Ponte-cais de Coloane. Anos 60 do século XX
Ká Hó, Coloane. Anos 60 do século XX
Povoação de Ká-Hó, Coloane. Cerca de 1970
Fotografias de Lei Chiu Vang, do álbum Visita ao Passado
Coloane nos anos cinquenta do século passado. Eis uma crónica de Ninélio Barreia sobre uma viagem pela ilha, entre a Vila de Coloane e a povoação de Ká Ho.
"(...) De passagem para Coloane. Aqui, esperando a chegada dos barcos, estacionavam num terreiro fronteiro ao cais, velhos carros de passageiros que nos transportavam até às praias de Hac-Sá, Choc-Van ou Ká-Hó onde, iríamos, finalmente, encontrar as tão desejadas águas tépidas e acariciadoras em que nos banhávamos com sofreguidão.
Mas, para alcançar essas almejadas praias, tínhamos de sofrer o martírio duma viagem tremendamente incómoda naqueles velhos "machimbombos".
Uma dessas atribuladas viagens, em que foram inúmeros os incómodos, inspirou-me uma crónica que transmiti no Rádio Clube de Macau, crónica que viria, posteriormente, a provocar uma justificação da empresa rodoviária e que, até certo ponto, foi útil, porquanto vieram depois a ser tomadas medidas tendentes a evitar os transtornos apontados.
A encerrar este capítulo, aproveito para a transcrever, salientando que essa crónica se subordinava ao tema (quase sempre humorístico) "Coisas que podem acontecer... aqui".
Não sei se o ouvinte já teve como eu a infeliz ideia de fazer a viagem Coloane-Ká Hó, numa "caranguejola" a que teimam em chamar autocarro e ao qual ficaria melhor o nome de carroça.
Aconteceu que numa manhã de temporal as minhas obrigações de serviço me levaram à povoação de Ká-Hó, naquela ilha.
Já indisposto pelos balanços da lancha, foi assim que entrei para a velha carripana que nos aguardava e onde se encontravam também meia dúzia de sacas de arroz já amontoadas ao longo de toda a coxia central. Como é sabido, estes veículos têm a particularidade de a entrada e a saída se fazerem pela mesma porta, a do lado do fundo. Os bancos de madeira, cuja cor se torna difícil distinguir, tal a amálgama de poeiras e de outras sujidades acumuladas - situam-se ao través, deixando entre eles apenas uma estreita passagem.
Após um autêntico exercício de alpinismo por sobre a sacaria empilhada consegui ainda alcançar um lugar sentado. Soou o apito e a carripana pôs-se em movimento.
E já me preparava para me deleitar com o encanto da paisagem que iria desfrutar quando, cem metros decorridos, avistei um grupo de passageiros que ali aguardava a sua vez de entrar. Com eles vinham ainda as malas, os cestos, as alcofas, as redes e as sacas. E até um porco numa gaiola de bambu!
Numa algaraviada altissonante, aquele grupo furava, espremia-se, empurrava e machucava-se para tentar obter um lugar na carripana, onde a lotação parecia ilimitada. O porco grunhia (reivindicando, talvez, os seus direitos), os homens lutavam, as mulheres gritavam e eu... aguardava, pacientemente.
Afinal tudo entrou, até o porco. Passou a ser meu companheiro de viagem, mesmo por cima do assento da frente, junto à janela.
Mas, ou por causa do mau piso da estrada ou das molas da carripana, os solavancos começaram. Os passageiros - pescadores chineses, velhas, crianças e bagagens - amontoavam-se e comprimiam-se para conseguirem caber num espaço tão reduzido.
(...)
A meu lado sentara-se uma velha chinesa com uma criança às costas e, a cada solavanco, éramos atirados um de encontro ao outro; a criança berrava, a velha barafustava. Só o porco se conservava mudo e quedo. Cheguei a ter inveja dele, porque de todos os passageiros era o único bem instalado e, ainda por cima, com melhor vista panorâmica!.
(...)
Tento descortinar algo da estrada, na expectativa vã de apreciar a paisagem. Mas só consigo ver alguma coisa por entre as orelhas do porco.
Sucedem-se as curvas e contracurvas, as subidas e descidas, numa rapidez que causa vertigens (rapidez nas descidas, claro). A estrada é tão estreita que, dificilmente, alguém poderá passar junto à carripana. À esquerda, as encostas íngremes pejadas de rochedos, à direita, a costa escarpada a pique sobre o mar. A cada volta da estrada um calafrio, a cada descida mil suspiros de emoção.
Sinto o corpo moído sobre o assento rijo de madeira, sem almofadas. A estrada acidentada e esburacada faz-nos saltar sobre o banco duro ou atirar-nos contra o vizinho; a bagagem desequilibra-se e cai de onde a onde sobre nós. Os passageiros barafustam, a criança chora, a velha geme, o porco grunhe. Chegaremos ao fim desta viagem?
Uma subida tão estreita e tão íngreme, que dir-se-ia o caminho para o céu, surge bruscamente à nossa frente. A caminho do céu vamos nós - pensei - se a carripana se desvia dez centímetros que sejam. A estrada é, de facto, tão estreita que nada mais ali pode passar.
Lá no fundo, roçagando penhascos e rochedos tenebrosos o mar, aquele mar tremendamente calmo.
Estamos quase a alcançar o ponto mais alto da ilha. O motorista executa todas as manobras possíveis para tirar do motor o rendimento necessário; por instantes pára e de novo arranca, num esforço supremo. O carro vence, enfim, a subida.
Agora entramos num declive em curvas e contracurvas. Mais solavancos, mais encontrões, mais saltos sobre o assento e arremetidas contra a velha. A estrada volta a estreitar; quase roçamos pela parede, Galhos de árvore são arrancados à passagem até que, finalmente, entramos na recta que vai direita a Ká-Hó.
Respiramos, enfim, aliviados. Toda a gente fala agora alegremente. O porco, esse, vai calado.
A carripana parou. Estamos na povoação, na zona da praia. Sai toda a gente. E o porco também, meu desventurado companheiro de viagem. Viagem atribulada que espero não ter de voltar a fazer nestes tempos mais próximos. O que valeu foi o tão desejado banho de mar; só por ele mereceu a pena este sacrifício.
Fico-me pela praia. O porco seguiu o seu destino. Só que ele é o único que não vai amanhã protestar nas colunas do jornal da terra."
Ninélio Barreira. "Um Passeio às Ilhas". in Ou-Mun. Coisas e Tipos de Macau. ICM, 1994
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