Calçada Central de São Lázaro. 1945
Praça de Lobo d'Ávila, na Praia Grande, 1945
Rua da Prata, 1945
Capela de São Tiago, 1945
George Smirnoff. Porto Seguro. Museu de Arte de Macau
"(...)
- Cem anos depois do inglês George Chinnery, veio parar a Macau um russo chamado George Smirnoff, George Vitalievitch Smirnoff. Nascido em Vladivostok em 1903, fugiu com a mãe para a Manchúria, aos doze anos de idade, para escapar à revolução que destruiria a Rússia dos czares. Veio a guerra sino-japonesa, iniciada, como sabe, com a invasão nipónica da Manchúria, e George Smirnoff refugiou-se no norte da China. Aí pintou as suas primeiras aguarelas. Mas as tropas japonesas avançavam e ele fugiu para Hong Kong. Em 1941 os japoneses ocuparam Hong Kong e o pobre russo escapou-se para Macau. Meu pai, que o conheceu bem, dizia-me que ele era uma figura triste, solitária. Para sobreviver dava lições de desenho e aguarela. Produziu uma enorme colecção de aguarelas, que estão hoje quase todas no museu Luís de Camões. Não há recanto de Macau daqueles tempos que George Smirnoff não tivesse pintado. Trabalhava febrilmente. Depois da guerra, em 1947, lançou-se duma janela alta para a rua. Contava apenas quarenta e quatro anos.
- Esse salto foi o seu último refúgio - comentei.
Alberto Kuan concordou gravemente:
- Bem se pode dizer que foi. George Smirnoff tinha uma solidão gelada dentro dele, a solidão do desterrado. Minha filha diz que os russos têm uma sensibilidade especial e sofrem mais do que a outra gente quando longe do seu país. Smirnoff sofria decerto mais agudamente ainda, porque era artista, um artista faminto. A suacvida aqui foi de solidão e de fome. A fome dele amansou-a algumas vezes meu pai com umas tigelas de arroz. Como lhe disse, meu pai conhecia-o bem e chegaram a ser amigos. Meu pai fazia sabão, um sabão grosseiro, e vendia-o de porta em porta. Nunca me contou como nasceu a amizade com o russo, mas ela existiu e foi sólida. Um dia, George Smirnoff presenteou meu pai com uma aguarela, confidenciando-lhe que era o seu trabalho mais conseguido. Meu pai guardou-a sem ligar muito, pois era um pobre chinês sem luzes e nada percebia de arte. Uma semana depois o russo atirou-se da janela. A partir daí meu pai sentiu um respeito muito grande pela aguarela. Em criança surpreendi-o mais de uma vez ajoelhado diante dela, batendo cabeça, como aqui se diz, que é o mesmo que curvar-se perante imagens sagradas. À hora da morte recomendou-me que nunca me desfizesse daquela aguarela, porque era o grito dum amigo do peito. Ele disse mesmo assim: "o grito". Vou mostrar-lhe agora a aguarela de George Smirnoff.
O meu anfitrião ausentou-se e voltou pouco depois. Estendeu-me com extremos cuidados uma aguarela. Também eu, com extremos cuidados, lhe peguei.
Era uma ruela de casas sórdidas, feita de pinceladas sombrias. As janelas eram avermelhadas, como se dentro lavrassem incêndios. Da janela mais alta precipitava-se um corpo de fumo, esguio, de braços abertos, como se pretendesse voar, ideia transmitida de forma tão sugestiva que cortava a respiração. Mas o mais impressionante era a cabeça. Destacava-se, desgrenhada, desmesuradamente grande, e os olhos arregalados pareciam entranhar-se avidamente nos meus.
- Como se em mim vissem a Rússia... - surpreendi-me a murmurar.
- George Smirnoff pintou esta aguarela poucos dias antes do suícidio, pelo que bem pode dizer-se que antecipou artisticamente, com o pincel, a sua própria morte - disse Alberto Kuan. - Os museus e os coleccionadores particulares desconhecem a existência duma tal relíquia. Porque é uma relíquia... Por dinheiro nenhum a venderia, fosse a quem fosse. Quando eu morrer, ficará para minha filha, que é uma rapariga sensata e - aiá!... - sabe mais de pintura do que eu e tem mesmo uma certa habilidade para o desenho (...)"
Altino do Tojal. "Derradeiro Refúgio", in Histórias de Macau. Editora Novosmeios, 1991
Pátio da casa onde residiu George Smirnoff na Rua da Prata. 1945.
Em Macau, tal como muitos outros refugiados, Smirnoff permaneceu alojado no Hotel Bela Vista até se estabelecer na Rua (Pátio ?) das Seis Casas, mudando-se, depois, para a Rua da Prata, "rua que o artista pintaria em duas aguarelas e um pátio, o seu próprio". Com formação em Arquitectura, Smirnoff era exímio no desenho e as suas pinturas, sobretudo de edifícios e igrejas de Macau, retratam o ambiente da cidade nos anos 40 do século passado. Foi seu patrono o Dr. Pedro Lobo, líder da comunidade portuguesa e grande mecenas das artes, que lhe encomendou várias pinturas, que foram depois doadas à Secção Artística e Etnográfica do Museu Comercial e Etnográfico de Macau (que mais tarde, em 1960, passa a designar-se Museu Luís de Camões).
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