografia do Catálogo da Exposição Reminiscências. Fotografias de Macau Antigo. 2009


Na Sé, em frente do altar-mor, rodeado de flores que já começavam a murchar, jazia em modesta pompa o corpo do governador  Ferreira do Amaral. O caixão estava fechado e devia ser selado nesse mesmo dia. Não houvera exposição: não se podia mostrar aquele corpo sem cabeça, sem braço direito e sem mão esquerda. Nem as conveniências nem os estômagos o permitiam.
A igreja estava deserta, o corpo mutilado repousava solitário dentro do caixão desde que o bispo D. Jerónimo da Mata pronunciara as orações fúnebres com a devoção de quem não sabia muito bem se estava a rezar pelo governador se por si próprio.
Ninguém o sabia, de facto. Desde que Ferreira do Amaral fora trazido assim da Porta do Cerco, Macau esperava o cutelo chinês. Das fortalezas - do Monte, da Guia, de Mong Ha, os soldados tinham visto, nos últimos dois dias, tropas a concentrar-se no outro lado, dentro e em redor do Pak-Shan-Lan. Ninguém duvidava de que o assassínio fora ordenado pelo vice-rei de Cantão. E embora naquela parte do mundo houvesse forças ocidentais - navios ingleses rondavam costumeiramente por onde quer que fosse -; embora os ministros das potências europeias tivessem declarado solidariedade e alguns dos omnipresentes barcos da Rainha Vitória viessem a caminho, não seriam muitos os que acreditavam que os novos impérios da Europa se incomodariam verdadeiramente com a desgraça do velho leão lusitano.
Aliás, precisamente nessa manhã de 25 de Agosto, enquanto os resto do governador entrevam em processo natural de decomposição, os ministros estrangeiros aconselhavam grande prudência ao Conselho que o substituíra.
O Conselho do Governo estava reunido no Palácio, embrenhado numa daquelas discussões inúteis que só são possíveis em circunstâncias serenamente desesperadas, quando o fim ainda não chegou mas está próximo. E os ministros das potências velavam recatadamente o cadáver futuro.
Acontecia isto quando a cidade ouviu os canhões.
No Palácio também os ouviram e o bispo estremeceu. O ajudante-de-campo do Conselho, um jovem alferes de Artilharia, precipitou-se para a rua, montou a cavalo e abalou à procura de notícias. Voltou, não muito mais tarde, com o uniforme desalinhado e o rosto fechado e duro; o seu cavalo resfolegava de cansaço. O oficial desmontou de um salto, entrou a correr para a sala onde o Conselho se encontrava.
- Estão a bombardear a Porta do Cerco! - gritou ele da entrada, sem se preocupar com etiquetas. Os senhores do Conselho falaram todos ao mesmo tempo e o alferes precisou de levantar a voz para se fazer ouvir:
- Temos lá cento e vinte homens e três bocas de fogo que não alcançam o inimigo. Não vão aguentar muito mais tempo.
- Como sabe?! - perguntou o barão de Forth-Rouen, o ministro francês, que na excitação se esqueceu, ele também, do protocolo.
O alferes voltou-se para o grupo dos diplomatas estrangeiros e envolveu-os num olhar frio. Era uma sensação desagradável, ver aqueles olhos rasgados de oriental que lhes lembravam mais a tropa concentrada no Pak-Shan-Lan do que um soldado português: o oficial chamava-se Vicente Nicolau Mesquita, nome cristão, civilizado; mas era macaense, um filho daquele estranho e decadente império luso, que cruzara tanto sangue diferente.
- Sei - respondeu ele - porque venho da Porta do Cerco e aquilo é um inferno. - Dirigiu-se então ao bispo, como seu comandante supremo, visto que presidia ao Conselho: - Não podemos responder ao fogo com a nossa artilharia. Temos de atacar o Passaleão.
De novo, todos falaram ao mesmo tempo, a dizer a mesma coisa. Sabiam que o bombardeamento era o prelúdio da tomada de Macau. Mas no Passaleão (como os portugueses chamavam ao forte de Pak-Shan-Lan) havia, pelos cálculos dos vigias, cerca de quinhentos soldados; nas elevações vizinhas estavam mais de mil e quinhentos, com artilharia, e chegavam constantemente reforços. Era impossível atacar, ninguém o podia fazê-lo.
- Eu posso! - gritou o ajudante-de-campo.

