Momentânea paralisação do comércio em Cantão (3ª parte)
(...)
"Os estrangeiros eram, na generalidade, designados pelos chineses por "Hong-mou-kuâi", diabos de cabelos vermelhos, sendo tal designação sido primeiramente aplicada aos holandeses, ou "fán-kuâi" (diabos estrangeiros); os parses, por trazerem o cabelo à escovinha, chamavam-nos "pák-t'au kuâi" (diabos de cabeça branca); aos moiros mó-ló kuâi (diabos mó-ló, corrupção da palavra portuguesa "mouro"); aos portugueses "sai-ieóng kuâi" (diabos do oceano ocidental, pois que assim eram conhecidos desde o século XVI) e aos macaenses "ou-mun kuâi" (diabos de Macau).
Um jurubaça ou língua (intérprete) nativo era, de vez em quando, enviado pelas autoridades chinesas às feitorias para lhes lembrar que estavam ainda em pleno vigor as oito estipulações elaboradas no ano de 1760 para regulamentar a estadia dos estrangeiros em Cantão, as quais foram confirmadas por um édito, em 1819, pelo imperador Hong-Hei, depois de revistas em 1810 (....)"
"Destas restrições, a mais dura de sofrer era a absoluta privação da companhia das mulheres e filhas, chegando alguns, que por motivo dos seus negócios ou de serviço se não podiam ausentar-se de Cantão, a viverem seis ou sete anos sem verem uma mulher europeia. Para obviar esse inconveniente, os chefes das firmas estrangeiras possuíam em Macau apalaçadas residências, onde viviam as suas famílias, para junto das quais regressavam, anualmente, em Abril, demorando-se até Outubro."
"Exercia o cargo de sobrecarga da majestática Companhia Britânica das Índias Orientais, sir William Baynes, homem de muito pundonor e de certa excentricidade que andava irritado com as restrições impostas pelas autoridades chinesas e, como não era permitido aos estrangeiros, fosse qual fosse a sua categoria, andar de cadeirinha, não hesitou em proibir os importantes negociantes dos Hongs de entrarem de cadeirinha na feitoria inglesa."
"Mas já antes resolvera reptar as proibições chinesas hospedando na sua residência, na feitoria britânica, a mulher e a sobrinha de Abiel Abbot Low, que foi presidente da Câmara do Comércio de Nova York, sendo, então, o chefe da firma Russell & Co., da qual era um dos sócios o seu tio, William H. Low, que chegara de Salem, em Setembro de 1829, no barco "Sumatra" do comando do capitão Roundy."
"O vice-rei de Cantão, ferido na sua dignidade, pelo atrevimento do ousado e arrogante estrangeiro que ousara violar a lei, determinou a imediata expulsão das duas senhoras, mas sir William Baynes, cavalheiresca mas odburantemente, recusou-se a ceder perante tal imposição. Para dar uma lição, o vie-rei ordenou a suspensão total do comércio com os estrangeiros, sem se importar com os tremendos prejuízos económicos que adviriam duma tal medida que privaria inúmeros chineses do seu meio de vida. O capricho de sir William Baynes, capricho muito caro, durou seis meses e originou também não poucos prejuízos para todas as firmas estrangeiras de Cantão."
"Ora a sobrinha de Abiel Abbot Low chamava-se Harriet Low*, que deixou publicado um volume de memórias da sua estadia em Macau, onde viveu, na residência do dono da firma Russell & Co., que a ajuizar-se pela descrição feita pela autora, deveria ter sido uma esplêndida videnda, edificada no Largo da Sé, do outro lado da Travessa de S. João, oposto à catedral."
"Pelo retrato a óleo que Chinnery dela fez, deve ser bem fiel como todos os trabalhos saídos das mãos deste notável pintor inglês, e por alguns excertos do seu livro de memórias que nos foi dado a ler, parece que deveria ter sido uma rapariga muito atraente, pela sua beleza e frescura da sua juventude, atirada às letras, posto que sem grande cultura e quiçá até um tanto presumidazinha, mas encantando com a volubilidade da sua interessante conversa."
Luís Gonzaga Gomes. "Momentânea paralisação do comércio em Cantão". in Páginas da História de Macau. Instituto Internacional de Macau, Setembro de 2010.
Imagens: Rise & Fall of the Canton Trade System. MIT. Visualizing Cultures.
* Harriet Low (1809-1877) chegou a Macau em Setembro de 1929 onde permaneceu até Novembro de 1833 na companhia da sua tia Abigail Knapp Low, esposa de William Henry Low. Durante a sua estadia em Macau redigiu vários diários e missivas que, posteriormente, em 1900, seriam publicados pela sua filha Catherine Hillard com o título My mother's journal. A young lady's diary of five years spent in Manila, Macao, and the Cape of Good Hope from 1829-1834. Uma segunda versão foi editada em 1953 por uma das suas netas, Elma Loines, com o título The China trade post-bag of the Seth Low family of Salem and New York.
No seu diário relata a visita a Cantão, em Novembro de 1830, "violando, portanto, as leis dos chineses; mas garanto-te que não é possível nenhuma comparação entre os chineses e qualquer outra nação do mundo. Eles não permitem qualquer inovação no "velho costume" e ferroarão estas duas palavras nos teus ouvidos para sempre, se não for do seu interesse violá-las, o que, então, será coisa diferente... Toda agente aconselhou o tio (W.H. Low. chefe da Russell & Co.) a fazer a experiência de levar-nos a Cantão, e eles foram muito astuciosos e sabiam qual o ponto fraco que deveriam ferir - a suspensão do comércio com uma casa... No nosso regresso, Macau pareceu mais encantadora do que nunca (...)". Em Março do ano seguinte recebem ordens do governador de Macau para a abandonarem o território. "Diz ele que não recorrerá à força para nos expulsar, mas, garanto-te, que não é agradável ser ameaçada de mudar de um lugar para outro (...) Ele (o governador) escreveu para Lisboa; mas provavelmente deverão levar três anos para receber a resposta. Julgo que, então, já estaremos preparados para regressar à nossa terra". in Páginas da História de Macau. Instituto Internacional de Macau, Setembro de 2010.
1 comentário:
Mesmo sendo brasileiro me sinto ligado a Macau de algum modo senti algo estranho quando assisti a entrega da cidade aos chineses em 1999, gostei do post bom trabalho.
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