Rua da Felicidade. Macau. Janeiro de 2006
Há, em Macau, uma rua da Felicidade - e, ainda, uma travessa, um beco e um pátio com o mesmo nome -, que, noutros tempos, era a rua dos bordéis. O seu nome em chinês é Fok Long San Kai, ou seja, a Rua Nova da Felicidade Abundante.
Recordo-me da rua, no início dos anos 80, cheia de restaurantes, com as gaiolas, à porta, com serpentes, pangolins e outros animais. Hoje, o seu comércio limita-se a algumas pastelarias chinesas, uma «loja de canjas doce» (como será esta canja doce?), uns restaurantes e bares, e pouco mais.
Mas, entremos nela, com o Wenceslau de Moraes, no ano de 1890:
«Comprida, soffrivelmente estreita, pouco farta de sol. Um renque de casitas iguais de cada lado, baixas, de pobre apparencia, feitas de tijolo negro. Aqui, ali, algumas lojas chinesas, com especialidades colaos, que são os restaurantes desta gente. Fumegam nas caçarolas manjares desconhecidos, que os cozinheiros, sórdidos e quase nús, vão adubando com temperos. Uns migam verduras, outros depenam aves, outros amassam bolos; e no amplo vestibulo expõem-se, n’uma prodigiosa promiscuidade, patos assados e cosidos, patos seccos, porcos, peixes, legumes, hortaliças, mariscos, rans, por vezes ratos, tresandando tudo a bodum. (...) Mas é a população feminina, bem mais do que os janotas, do que os cegos, do que os vendilhões de flores, que formiga na Rua da Felicidade. (...) Vestem cabaias vistosas, usam braceletes e anneis, manilhas de prata nos tornozelos como as escravas. Umas passeiam dando-se as mãos, rindo e conversando, arrastando ruidosamente as grossas alparcas suspensas dos pés nús. Outras penteiam-se, acarminam as faces, mirando-se em espelhinhos reles. Fumam em cachimbos de estanho. Tomam chá. Jogam, acocoradas, as cartas. Dormem sobre esteiras (...)»(1).
Em 1924, o escritor Vicente Blasco Ibáñez (1867-1928), em Vuelta al Mundo de um novelista, descrevia esta Rua da Felicidade como «semelhante às que existem em todos os portos de mar, mas aqui oferece o interesse de serem unicamente chineses os que a frequentam». E, acrescenta: «Compõe-se de casas estreitas, cujo piso baixo é ocupado inteiramente pela porta. Através da sua abertura vê-se uma espécie de vestíbulo com o renque da escada que conduz às habitações superiores, e alguns assentos chineses, ocupados pelas donas e suas amigas. São mulheres de cabeça volumosa, membros delgados e tronco grosso, um nariz tão achatado que apenas se torna visível quando mostram de perfil o seu largo rosto, amarelo com cera. Estas fêmeas maduras, retiradas das pelejas sexuais, fumam grossos cigarros enquanto conversam lentamente. Outras penteiam-se entre elas à luz de uma lâmpada colocada diante dos seus ídolos predilectos. As pensionistas das ditas casas jogam no meio da rua como um colégio em férias (...)»(2).
Por volta de 1941, é com Jaime do Inso (1880 - 1967), em Cenas da Vida de Macau, que percorremos a rua:
«Rua da Felicidade – que fantasia, que irrisão! Fantasia que chega ao ponto de, quando da inauguração da Rua de Macau, na Exposição do Mundo Português, de 1940, a nossa imprensa ter anunciado, como coisa certa e indubitável, que aquela rua reproduzia um trecho da Rua da Felicidade, com os seus clubes (sic) de fan-tan, prédios de vários andares, pagodes, casas de chá e não sabemos que mais fantasias do bom repórter que, por certo, ficará muito admirado se um dia chegar a saber que naquela rua, de estilo tártaro, não há prédios de mais de um andar, clubes nem fan-tan, pagodes ou casas de chá, e que só há a felicidade da desventura de certas pi-pa-t’chai – chamemos-lhe assim – que, por um eufemismo, muito do gosto dos chinas, deram fama à rua, emprestando-lhe este nome tão querido dos chineses e cujo carácter ideográfico se vê espalhado por toda a parte – Fecilidade!»(3).
A Rua da Felicidade fazia parte do chamado Bazar, a cidade chinesa, com a sua confusão de ruas, vielas, becos e pátios, povoada de gente ruidosa. Um contraste com a cidade portuguesa, a cidade cristã, que ficava pelos bairros do Lilau, de São Lourenço, de Santo Agostinho e Santo António: «na parte alta, era o sossego do burgo português, das rótulas, das igrejas e travessas, do ambiente provinciano, duma grandeza decaída com a perda do antigo comércio e navegação», escreve Jaime do Inso . Em baixo, no Bazar, «o formigar estonteante da vida chinesa, com o colorido inimitável dos seus caracteres ao vento, as suas lojas escancaradas, como montras, com tudo à venda, as cozinhas pelas ruas a abarrotar de arroz, sopa de fitas, peixe, molhos esquisitos para o nosso paladar, carne em bocadinhos, hortaliças, etc., tudo como em picados para bonecos, que se comem levados à boca com dois fai-t'chi - era a música dos cou-laus e o cantar dolente das pi-pa-t'chai»(4).
