Coloane por Maria Ondina Braga
Perto, a construção de um aeroporto cósmico. Montanhas de cimento, ferro, maquinaria, onde antigamente baloiçavam sampanas de tecto de esteira. Mais uma veloz e irreverente via de avizinhamento da civilização ocidental com o Dragão do Centro? Destarte, cedo haviam ali de aterrar estranhos seres sem tradições, o corpo químico, a dissonância da língua, a febre, senão a fobia do futuro. Forasteiros, enfim, que tanto podiam ser moradores de Marte como puros investigadores das secretas por vezes sinistras seitas orientais. E por que não adeptos dos milenários e místicos caminhos dos monges tao-shi, o seu viver com os pinheiros e os cedros de desprezo pelo mundo? Além de outra variedade de visitantes, estes mais concretos, munidos de memorandos, de cadernos para escrever crónicas, comentários, encómios, críticas até a um Macau todo forte, fácil, florescente.
Essa a meditação a que eu me entregava, naquele domingo, durante o passeio a Coloane de autocarro. A primeira vez que ia a Coloane sem sulcar o rio. Uma vaga nostalgia da lancha baloiçante: "proibido escupir e deitar muco nasal", o apito da largada, correntes e cabos a ranger, lento o marulho das águas lodosas. A nostalgia da lancha e a surpresa da ponte. Fina como um pente de marfim, a ponte agora alia a pentear os cabelos da chuva. A chuva há uma vintena de anos. O meu rosto erguido e alagado. A chuva no meu rosto tal, segundo a canção cantonense, nas folhas nobres das palmeiras. Eu ironicamente a interrogar-me se seria chuva, se seria choro.
Meditação, confesso, cúmplice do medo. Como seria Coloane nos dias de hoje? Medo de não reconhecer Coloane, de não vir a encontrar lá nenhuma recordação. Concentrava-me. Esforçava-me por confirmar nos meandros da memória a paisagem de outrora. "Ah, Coloane outra coisa!", tinham-me dito. "Muitas obras, um grande incremento..." Medo e pena par-a-par. Pena daqueles que, ao descer no aeroporto, nada já para eles da alma de Coloane? Com certeza. Mas pena de mim, sobretudo. Do desfazer não somente dos laços do meu idealismo mas também dos lances dos meus livros.
O maximbombo, que quase voara nos braços da ponte, afrouxou a marcha. Estamos a chegar - avisou alguém. A lancha levava duas horas, na maré baixa. De regresso a Macau, frequente ficarmos a meio da viagem, pela noite. Frequente nós ali à espera que os espíritos do rio cumprissem os seus ritos, quiçá as suas rezas à Deusa da Lua.
Se ao menos o pagode... cogitava eu. O pagode, esse impossível ter passado porque aí o centro da Grande Demora. O pagode e, ao longo do molhe, troncos caprichosamente contorcidos e raízes ao vento, as árvores-de-pagode. Entidades celestes, quando não satânicas, as árvores. Isto é, imortais. E respirei fundo. Logo à entrada da ilha, o Olho do Céu sobre o ombro da Terra no templo budista. Que as árvores, essas uma procissão de penitentes ilha adentro. Árvores de cujas fibras um bonzo fabricara a primeira folha de papel na época Sung: o primeiro papel-moeda de promessa ao Omnipotente?
E segui para o interior.
A chuva ia escampando. O pagode. O ficus. Os símbolos sagrados. Prosseguia. Parava de onde em onde a pensar, a perscrutar. Prédios modernos, demolições, mudanças. Lembro-me de, por estes sítios, haver uma praceta com um poço e de, ao redor do poço, crescer uma erva que os chineses usavam para os vaticínios. Um poço que estancara, contava-se, aquando da ocorrência de um cometa: de comprida, a cauda do cometa causando uma queda de estrelas que queimara a nascente. Bonita a lenda do poço. Será que ainda cá alguém fiel a tão fabulosa efeméride? Presentemente, que pena, nem poço nem praceta. E o che-pu, esse mágico e urgente vegetal das cinquenta-varas-da-adivinhação? Que seria feito do che-pu? Diferente, sem dúvida, o traço de algumas ruas e de algumas casas. E talvez as artes do comércio e da pesca, e até certos costumes. Tudo mudado, no final de contas? Não. Tudo, não. Aqui, por exemplo, por estas travessas, por estas ruelas, gatos à porta das lojas de peixe seco, ovos podres, couve salgada. Aqui, velhos e moços, mulheres e crianças iguais aos de há vinte e cinco anos. E soltei um suspiro de alívio. O homem. Era o homem. E eu tão imperdoavelmente a esquecê-lo em Coloane. Uma vontade de pedir desculpa àquela gente. Mal-grado o tempo, as intempéries, e a minha distracção, imutável, o homem. As feições, a figura, o fôlego do homem. Tirava-o pelas falas. Tirava-o pelos silêncios. E assim as mesmas moscas a enxamear o peixe que o homem pescava e secava e curava. E o mesmo cheiro a sal, a sutate, a incenso.
Já entretanto a viração varrera os ares e para lá do molhe as águas se alisavam quando, compensada por esse encontro em Coloane (o encontro com a criatura?, o encontro comigo?) eu agora a sondar o oceano. Tudo com dantes? Sim, creio que sim. Tudo como dantes, a não ser... A não ser o quê? Não sabia explicar. Qualquer coisa longe, na líquida largueza. Mas que coisa? Cismava. E nisto, como um aviso, uma gaivota a levantar voo na ponta do paredão, e eu a ver, ou antes, a visionar... A ver o quê? Ora, as velas! Rectangulares, remendadas, verde-lodo, cor de tabaco, pretas, as velas dos juncos que, ao entardecer, se tornavam gigantescas borboletas nocturnas. Aonde agora essas enormes e negras falenas a cortar os ares ao escurecer?
Na paragem do autocarro de volta a Macau, novamente o templo budista. Entrei. Lá dentro dois jovens chineses, bem apessoados, a bater cabeça, a queimar pivetes, a tocar o sino-de-chamar-o-Buda - e depois curvados diante do bonzo para este lhes ler as linhas das mãos.
Antes de deixar Coloane escrevi um postal à Regina Louro que aí vivera na década de setenta. A modesta pensãozinha onde ela então se hospedara ainda lá disponível, quem sabe? De qualquer modo, o pagode. O pagode, as veneráveis árvores, e o homem: a face, a fé, o fatalismo do homem. Da falta das velas nos barcos de peito-de-pato e popa alta, nem pagava a pena falar. Uma saudade que, no entanto, eu traria comigo, a dessas visões vagabundas, dessas bandeiras dos ventos, ao anoitecer.
Maria Ondina Braga. "Coloane". Passagem do Cabo. Editorial Caminho, 1994
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