«A Rua da Praia Grande era a artéria chique, onde residia a gente mais abastada do tempo. Ao cair da tarde, os dandies percorriam-na, caracolando os seus alazões ou a pé, até ao Passeio Público que era o Jardim de S. Francisco, na época, um jardim fechado e muito frondoso, cumprimentando e derriçando as donzelas que vinham de cadeirinha, acompanhadas dos papás circunspectos ou da inevitável chaperone. Ao lusco-fusco, assistia-se ao acender dos candeeiros de petróleo públicos que o encarregado fazia, subindo por uma escada que arrastava consigo, às costas. Nos dias em que a banda do regimento tocava no coreto de S. Francisco, a música chegava claramente até à varanda, à mistura com os pregões tristes dos vendilhões de canja e sopa de fitas e dos achares chineses.
Nas águas da baía, agitava-se o mundo flutuante dos juncos, das lorchas, das sampanas e dos tancares. Escutava-se a cada passo, o estralejar dos panchões, havia sempre o sonido dos gongos e o carpir duma flauta, o murmúrio dos rezos votivos para qualquer morto, perdido no mar.
Às nove horas da noite, depois do toque das almas e dos clarins de recolher do quartel, a cidade começava a dormir. A Praia Grande esvaziava-se e ficavam só os embalos do mar de encontro às pedras da muralha, o sussurro das árvores de pagode, ao sopro da viração (...)».
Henrique de Senna Fernandes, «Uma Pesca ao Largo de Macau», in Nam Van, 1997
__________________
(1) O «Palácio das Repartições», construído em 1872-74 e demolido em 1946, integrava o conjunto dos edifícios públicos situados na Praia Grande.
Sem comentários:
Enviar um comentário