Recordo-me da rua, no início dos anos 80, cheia de restaurantes, com as gaiolas, à porta, com serpentes, pangolins e outros animais. Hoje, o seu comércio limita-se a algumas pastelarias chinesas, uma «loja de canjas doce» (como será esta canja doce?), uns restaurantes e bares, e pouco mais.
Mas, entremos nela, com o Wenceslau de Moraes, no ano de 1890:
«Comprida, soffrivelmente estreita, pouco farta de sol. Um renque de casitas iguais de cada lado, baixas, de pobre apparencia, feitas de tijolo negro. Aqui, ali, algumas lojas chinesas, com especialidades colaos, que são os restaurantes desta gente. Fumegam nas caçarolas manjares desconhecidos, que os cozinheiros, sórdidos e quase nús, vão adubando com temperos. Uns migam verduras, outros depenam aves, outros amassam bolos; e no amplo vestibulo expõem-se, n’uma prodigiosa promiscuidade, patos assados e cosidos, patos seccos, porcos, peixes, legumes, hortaliças, mariscos, rans, por vezes ratos, tresandando tudo a bodum. (...) Mas é a população feminina, bem mais do que os janotas, do que os cegos, do que os vendilhões de flores, que formiga na Rua da Felicidade. (...) Vestem cabaias vistosas, usam braceletes e anneis, manilhas de prata nos tornozelos como as escravas. Umas passeiam dando-se as mãos, rindo e conversando, arrastando ruidosamente as grossas alparcas suspensas dos pés nús. Outras penteiam-se, acarminam as faces, mirando-se em espelhinhos reles. Fumam em cachimbos de estanho. Tomam chá. Jogam, acocoradas, as cartas. Dormem sobre esteiras (...)»(1).
Em 1924, o escritor Vicente Blasco Ibáñez (1867-1928), em Vuelta al Mundo de um novelista, descrevia esta Rua da Felicidade como «semelhante às que existem em todos os portos de mar, mas aqui oferece o interesse de serem unicamente chineses os que a frequentam». E, acrescenta: «Compõe-se de casas estreitas, cujo piso baixo é ocupado inteiramente pela porta. Através da sua abertura vê-se uma espécie de vestíbulo com o renque da escada que conduz às habitações superiores, e alguns assentos chineses, ocupados pelas donas e suas amigas. São mulheres de cabeça volumosa, membros delgados e tronco grosso, um nariz tão achatado que apenas se torna visível quando mostram de perfil o seu largo rosto, amarelo com cera. Estas fêmeas maduras, retiradas das pelejas sexuais, fumam grossos cigarros enquanto conversam lentamente. Outras penteiam-se entre elas à luz de uma lâmpada colocada diante dos seus ídolos predilectos. As pensionistas das ditas casas jogam no meio da rua como um colégio em férias (...)»(2).
Por volta de 1941, é com Jaime do Inso (1880 - 1967), em Cenas da Vida de Macau, que percorremos a rua:
«Rua da Felicidade – que fantasia, que irrisão! Fantasia que chega ao ponto de, quando da inauguração da Rua de Macau, na Exposição do Mundo Português, de 1940, a nossa imprensa ter anunciado, como coisa certa e indubitável, que aquela rua reproduzia um trecho da Rua da Felicidade, com os seus clubes (sic) de fan-tan, prédios de vários andares, pagodes, casas de chá e não sabemos que mais fantasias do bom repórter que, por certo, ficará muito admirado se um dia chegar a saber que naquela rua, de estilo tártaro, não há prédios de mais de um andar, clubes nem fan-tan, pagodes ou casas de chá, e que só há a felicidade da desventura de certas pi-pa-t’chai – chamemos-lhe assim – que, por um eufemismo, muito do gosto dos chinas, deram fama à rua, emprestando-lhe este nome tão querido dos chineses e cujo carácter ideográfico se vê espalhado por toda a parte – Fecilidade!»(3).
A Rua da Felicidade fazia parte do chamado Bazar, a cidade chinesa, com a sua confusão de ruas, vielas, becos e pátios, povoada de gente ruidosa. Um contraste com a cidade portuguesa, a cidade cristã, que ficava pelos bairros do Lilau, de São Lourenço, de Santo Agostinho e Santo António: «na parte alta, era o sossego do burgo português, das rótulas, das igrejas e travessas, do ambiente provinciano, duma grandeza decaída com a perda do antigo comércio e navegação», escreve Jaime do Inso . Em baixo, no Bazar, «o formigar estonteante da vida chinesa, com o colorido inimitável dos seus caracteres ao vento, as suas lojas escancaradas, como montras, com tudo à venda, as cozinhas pelas ruas a abarrotar de arroz, sopa de fitas, peixe, molhos esquisitos para o nosso paladar, carne em bocadinhos, hortaliças, etc., tudo como em picados para bonecos, que se comem levados à boca com dois fai-t'chi - era a música dos cou-laus e o cantar dolente das pi-pa-t'chai»(4).
(1) Wenceslau de Moraes. «Na Rua». Traços do Extremo Oriente. Lisboa. Livraria Barateira. 2ª ed. 1946.
(2) citado por P. Manuel Teixeira. Topononímia de Macau. Vol. 1. Instituto Cultural de Macau, 1997.
(3) e (4) Jaime do Inso. Cenas da Vida de Macau. Instituto Cultural de Macau. 1997.
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