***

... E eu não posso continuar a perder tempo com este assunto.  Não sei sequer se o que escrevi aconteceu assim, a 25 de Agosto de 1849. O que disse exactamente Vicente Nicolau de Mesquita ao bispo D. Jerónimo? O que lhe respondeu o bispo? O que disse o barão de Forth-Rouen? E terá Mesquita olhado friamente os ministros estrangeiros, entre os quais estava, por exemplo, o espanhol Sinibaldo de Mas, que além de um nome impossível deixou excelente reputação em Macau?
Ninguém pode saber. Como ninguém pode saber o que ia na cabeça do ajudante-de-campo quando saiu do Palácio e marchou para a Porta do Cerco à frente de dezasseis voluntários, com um morteiro - para atacar as linhas inimigas e uma fortaleza eriçada de artilharia. Só posso recorrer à imaginação, porque as próprias gravuras não merecem inteira confiança. É com os olhos da imaginação que vejo Mesquita chegar à Porta com os seus dezasseis malucos (mais o morteiro) e entregar ao comandante a ordem do Conselho e preparar-se para avançar sobre os arrozais. Tudo isto debaixo de fogo.
A Macau dessa época desapareceu completamente. Não consigo ver a paisagem dos arrozais. Mas vejo os cento e vinte homens - com os reforços: dezasseis voluntários e um morteiro - alapados no terreno alagadiço; e Mesquita a carregar e a assestar a peça; e o tiro e a explosão que provocou morte e pânico dentro do Passaleão...
O morteiro era francês. Mas, muito portuguesmente, ficou inutilizado com esse primeiro tiro. Vejo Mesquita, furioso com o seu material. E enquanto as balas disparadas do forte passam e assobiam, vejo-o apostrofar o capitão Sampaio, o comandante da guarnição, e invocar a autorização do bispo e gritar aos homens, quem se oferece, vamos atacar.  Debaixo do tiroteio, mais vinte soldados dão um passo em frente.
Ah, sim, foi uma história muito portuguesa: a fraqueza irremediável de Macau, a avaria do morteiro, o avanço de Mesquita com os trinta e seis voluntários. Com o recrudescer do fogo, o capitão, lá atrás, ordenou retirada; Mesquita, ao ouvir o toque, deu ao seu corneteiro a ordem contrária. Uma bala veio partir a corneta em dois bocados e foi ele que gritou à carga, vamos a isto, vamos dar cabo deles.
Tomaram o forte. Um soldado goês chamado António Simão desfraldou a bandeira portuguesa no alto das muralhas. Lançaram fogo aos paióis. E voltaram com a cabeça e o braço de um mandarim morto: o que se pode chamar uma subtil alusão ao que haviam feito os assassinos de Ferreira do Amaral.
E esta é a história que eu queria escrever. Mas não convém. Neste final de século e de ciclo, tanto Ferreira do Amaral como Vicente Nicolau Mesquita estão profundamente esquecidos pela esmagadora maioria dos portugueses. E aqui em Macau, não estão esquecidos mas são profundamente incómodos.
Fim das notas sobre o Passaleão.
E por que é que esta história me fascina?
Porque, com todos os seus defeitos, Vicente Nicolau de Mesquita e João Maria Ferreira do Amaral pertencem àquela raça, hoje extinta, dos portugueses que fizeram e durante séculos mantiveram Portugal como país. Além disso, ambos são heróis trágicos, ambos pagaram o tributo exigido pelos deuses. Um foi assassinado, o outro enlouqueceu. A estátua de Vicente Nicolau de Mesquita foi derrubada e desapareceu nos tumultos da Revolução Cultural; a do governador, tão sólida que resistiu aos esforços dos revolucionários culturais, deve ser desmontada muito em breve.
Há ainda outra razão. Embora ninguém o diga abertamente, sinto que eles hoje são um embaraço para a nossa diplomacia sínica (!). E só isso bastaria. Desde que me estreei no jornalismo, nunca resisti à tentação de tentar embaraçar o Poder." (p. 54-58)
João Aguiar. Os Comedores de Pérolas. Edições Asa, 1993


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (XIX)

