terça-feira, 30 de outubro de 2012

Macau nos longes do tempo

Macau nos longes do tempo: uma crónica de Maria Ondina Braga publicada na revista Sábado de 3 de Abril de 1982

"Vivi em Macau três anos, na casa-das-professoras do Colégio de Santa Rosa de Lima, mesmo por trás da igreja. Todas as manhãs, quase sobre a minha cabeça, badalava o sino mais antigo da terra. Acordava estremunhada com o retumbar do bronze: os passos das religiosas, o esvoaçar das pombas no escuro. Se não conseguia conciliar o sono, ficava a cismar num livro que havia de escrever. Foi assim que, certo dia abafado, negro de chuva, nasceu Estátua de Sal
Escrevia numa mesinha de três palmos de comprido, ao entardecer. No triângulo que o estreito guarda-vestidos formava com a parede, ano após ano, uma osga de corpo de jaspe construía o seu ninho. Não posso deixar de recordar o translúcido réptil, a sua habilidade na caça aos mosquitos, a maneira como deslizava, ia dizer, patinava do canto do tecto ao suporte da lâmpada. Noites de luar. Já então, bebida a última chávena de chá, eu apagara a luz e me enfiara sob o mosquiteiro de tule. As silenciosas acrobacias da osga ao redor do quarto. A nuvem de mosquitos na janela escancarada. As minhas memórias. Lembro-me de tudo isso como se fosse hoje. Disso e da solidão. 
À volta das aulas nocturnas no Clube Católico -- tão magros os meus honorários no colégio que ensinava, lá fora, português a chineses e inglês a soldados portugueses -- era um sapinho à minha espera no jardim. "Um bichinho bonito, sabem? E como se adivinhasse a hora da minha chegada..." "Cuidado, sapo é espírito, professora!". Um moço com três nomes: português, chinês e inglês. Como queres que te chame? Edward. Um portento, o Edward, aprendia de cor vinte frases em cada lição, sem se enganar nos verbos, e quando me vim embora convidou-me para um jantar de cão no restaurante da especialidade. "Comer cão, Edward, é -- sei lá? -- canibalismo. Já reparaste nos olhos humanos de cão?" Ora, muito gostosa carne de cão. Na Peregrinação, Fernão Mendes Pinto conta que cheirava de longe, cozinhava-se com laranjas espremidas. 
Macau será também para mim A China Fica ao Lado: o conhecimento dos chineses e seus usos, as festas tradicionais, o exotismo da paisagem, e a flutuante e espectral cidade dos barcos a arrostar milagrosamente com tufões e epidemias. Todavia, pensar hoje Macau é quase apenas ver-me, perdida, na "cela" da casa-das-professoras de Santa Rosa, por trás da igreja. Da banda de lá ficava o mar cinzento, os juncos de velas de meio-leque com remendos do feitio de dedos. De vez em quando a madre-mestre-dos-estudos trazia-me carinhosamente um copo de leite: "Está a fazer um livro? Leia-me um bocadinho!" O seu ar circunspecto, as mãos cruzadas no regaço. "E eu que julgava que sabia escrever!..." Dirigia o jornal da escola portuguesa, compunha poemas. 
Na sala pegada, um piano desafinado martelava todo o dia. Principiantes da classe de música vinham para ali estudar escalas. "Só mais uma página!", implorava a freirinha a consultar o relógio de algibeira. Ai, que tocava para o terço, para a novena... Chegavam as colegas chinesas com choco num papel besuntado, e muita algazarra. Espreitavam a oferecer. O petisco comia-se com palitos, temperado com molho picante. No calor, a porta aberta para trás e as pessoas que passavam no corredor dentro do espelho do guarda-vestidos; as pessoas ali a meu lado no quarto da largura de uma abraço. Aparecia um velho de feições mongóis que, pelo Natal, vendia telas de Meninos Jesus a manejar o fachis do arroz. Aparecia a empregada a distribuir a roupa lavada, uma muda, toda mesureira se eu lhe dava um vestido. Apareciam velhas freiras, e filhos pequenos de mulheres-a-dias no inverno entrouxados no min-nap. E o cão de guarda que se soltava ao pôr-do-sol, solene, de orelhas mordidas pelas moscas. E minhocas gigantes no enxurro do pátio. E gatos. E ratos. O piano, tan-tan-tan-tan. As máquinas da lavandaria, por baixo, a roncar. Eu a rogar a Deus a bênção da noite.
A noite, a estrela rosada da osga, o misterioso sapo, a lua (em Março? em Setembro?) redonda e vermelha como uma tigela de laca, o sino histórico a sobressaltar-me (nunca me acostumei ao sino) -- coisas que jamais posso esquecer de Macau. Isso e a solidão". 


Sem comentários: