terça-feira, 3 de julho de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (XII)

XII
Uma entrevista perigosa

Numa ampla sala do Hotel "Tai-Tong", situado na avenida perpendicular à extremidade Leste da Avenida Marginal, grande era o número de convivas que desfrutavam os prazeres e o encanto dum "Fá-Téang".
A um canto, a orquestra enchia o ar de harmonias estranhas e as cantoras sucediam-se, umas após outras, trajadas de seda de cores discretas, lançando no espaço suas vozes guturais, sempre encobrindo parcialmente os rostos com o tradicional leque da etiqueta.
As mesas de jogo tinham acabado de ser abandonadas pelos jogadores que desemperravam o tronco entorpecido espreguiçando-se junto às janelas, para inspirarem profundamente o ar puro e fresco do exterior.
Os criados colocavam sobre a mesa central uma grande tábua redonda e, sobre esta, eram colocadas tigelas e pequenos pratos, recipientes com mostarda e "sutate", etc., o que indicava que a ceia seria brevemente servida.
Na cama de ópio, colocada mesmo à entrada, dois homens conversavam e fumavam, como que alheios a tudo o que se passava.
Um era corpulento e de aspecto decidido, e o outro era pequeno de corpo, tendo, porém, no olhar uma certa firmeza penetrante, que feria e indispunha.
Já as primeiras toalhas molhadas tinham sido distribuídas aos convivas que, num à vontade extremo, limpavam a cara, não esquecendo as mais recônditas cavidades dos ouvidos, quando à porta assomaram  dois homens, que outros não eram que Lau-Sin, em admirável disfarce, e o seu companheiro.
Este, num rápido golpe de vista, deu com os olhos na cama de ópio e, fazendo sinal ao polícia, para lá se dirigiu.
Deitados estavam e deitados ficaram os dois fumadores, como se ninguém se tivesse aproximado, até que o companheiro de Lau-Sin, dirigindo-s ao mais pequeno de corpo, disse:
- Tomei a ousadia de vir até aqui para te apresentar o Sr. Kuan, que deseja falar-te sobre assunto de importância.
Deixando de fumar, o homem, de físico acanhado, cravou um olhar profundo no desconhecido e exclamou:
- Eu sou Chau-Seng! O seu nobre nome?
Lau-Sin, fazendo uma vénia respeitosa, murmurou com ar acanhado:
- Talvez seja ousadia minha levantar os olhos para ti, que tão poderoso és, porém, assunto de muito interesse trouxe-me até esta cidade e espero que não levarás a mal este meu procedimento. O meu humilde apelido é Kuan e tenho moradia no distante e rico distrito de Hèong-San.
Chau-Seng, imóvel, sempre fitando o seu interlocutor, fez sinal ao seu companheiro para que abandonasse a cama de ópio e exclamou:
- Toma lugar. Cearás comigo e, depois da ceia, conversaremos.
Momentos depois, a ceia era servida.
Ligeiras impressões foram trocadas entre o polícia e o pirata, durante o decorrer da refeição.
À mesa redonda, Chau-Seng tomou o lugar que ficava de costas para a porta de entrada e deu a Lau-Sin aquele que, enfrentando-a, lhe era oposto.
Segundo a ordem da importância dos convidados, assim foram distribuídos os lugares, sendo os de menor representação os que estavam à direita e à esquerda do ofertante.
Os convivas serviram-se dos aperitivos que constavam de pernas de rã fitas e fígados e moelas de pato com olhos de bambu.
E feita a primeira saúde com o precioso vinho de orvalho de rosas, segui-se a tradicional sopa de barbatanas de tubarão com coral de caranguejo.
Mal tinham sido retiradas as tigelas, onde tinha sido servida a sopa, foi colocada no meio da mesa uma travessa de galinha com nozes. Ao delicado prato seguiu-se um apurado caldo de cogumelos. Grandes camarões fritos, com molho de tomate, fizeram, então, as delícias dos convidados. Uma galinha assada, de pele tostada, veio ocupar o lugar da vazia travessa dos camarões e, devorada num abrir e fechar de olhos, viu-se substituída por engrossada sopa de milho, com galinha picada.
Então, em descomunal travessa, apareceu a apreciada garoupa com molho doce e ácido, prato que foi seguido de um caldo de búzios com pato-verde. Para finalizar a primeira parte da ceia, foi então servido o delicado prato de awabi com molho de ostras.
Após uma pequena pausa, foi servido o doce de sementes de lótus e creme de amêndoas.
Para finalizar veio, então, para a mesa o arroz branco, chouriço, ovos salgados e peixe salgado.
E, com a chávena de chá da tradição, deu-se por terminada a refeição.
Lau-Sin e Chau-Seng afastaram-se então para uma saleta contígua à sala da ceia, e entre eles travou-se a seguinte conversa:
- Julgo - disse Chau-Seng - que só um assunto de muita importância poderia trazer-te à minha presença e, confesso, estou com certo interesse de saber a que vens.
Lau-Sin, aparentando acanhamento, respondeu:
- É de meu único interesse o assunto que aqui me traz e tu poderás auxiliar-me, para o que darei o que julgares bastante para pagar a tua informação.
- Diz! - exclamou o pirata cravando no polícia um olhar fixo e incomodativo.
- Sou rico - continuou Lau Sin - mas, não julgues que desta declaração poderás tirar qualquer partido, porque não me dotou o Céu de descendência, e todos aqueles, que poderiam fazer por mim qualquer sacrifício, já não se contam entre os vivos. Qualquer tentativa tua, portanto, para me deter em teu poder, aguardando resgate, não seria de resultado vantajoso, porque só eu poderia dispor do que é meu e, crê-me, quando vim procurar-te vim determinado a encarar o pior. É portanto de vantagem para ti aceitar o que te ofereço porque, de mim, nada mais levarás.
Chau-Seng, encarando o seu interlocutor com olhar desconfiado, disse:
- Vejo que estás acostumado a tratar com homens da minha espécie mas ... não percamos tempo e continua.
Lau-Sin, então, falou assim:
- Há meses, na cidade que os Portugueses têm à porta da baía, foi roubada do Templo de A-Má a imagem da Deusa do Céu e eu, que tenciono acabar meus dias na Bonzaria do Templo, gostaria de actuar de modo a poder restituir-lhe a imagem roubada. Sei que esta se encontra no Templo de Tin-Hau desta cidade e estou disposto a dar-te por ela o que pedires.
Chau-Seng permaneceu calado por momentos e depois disse:
- Não tive interferência no roubo da imagem, se bem que saiba quem foi que a retirou do Templo de A-Má. Prefiro não me envolver nessa espécie de negócios porque sou crente e posso ganhar da Terra o que escuso de roubar ao Céu.
- Lastimo que não possamos entender-nos neste negócio e mais lastimo ainda ter de sair desta cidade sem realizar o meu desejo - declarou Lau-Sin.
- Não sei porque! - observou o pirata. - Quem roubou a imagem do Templo de A-Má não o fez por devoção, mas sim por mando de devotos. Quem uma vez foi sacrílego por dinheiro recebido, poderá sê-lo pela segunda vez. Vai à várzea "Man-Fong" e aí procurarás Cheng-Cheong-Van e, ao vê-lo, estarás em presença do homem que desejas encontrar.
- Agradeço a tua indicação e, se algum dia precisares de mim, procura-me. E após uns rápidos cumprimentos de despedida, Lau-Sin e o seu companheiro encontravam-se na rua a caminho do Templo de Tin-Hau.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

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