segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má

XVII
Entre amigos


Já ia alta a noite quando na Prefeitura da cidade, no gabinete do chefe da Polícia, se encontravam os dois velhos amigos Lau-Sin e Vong-Seng-Kuong, comodamente instalados em duas cadeiras de espaldar, conversando sobre os acontecimentos que tinham provocado tão desejado e, ao mesmo tempo, evitado encontro.
Lau-Sin, com a ferida que o punhal assassino de Cheng-Cheong-Van lhe tinha feito, devidamente pensada, e envergando uma cabaia curta que Vong-Seng-Kuong lhe emprestara, fumando um delicioso charuto e, de quando em vez, dominava a excitação nervosa, que a luta lhe tinha provocado, com demorados golos de um magnífico brandy, que o amigo lhe servira.
- És um incorrigível! - exclamou Vong-Seng-Kuong.
- Esta já não é a primeira vez que me salvas a vida - respondeu Lau-Sin
- Mas como sabias tu que eu não ignorava que te encontravas nesta cidade?
O polícia, olhando-o com um sorriso, disse:
- És sempre gentil para com os amigos; mas confessa que quando te dirigiste à várzea Man-Fong não pensaste no auxílio que poderia oferecer-te, em caso de apuro.
- É facto - disse Lau-Sin - que, quando me atrevo a um empreendimento qualquer, não penso nas consequências e conto somente comigo próprio e... com a boa estrela, que deve acompanhar um polícia; mas não é menos verdade que, no caso presente, mesmo sem o teu auxílio, apesar de ferido, ainda estava em condições de pôr os guarda de Cheng-Cheong-Van fora de combate, porque já tinha dominado o chefe. Desculpa, caro amigo, mas o teu auxílio não foi realmente tão valioso como supões. Como polícia dou-lhe o valor, que teve, da oportunidade. Esta opinião, porém, em nada diminui o merecimento do teu trabalho, nem afecta a minha gratidão pela decisão imediata que deste ao caso.
- Ora é aí mesmo - disse Vong-Seng-Kuong - que está o perigo das tuas façanhas policiais: Queres ser sempre tu, e só tu, a trabalhar, sem auxílio de quem quer que seja. Mas, resumindo, que vieste fazer a esta cidade, como te viste envolvido em luta com os homens de Chau-Seng e porque evitaste a minha pessoa?
- É simples a resposta, meu velho - disse Lau-Sin, inspirando profundamente o fumo do delicioso charuto, que tinha na boca. - Cheng-Cheong-Van, há meses, em Macau, por altura do Ano Novo, entrou no templo de Á-Má, apunhalou o bonzo Lau e roubou a imagem de Tin-Hau. Por dedução cheguei à conclusão de que esta estaria nesta cidade e para aqui parti, não tendo sido, ao que vejo, mal sucedido.
- Mas porque evitaste a minha pessoa? - insistiu Vong. - Sim! Porque não me procuraste, sendo amigos como somos? Eu sei que estás nesta cidade há dias e tenho-te seguido apenas com o fim de auxiliar-te, se de mim precisasses.
- Eu te digo: - declarou Lau-Sin paulatinamente. - Eu queria prender o assassino e levá-lo comigo para Macau. Ora, com o teu conhecimento, não me parecia fácil satisfazer o meu desejo.
- Mas porquê? - atalhou Vong. - Claro é que eu não posso entregar-te o criminoso, em face da lei, sem mais formalidades; mas posso soltá-lo no barco onde partires para Macau, cabendo-te a ti o entendimento com o dono ou patrão da embarcação para que ele vá às tuas ordens e como teu prisioneiro. Deve ser uma questão de dinheiro.
Lau-Sin tinha parado de fumar e olhava atento para Vong. Logo que este terminou, levantou-se e disse cheio de esperanças:
- Pois entregas-me Cheng-Cheong-Van?
- Porque não? - disse Vong. - Se cá ficasse morreria e, indo contigo para Macau, desaparece desta cidade, que é o que me interessa.
Lau-Sin, abraçando o seu velho amigo, exclamou, disposto a sair:
- És um bom amigo e um bom polícia!
- Espera! - disse Vong. - Eu não sou curioso, mas em troca do favor que te faço, peço-te que respondas a uma pergunta.
- Dizei! - exclamou Lau-Sin, pondo-se de reserva.
- E a imagem?
- A imagem... bem vês... não me interessa particularmente e, de resto, ... eu não vim cá à procura dela.
- Meu velho! - disse Vong serenamente. - Todos nós temos um ponto vulnerável: Quando ontem saíste da hospedaria, onde estás instalado, os homens de Chau-Seng, dirigidos pelo bonzo Chan do Templo de Tin-Hau, entraram no teu quarto, remexeram tudo quanto lá tinhas e roubaram a imagem que tu, por mero acaso, tinhas conseguido reaver para o templo de Macau.
- Que dizes? - perguntou Lau-Sin sobressaltado.
- É verdadeiro o que acabo de te contar - disse Vong serenamente.
- Paciência! - exclamou Lau-Sin, procurando disfarçar um abatimento moral que o confrangia. - Serei mais feliz para outra vez!
- Velho amigo Lau-Sin! - disse Vong, dando-se ares de importância. - O teu amigo Vong fez o que te faria se tivesses pedido o seu auxílio, quando aqui chegaste. A imagem está em meu poder, porque os meus homens têm estado de guarda aos teus aposentos. - E, tirando a imagem dum pequeno armário, entregou-a a Lau-Sin, acrescentando: - Tomai esta preciosidade e levai-a para que ela continue guardando, como até aqui, a cidade da Porta da Baía, onde se desfruta paz e onde se vive feliz.
Lau-Sin, com lágrimas nos olhos, abraçava comovido o seu velho amigo e dele recebia a preciosa imagem, dizendo:
- Obrigado! Obrigado! Somos dignos um do outro. Eu serei mais ousado que tu, mas tu és mais previdente que eu.
O Sol começava a nascer e, ao calor dos primeiros raios, abriam os lírios no jardim da Prefeitura.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

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