quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A Cidade de Macau - por Raquel Soeiro de Brito


A Cidade
"Na cidade, nas horas de maior bulício, as pessoas acotovelam-se e os transportes colectivos e individuais têm dificuldade em passar. Com uma densidade populacional de cerca de 29 000 h/km2, Macau integra-se bem no tipo da cidade oriental, formigueiro de gente.
Por entre o amontoado de casario sobressaem algumas colinas graníticas a que a densa vegetação, que as cobre quase por completo, e a aspereza das encostas dão maior realce. Em pleno centro, a colina do Monte, encimada por uma fortaleza à Vauban, mandada edificar pelos Portugueses, domina a cidade; no flanco do Noroeste ergue-se a elegante fachada de pedra, restos da "mais linda igreja do Oriente", que um incêndio devorou em 1825. À roda da igreja e no contraforte da fortaleza situou-se, até ao século passado, o mais importante bairro português. Ainda aí hoje se vêem alguns palácios e sobrados que se desafiaram uns aos outros em beleza; mas na quase totalidade foram abandonados pelos descendentes dos antigos moradores e acabaram por ter o triste destino dos palácios de Xabregas, em Lisboa. Apenas na Rua de Santo António algumas destas casas grandes continuam habitadas por famílias de dinheiro e de bom gosto. Ainda no centro, a colina de Camões é inteiramente ocupada por um grandioso jardim. A oeste da Península encontram-se as colinas da Barra e da Penha, uma e outra conquistadas pela implantação de vivendas ricas envoltas em jardins floridos, o mesmo se verificando de 1960 para cá, com os relevos de São Januário e Guia, a sudeste; porém em Mong-há, a norte, e na Ilha Verde, a noroeste, onde ainda não chegou a onda de construção, salientam-se as manchas de verdura intactas, fazendo realçar ainda mais as elevações."

Missa ao ar livre nas Ruínas de S. Paulo. 1964
Fotografia de Leong Chi Cheng in
Cinquenta Anos Num Olhar: Meio Século Documentado pela Associação Fotográfica de Macau. 
Museu de Arte de Macau, 2008
"De todas as zonas em que se pode dividir a cidade (fig. 3), a que mais atrai a atenção do Ocidental é a do bairro do Bazar, habitado principalmente por chineses e com uma vida comercial muito intensa. Ruas estreitas e sombrias são ladeadas por prédios esguios de dois ou três andares; quase todos possuem varandas muito salientes, as dos andares inferiores protegidas pelas varandas dos outros, apoiadas em colunas geralmente de madeira; as dos últimos andares são cobertas com folhas de zinco ou simples oleados, que as abrigam das chuvadas de monção de Abril a Setembro. O rés-do-chão de quase todos os prédios é ocupado por lojas , indicando os grandes letreiros, em vistosos e coloridos caracteres chineses, o ramo de negócio. E muito mais do que uma loja de aldeia europeia, cada pequenina loja é um mundo de artigos; bancadas de madeira de um e outro lado das portas, às vezes em montras, e uma amostragem seleccionada indica os artigos que há para venda: produtos alimentares, de vestuário, calçado, brinquedos, bugigangas várias, uma secção de câmbios, etc., etc. Mas também existem lojas especializadas na venda de certos produtos: antiguidades, ervanárias (é bem conhecido de todos os ocidentais a sua importância na medicina oriental), casas de vinho chinês, isto é, de álcool destilado de arroz, diferindo de sabor consoante os animais que se juntam, até ficarem desfeitos (por exemplo: gatinhos, cobras, lagartos). É nestas ruas que o bulício é maior e as pessoas se acotovelam mais amiúde nas horas de maior movimento; quando subitamente todo este movimento cessa e a azáfama comercial se interrompe, as janelas iluminadas e as portas entreabertas, donde sai o ruído surdo das pedras de majongue, são o único sinal de vida, pela noite fora."