XIX
A Festividade

Terminado o julgamento de Cheng-Cheong-Van, e cumpridas as formalidades da lei, foi entregue ao Superior do Templo de Á-Má a preciosa imagem.
Este veio ao Tribunal Judicial, acompanhado duma comitiva de bonzos, receber o Tesouro e com ele se dirigiu, em procissão, para o Templo da Barra, seguido de imenso povo.
Dois dias depois, à meia-noite, o Templo de Á-Má mostrava-se profusamente iluminado e tudo indicava ser dia de festa.
A escadaria e o pátio estavam apinhados de vendilhões ambulantes que expunham aos olhares cobiçosos dos fiéis, que acorriam ao templo, belas frutas e apetitosos bolos, canjas e chás.
A população fluvial da Colónia quase se encontrava toda em terra com os seus trajes de festa.
Os lenços, bordados e estampados a ouro e a vermelho das tancareiras contrastavam as cuias de cabelos lisos e brilhantes de paufá, de que se orgulhavam as mulheres da cidade.
As cores berrantes das cabaias davam ao ambiente um ar de gala, que não se confundia.
Os homens, em vozearia interminável, indicavam esperar qualquer acontecimento de importância, e a petizada embasbacada mantinha-se a distância, em ar de reserva.
No Templo, no altar central, a preciosa imagem da Deusa Á-Má, expunha-se altiva aos olhares dos fiéis.
Ladeando o altar, filas de altas cadeiras de pau-preto mostravam que se aguardava cerimónia de importância, a que assistiriam pessoas de alta categoria.
No chão, em frente ao altar, um grande incensador emparelhava com uma preciosa pira de bronze onde o fogo votivo era mantido pelo bonzo de serviço que, de momentos a momentos, fazia soar um gongo, colocado à direita do altar, com duas pancadas secas e intervaladas.
No Largo do Pagode, a multidão afastava-se aos gritos dos cúlis e, junto à escadaria, sucediam-se as cadeirinhas e os jerinxás, donde se apeavam algumas autoridades da Colónia e chineses de categoria.
À meia-noite e meia-hora, os bonzos tomavam lugar nas cadeiras colocadas à direita do altar e as autoridades e pessoas de categoria nos assentos da esquerda.
Lau-Sin tinha lugar de honra junto ao Procurador dos Negócios Sínicos, que ocupava o primeiro lugar.
O Superior avançou para o altar, vestido de paramenta festiva, acendeu alguns pivetes, que colocou junto à imagem, ajoelhou, bateu cabeça três vezes e começou um recitativo, que os restantes bonzos repetiam em coro.
Finda a reza inicial, foram apresentados cumprimentos ao Procurador e, seguidamente, Lau-Sin foi convidado a celebrar a cerimónia, que o ritual impunha.
O polícia, ricamente trajado de longa cabaia de brocado, sapatos de seda preta e sola branca e de barretinho de brilhante cetim, ajoelhou junto ao altar, recebeu das mãos do bonzo, mestre de cerimónias, alguns pivetes e, respeitosamente, bateu cabeça, segundo o estilo.
Finda esta ligeira e impressionante cerimónia, entregou cem patacas ao Superior, dinheiro que se destinava aos pobres e, fazendo as vénias da etiqueta, retirou-se para o seu lugar.
Então as autoridades e pessoas de categoria entregaram todas o seu óbolo, aguardando que fosse dado o sinal de que a cerimónia estava terminada.
O gongo começou a soar e, à terceira pancada, o Superior deu por finda a cerimónia religiosa, convidando os seus distintos hóspedes a entrarem na Bonzaria.
Uma longa mesa de pau-preto, com embutidos de madrepérola, encontrava-se coberta de variadas iguarias que todos comeram, bebendo de quando em quando o precioso chá de pétalas de  crisântemo.
Entretanto, no átrio, os bonzos distribuíam esmolas aos pobres, que de toda a cidade acorriam a prestar homenagem à Santa de tanta devoção.
Começou então a ouvir-se o estalejar de intermináveis fiadas de pauchèong, até que o gongo da Bonzaria anunciou estar terminada a festividade.


E, com o decorrer do tempo, foi esquecido o "Caso do Tesouro do Templo de Á-Má", que aqui deixamos revivido, até que volte a ser esquecido... como a quase tudo acontece.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

"Fire Crackers" e Panchões

"Fire Crackers" e Panchões
"Os chinezes são um povo essencialmente amigo de tudo que é ruidoso; nas ruas a gritaria é de ensurdecer, porque milhares de pessoas fallam e gritam constantemente; para elles são desconhecidos os sons de uma musica suave, porque só gostam do "forte" e do fortissimo".
Assim para elles não haveria festa completa, se não tivessem descoberto um meio de fazer bulha; inventaram os "fire-crackers", chamados entre nós "fogos da China"; nome que não adoptámos, porque não dá, como a expressão ingleza, uma idéa exacta do que é.
Os "fire-crackers" são pequenas bombas feitas com envolucro de papel, e do tamanho e feitio da metade de um cigarro. Estas pequenas bombas estão ligadas umas ás outras, aos centos e aos milhares; com essa especie de restea envolve-se um mastro erguido no chão, ou suspende-se a restea do ramo de uma arvore; é a isto o que se chama um panchão. Chega-se-lhe fogo, e começa a fuzilaria, que dura ás vezes mais de meia hora, ouvindo-se de espaço a espaço os indispensaveis petardos, a que se vem juntar o estalar de caixas dos mesmos fire-crackers, que se atiram ardendo ao chão.
Um bom chinez, - embora pobre e sem arroz para comer - deixar de queimar fire-crackers por qualquer festa?!... isso nunca!"
J. Heliodoro Callado Crespo. Cousas da China - Costumes e Crenças. Lisboa, Imprensa Nacional, 1898, p. 244

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Cousas da China - Costumes e Crenças

COUSAS DA CHINA - COSTUMES E CRENÇAS por J. Heliodoro Callado Crespo.
Lisboa, Imprensa Nacional, 1898

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (XVIII)

XVIII
O regresso

Dois dias depois, terminados os preparativos necessários, Lau-Sin, senhor do tesouro, e acompanhado do terrível pirata Cheng-Cheong-Van e de A-Sou, deixava a cidade de Fu-Chau a bordo de um grande barco à vela, com destino a Macau.
O vento, soprando sempre favoravelmente, não tornou a viagem demorada e, ainda que tivesse tido necessidade de um pequeno desvio para fugir a uns restos de tufão, cujos efeitos não deixaram de ser sensíveis, o barco aportou à cidade do Nome de Deus, numa manhã radiosa do mês de Junho.
Não escapou aos olhares curiosos da multidão, que na azáfama diária se cruzava na Avenida Marginal do Porto Interior, o desembarque do polícia que trazia consigo, bem algemado, um homem de estatura colossal, que não aparentava desconhecer a cidade.
Lau-Sin dirigiu-se imediatamente à Procuratura dos Negócios Sínicos e aí fez entrega do criminoso ao Procurador que, cumprindo as formalidades necessárias, o fez dar entrada na Cadeia Pública.
Desembaraçados do criminoso, o procurador e o polícia quedaram-se durante algum tempo na contemplação da preciosa imagem.
Foi chamado o Superior do templo de Á-Má, que afirmou ser aquela a imagem que tinha sido roubada; e o Procurador prometeu-lhe que ela lhe seria entregue logo que estivessem cumpridas em Juízo todas as formalidades processuais.
No dia seguinte, no livro de Ordens de Serviço da Procuratura, a páginas quarenta e sete, verso, lia-se um louvor do teor seguinte:
"Eu, F... Procurador dos Negócios Sínicos, no uso do direito que me confere o número 5º do artigo 24º do capítulo III do Regulamento da Procuratura dos Negócios Sínicos de Macau, aprovado pela Portaria Régia de 24 de Agosto de 1898, LOUVO o chefe da Polícia Secreta desta Procuratura, Lau-Sin, pela coragem, zelo e competência demonstrados no aprisionamento do célebre pirata Cheng-Cheong-Van.
Recomendo a todo o pessoal da Polícia Secreta que siga os exemplos do seu Chefe, funcionário de que esta Procuratura se orgulha, por tantas e tão distintas qualidades que nele concorrem.
Macau, ... de Junho de ....
O Procurador
(assinatura)"

