segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (XIX)

XIX
A Festividade

Terminado o julgamento de Cheng-Cheong-Van, e cumpridas as formalidades da lei, foi entregue ao Superior do Templo de Á-Má a preciosa imagem.
Este veio ao Tribunal Judicial, acompanhado duma comitiva de bonzos, receber o Tesouro e com ele se dirigiu, em procissão, para o Templo da Barra, seguido de imenso povo.
Dois dias depois, à meia-noite, o Templo de Á-Má mostrava-se profusamente iluminado e tudo indicava ser dia de festa.
A escadaria e o pátio estavam apinhados de vendilhões ambulantes que expunham aos olhares cobiçosos dos fiéis, que acorriam ao templo, belas frutas e apetitosos bolos, canjas e chás.
A população fluvial da Colónia quase se encontrava toda em terra com os seus trajes de festa.
Os lenços, bordados e estampados a ouro e a vermelho das tancareiras contrastavam as cuias de cabelos lisos e brilhantes de paufá, de que se orgulhavam as mulheres da cidade.
As cores berrantes das cabaias davam ao ambiente um ar de gala, que não se confundia.
Os homens, em vozearia interminável, indicavam esperar qualquer acontecimento de importância, e a petizada embasbacada mantinha-se a distância, em ar de reserva.
No Templo, no altar central, a preciosa imagem da Deusa Á-Má, expunha-se altiva aos olhares dos fiéis.
Ladeando o altar, filas de altas cadeiras de pau-preto mostravam que se aguardava cerimónia de importância, a que assistiriam pessoas de alta categoria.
No chão, em frente ao altar, um grande incensador emparelhava com uma preciosa pira de bronze onde o fogo votivo era mantido pelo bonzo de serviço que, de momentos a momentos, fazia soar um gongo, colocado à direita do altar, com duas pancadas secas e intervaladas.
No Largo do Pagode, a multidão afastava-se aos gritos dos cúlis e, junto à escadaria, sucediam-se as cadeirinhas e os jerinxás, donde se apeavam algumas autoridades da Colónia e chineses de categoria.
À meia-noite e meia-hora, os bonzos tomavam lugar nas cadeiras colocadas à direita do altar e as autoridades e pessoas de categoria nos assentos da esquerda.
Lau-Sin tinha lugar de honra junto ao Procurador dos Negócios Sínicos, que ocupava o primeiro lugar.
O Superior avançou para o altar, vestido de paramenta festiva, acendeu alguns pivetes, que colocou junto à imagem, ajoelhou, bateu cabeça três vezes e começou um recitativo, que os restantes bonzos repetiam em coro.
Finda a reza inicial, foram apresentados cumprimentos ao Procurador e, seguidamente, Lau-Sin foi convidado a celebrar a cerimónia, que o ritual impunha.
O polícia, ricamente trajado de longa cabaia de brocado, sapatos de seda preta e sola branca e de barretinho de brilhante cetim, ajoelhou junto ao altar, recebeu das mãos do bonzo, mestre de cerimónias, alguns pivetes e, respeitosamente, bateu cabeça, segundo o estilo.
Finda esta ligeira e impressionante cerimónia, entregou cem patacas ao Superior, dinheiro que se destinava aos pobres e, fazendo as vénias da etiqueta, retirou-se para o seu lugar.
Então as autoridades e pessoas de categoria entregaram todas o seu óbolo, aguardando que fosse dado o sinal de que a cerimónia estava terminada.
O gongo começou a soar e, à terceira pancada, o Superior deu por finda a cerimónia religiosa, convidando os seus distintos hóspedes a entrarem na Bonzaria.
Uma longa mesa de pau-preto, com embutidos de madrepérola, encontrava-se coberta de variadas iguarias que todos comeram, bebendo de quando em quando o precioso chá de pétalas de  crisântemo.
Entretanto, no átrio, os bonzos distribuíam esmolas aos pobres, que de toda a cidade acorriam a prestar homenagem à Santa de tanta devoção.
Começou então a ouvir-se o estalejar de intermináveis fiadas de pauchèong, até que o gongo da Bonzaria anunciou estar terminada a festividade.


E, com o decorrer do tempo, foi esquecido o "Caso do Tesouro do Templo de Á-Má", que aqui deixamos revivido, até que volte a ser esquecido... como a quase tudo acontece.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

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