Rua da Felicidade, anos 1960-70.
Fotografia de Lei Chiu Vang do álbum Visita ao Passado
Museu de Arte de Macau e Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais. 2004

"Na larga Avenida Almirante Sérgio, que rodeia o porto interior, em contraste, encontra-se o maior número de casas comerciais dedicadas a um mesmo ramo: tudo relativo à pesca, desde a venda dos mais variados apetrechos para os barcos e para a faina, até à compra e exportação do pescado. Também é nesta zona da cidade que está localizada a grande maioria das suas pequenas indústrias (serração de madeira e construção naval, tinturaria e estampagem de tecidos, confecção de vestuário, luvas e calçado, artigos eléctricos, esmaltagem, garrafas térmicas), que ocupam 16 000 pessoas (1/4 na confecção de artigos de vestuário e outro 1/4 no fabrico de explosivos e pirotecnia) e contribuem para alimentar, pela maior parte, as exportações e abastecer uma clientela modesta de grande número de portos da África Oriental."
A larga Avenida Almirante Sérgio, cerca de 1970.
Fotografia de Lei Chiu Vang do álbum Visita ao Passado
Museu de Arte de Macau e Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais. 2004

No istmo, perto da porta do Cerco e bordejando a periferia oriental da cidade, vêem-se desenvolvendo aterros há mais de três décadas; em 1961, formavam um conjunto de 68 ha, repartidos por quatro pequenos retalhos (fig.3). À medida que iam crescendo logo se implantavam hortas, minuciosamente cuidadas por agricultores que "têm atrás de si um tesouro de experiência acumulada por gerações de camponeses pacientes e engenhos" (Gourou). Estas hortas iam substituir as que o crescimento da cidade expulsava do seu núcleo; nos últimos cinco anos elas próprias tiveram a mesma sorte, dada a expansão rápida da cidade. Os moradores foram obrigados a retirar para as ilhas, onde, por enquanto, há espaço susceptível de ser aproveitado para a agricultura.
Raquel Soeiro de Brito. "Achegas para a Geografia de Macau". Revista da Junta de Investigação do Ultramar, nº 81 (Colóquios sobre as províncias do Oriente. Volume 2), 1968. 
 As Portas do Cerco, cerca de 1970.
Fotografia de Lei Chiu Vang do álbum Visita ao Passado
Museu de Arte de Macau e Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais. 2004

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Raquel Soeiro de Brito  [Assunção/Elvas, 1925]  
Geógrafa. De seu nome completo Maria Raquel Viegas Soeiro de Brito, doutorou-se em 1955 em Ciências Geográficas, na Universidade de Lisboa. Assistente na Faculdade de Letras de Lisboa (1955-60), professora extraordinária (1960-66) e catedrática (1966-77) no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina e na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (desde 1977). Professora titular de Paris X (1980-81).

Foi adjunta à Missão de Geografia à Índia, entre outras realizadas no então Ultramar português, entre 1955 e 1974. Em 1957 foi louvada pela missão científica feita ao vulcão dos Capelinhos, nos Açores. Em 1967, foi-lhe atribuído o Prémio Internacional Almirante Gago Coutinho pelo trabalho Goa e as Praças do Norte. Fundadora do Departamento de Antropologia (1974) e de Geografia e Planeamento Regional (1980) na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Dirigiu a revista da Sociedade de Geografia de Lisboa, Geographica. Realizou numerosas viagens de estudo, conferências e cursos.

Tem dirigido e participado em trabalhos de investigação e pesquisa no âmbito de programas lançados por outras universidades e organismos internacionais. Comendadora da Ordem do Marechal José Pessoa (Brasil, 1964), Officier des Palmes Académiques (França, 1974), Membre d'Honneur da Sociedade de Geografia de Paris (1982), membro da Academia da Marinha (1987). Tem colaboração em revistas da especialidade estrangeiras e portuguesas como: GeographicaFinisterraGarcia de OrtaNaturalia, etc.

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