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

Sinais indicativos de tufão, 1924


segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má

XVII
Entre amigos


Já ia alta a noite quando na Prefeitura da cidade, no gabinete do chefe da Polícia, se encontravam os dois velhos amigos Lau-Sin e Vong-Seng-Kuong, comodamente instalados em duas cadeiras de espaldar, conversando sobre os acontecimentos que tinham provocado tão desejado e, ao mesmo tempo, evitado encontro.
Lau-Sin, com a ferida que o punhal assassino de Cheng-Cheong-Van lhe tinha feito, devidamente pensada, e envergando uma cabaia curta que Vong-Seng-Kuong lhe emprestara, fumando um delicioso charuto e, de quando em vez, dominava a excitação nervosa, que a luta lhe tinha provocado, com demorados golos de um magnífico brandy, que o amigo lhe servira.
- És um incorrigível! - exclamou Vong-Seng-Kuong.
- Esta já não é a primeira vez que me salvas a vida - respondeu Lau-Sin
- Mas como sabias tu que eu não ignorava que te encontravas nesta cidade?
O polícia, olhando-o com um sorriso, disse:
- És sempre gentil para com os amigos; mas confessa que quando te dirigiste à várzea Man-Fong não pensaste no auxílio que poderia oferecer-te, em caso de apuro.
- É facto - disse Lau-Sin - que, quando me atrevo a um empreendimento qualquer, não penso nas consequências e conto somente comigo próprio e... com a boa estrela, que deve acompanhar um polícia; mas não é menos verdade que, no caso presente, mesmo sem o teu auxílio, apesar de ferido, ainda estava em condições de pôr os guarda de Cheng-Cheong-Van fora de combate, porque já tinha dominado o chefe. Desculpa, caro amigo, mas o teu auxílio não foi realmente tão valioso como supões. Como polícia dou-lhe o valor, que teve, da oportunidade. Esta opinião, porém, em nada diminui o merecimento do teu trabalho, nem afecta a minha gratidão pela decisão imediata que deste ao caso.
- Ora é aí mesmo - disse Vong-Seng-Kuong - que está o perigo das tuas façanhas policiais: Queres ser sempre tu, e só tu, a trabalhar, sem auxílio de quem quer que seja. Mas, resumindo, que vieste fazer a esta cidade, como te viste envolvido em luta com os homens de Chau-Seng e porque evitaste a minha pessoa?
- É simples a resposta, meu velho - disse Lau-Sin, inspirando profundamente o fumo do delicioso charuto, que tinha na boca. - Cheng-Cheong-Van, há meses, em Macau, por altura do Ano Novo, entrou no templo de Á-Má, apunhalou o bonzo Lau e roubou a imagem de Tin-Hau. Por dedução cheguei à conclusão de que esta estaria nesta cidade e para aqui parti, não tendo sido, ao que vejo, mal sucedido.
- Mas porque evitaste a minha pessoa? - insistiu Vong. - Sim! Porque não me procuraste, sendo amigos como somos? Eu sei que estás nesta cidade há dias e tenho-te seguido apenas com o fim de auxiliar-te, se de mim precisasses.
- Eu te digo: - declarou Lau-Sin paulatinamente. - Eu queria prender o assassino e levá-lo comigo para Macau. Ora, com o teu conhecimento, não me parecia fácil satisfazer o meu desejo.
- Mas porquê? - atalhou Vong. - Claro é que eu não posso entregar-te o criminoso, em face da lei, sem mais formalidades; mas posso soltá-lo no barco onde partires para Macau, cabendo-te a ti o entendimento com o dono ou patrão da embarcação para que ele vá às tuas ordens e como teu prisioneiro. Deve ser uma questão de dinheiro.
Lau-Sin tinha parado de fumar e olhava atento para Vong. Logo que este terminou, levantou-se e disse cheio de esperanças:
- Pois entregas-me Cheng-Cheong-Van?
- Porque não? - disse Vong. - Se cá ficasse morreria e, indo contigo para Macau, desaparece desta cidade, que é o que me interessa.
Lau-Sin, abraçando o seu velho amigo, exclamou, disposto a sair:
- És um bom amigo e um bom polícia!
- Espera! - disse Vong. - Eu não sou curioso, mas em troca do favor que te faço, peço-te que respondas a uma pergunta.
- Dizei! - exclamou Lau-Sin, pondo-se de reserva.
- E a imagem?
- A imagem... bem vês... não me interessa particularmente e, de resto, ... eu não vim cá à procura dela.
- Meu velho! - disse Vong serenamente. - Todos nós temos um ponto vulnerável: Quando ontem saíste da hospedaria, onde estás instalado, os homens de Chau-Seng, dirigidos pelo bonzo Chan do Templo de Tin-Hau, entraram no teu quarto, remexeram tudo quanto lá tinhas e roubaram a imagem que tu, por mero acaso, tinhas conseguido reaver para o templo de Macau.
- Que dizes? - perguntou Lau-Sin sobressaltado.
- É verdadeiro o que acabo de te contar - disse Vong serenamente.
- Paciência! - exclamou Lau-Sin, procurando disfarçar um abatimento moral que o confrangia. - Serei mais feliz para outra vez!
- Velho amigo Lau-Sin! - disse Vong, dando-se ares de importância. - O teu amigo Vong fez o que te faria se tivesses pedido o seu auxílio, quando aqui chegaste. A imagem está em meu poder, porque os meus homens têm estado de guarda aos teus aposentos. - E, tirando a imagem dum pequeno armário, entregou-a a Lau-Sin, acrescentando: - Tomai esta preciosidade e levai-a para que ela continue guardando, como até aqui, a cidade da Porta da Baía, onde se desfruta paz e onde se vive feliz.
Lau-Sin, com lágrimas nos olhos, abraçava comovido o seu velho amigo e dele recebia a preciosa imagem, dizendo:
- Obrigado! Obrigado! Somos dignos um do outro. Eu serei mais ousado que tu, mas tu és mais previdente que eu.
O Sol começava a nascer e, ao calor dos primeiros raios, abriam os lírios no jardim da Prefeitura.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

"Macau" de Antoine Volodine















MACAU
Antoine Volodine
Olivier Aubert (fotografias)
Traduzido do francés por Ana Isabel Sardinha Desvignes
Sextante Editora. Junho de 2012




"Para acender novo cigarro o velho servira-se da beata anterior. Eu tinha mais do que tempo e ocasião de lhe observar a cabeça que resistia ao cerco da penumbra, uma cabeça que as vicissitudes da existência haviam sulcado e enobrecido e que, a pouco e pouco, se transformara em máscara como as que usam os campónios e os pés descalços deste lado do mundo. Se o velho tivesse sido fotografado, poderia ter servido de capa a um daqueles catálogos consagrados aos anónimos da região do Guandong, camponeses, operários e pescadores, daquele género de livros com retratos de pobres em papel glacé que os turistas folheiam sem comprar." (p. 12) 
"Quando se vem de Hong Kong, é por mar que chegamos, embriagados com as nossas próprias emoções diante da paisagem, diante de uma experiência de pura beleza, de esplendor simples, acabados de deslizar durante uma hora por entre ilhotas desabitadas e uma costa que parece deserta, inundada de luz, calva, desprovida de árvores; chegamos por mar, mal tocando uma superfície de um verde de jade escuro onde nada ondula, onde traineiras, cruzadas aqui e ali, arvoram bandeiras vermelhas e se baloiçam como juncos." (p. 22) 

"Para nos mantermos apaixonados por aquele sítio, fidelidade, voluntária cegueira eram precisas!... Eu tinha-o descoberto dez anos antes, ainda sob forma de burgo colonial imobilizado nos anos quarenta e, a seguir, vira-o metamorfosear-se velozmente  em medonho subúrbio, graças a arquitectos medíocres que de todas as maneiras e feitios lhe tinham arrancado a velha alma secular, a velha alma luso-asiática. (...) Desagradava-me aquela visão do futuro próximo, a de um Macau de quem os profetas da desgraça diziam que viria a parecer-se com uma espécie de traseiras de hipermercado e de estação de triagem. (...) Não te esqueças de que aquele que te fala conheceu a Baía da Praia Grande, aquela curva perfeita onde corriam as águas amarelas, e não te esqueças do tempo das minhas primeiras viagens, quando eu ainda desembarcava sob os ventiladores coloniais, nas galerias sobre estacas do antigo terminal do jetfoil, e não te esqueças de que então, na ilha da Taipa, a maior parte das casas não tinha mais do que um andar" (p. 24)

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Morcego, símbolo da felicidade

Imagem do morcego na fornalha em forma de torre de pagode do Templo de Bambu ou
 Chôk Lam Chi. Macau, Agosto de 2012

No seu livro Pagodes de Macau o Padre Teixeira explica o significado da imagem do morcego, tão frequente nos templos chineses: "O morcego é o símbolo da graça, ventura e felicidade. A razão é engenhosa: o morcego em chinês chama-se fôk su; ora o vocábulo fôk é homófono de fôk, felicidade; em virtude desta homofonia, o morcego veio a ser o símbolo da felicidade".

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (XVI)


XVI
A surpresa


O embate dos corpos, no solo, indicava que os dois adversários não se largavam e que ambos estavam empenhados numa luta de morte.
Ora um corpo se projectava de encontro a um móvel, que tombava, ora o tenir de metais denunciava que ambos se encontravam armados e procuravam fazer uso das armas que possuíam.
Os guardas, por vezes, lutavam uns contra os outros, julgando baterem-se com A-Sou que, arteiramente, procurava intrometer-se na luta que se travava entre Lau-Sin e o pirata, com o único fim de auxiliar aquele.
Não era porém possível a A-Sou distinguir, na escuridão em que se encontrava o aposento, o que quer que fosse que lhe permitisse pôr em prática o seu desejo e ainda, de quando em quando, era atingido com violentos pontapés que o lançavam de encontro aos móveis, já todos desarrumados.
Pouco a pouco, porém, sobre o pavimento, a luta já não era tão movimentada e percebia-se que um dos adversários dominava. As pragas davam lugar a gritos abafados e roucos que se iam extinguindo.
- Uma luz! Uma luz! Tragam uma luz! - gritava um dos guardas.
Pelas frestas das janelas do aposento começava a coar-se luz vinda do exterior e, quanto mais acentuada ela se tornava, mais intrigados ficavam todos aqueles que sabiam que não era possível que qualquer auxílio lhes pudesse ser enviado.
Quase que instantaneamente foram arrombadas as portas do aposento que davam para o exterior e, com surpresa geral, Vong-Seng-Kuong, seguido de uma dezena de polícias bem armados e alguns munidos de lanternas acesas, aparecia à porta principal dando a todos voz de prisão.
A surpresa inesperada paralisou todos os movimentos e as atenções dirigiram-se para o pavimento do aposento onde o quadro era impressionante:
Lau-Sin, ensanguentado e com o traje e farrapos, dominava Cheng-Cheong-Van que, deitado de costas no pavimento, se apresentava algemado e com o rosto irreconhecível das violentas pancadas que o polícia lhe tinha vibrado. Junto ao corpo de Cheng-Cheong-Van estava um punhal, e Lau-Sin mostrava no ombro direito um golpe profundo, donde o sangue vertia sem cessar.
Lau-Sin tinha vencido o seu inimigo.
- Algemai esses homens - ordenou Vong-Seng-Kuong. E, voltando-se para Lau-Sin, disse:
- Tive que vir visitar-te porque estava cansado de esperar a tua visita.
- Chegaste a tempo, amigo - disse Lau-Sin. - Mas não julgues que não eras esperado. Aqui tens um criminoso terrível, devidamente algemado. Como vês, é boa a polícia de Macau.
Vong-Seng-Kuong, ao reconhecer Cheng-Cheong-Van, exclamou:
- Bom serviço. Há mais de dez anos que procuro este facínora e cumpre-me portanto agradecer-te penhorado o presente que me fazes. - E, virando-se para os seus homens, disse: - Guardas! Levai estes homens e tende o maior cuidado com este que é o célebre criminoso Cheng-Cheong-Van.
Lau-Sin, que se sentia enfraquecer pelo sangue que ia perdendo, disse: - Ajuda-me a atar este lenço sobre este golpe e vamos depressa a uma farmácia qualquer.
Vong-Seng-Kuong, depois de ter operado como convinha, deu o braço a Lau-Sin e, amparando-o, com este se retirou do aposento, deixando, no entanto, dois guardas de vigia à cabana.
Já os guardas caminhavam, amparando alguns criminosos que tinham sido feridos, quando Lau-Sin perguntou: - E A-Sou? Onde está A-Sou.
- Estou aqui - disse A- Sou que, mal podendo caminhar, se arrastava com o peito ensanguentado e apoiado sobre os ombros de dois guardas. - Parece que me apanharam desta vez. Paciência!
- Não, meu amigo - disse Lau-Sin aproximando-se. - Não te apanharam. Vamos já depressa procurar um médico.
E assim seguiu o grupo pelos carreiros da várzea, com destino à cidade.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949