quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

"Era quase uma ilha..."

Pormenor de um desenho de Carlos Marreiros 
para "O Topos Sagrado" L.S.C.
Mitografia de Macau (Série "A Cidade e o Poeta"), Macau, 1997
publicado na RC- Revista de Cultura, nº 34 (II Série) Janeiro / Março de 1998. 


" (...)
Para o "Porto de Macau na China", há especiais factores que confluem à necessidade  de sagraçõe do lugar, de projectar o céu e a terra, de convocar forças benéficas e repudiar influências nefastas. De fundar  a continuidade na mais remota memória.
Há, em primeiro lugar a consciência do estatuto precário do estabelecimento, que é constante ao longo dos séculos. A terra não é portuguesa. A cartografia refere Macau "nas partes da China". O senhor da terra é o Imperador da China. "Não estamos aqui em nossa terra, conquistada por nós, como são as mais fortalezas da Índia onde somos senhores (...) senão em terra do Rei da China, onde não temos um palmo de chão (...)" (Carta do Leal Senado de 1637). O chão tem de ser garantido pelo pagamento de um foro, sempre sujeito à negociação e à volubilidade do arrendatário."
(...)
"Assiste à origem do topos macaense a regra de que o que sacraliza um lugar é o seu isolamento (de isola, ilha)."Ce qui sacralise avant tout un lieu c'est la fermeture", Gilbert Durand. 
A tentação do isolamento é a tentação da pura razão. Delinear um círculo é concluir o receptáculo próprio à manifestação divina". 
(...)
"Toda a ilha é redonda, e idealmente se presta ao símbolo, à viagem da imagem para o conceito, por oposição contrastante ao elemento caótico que a circunda, da indiferenciação e do que não tem forma, das "águas inferiores" que não foram ainda penetradas do supremo espírito movente. Na ilha se dá a representação ou actualização do arquétipo, e as urbes, como outros microcosmos, são a projecção de geometrias celestes e expandem-se na declinação de círculos infinitos, sempre pressupondo a referência ao centro original."
"Depois de tantas deambulações por sedes efémeras, por certo que a escolha de Macau para o lugar do "assentamento", com expectativas de continuidade, obedeceu a razões de carácter e condições práticas. Oferecer o recorte adequado ao abrigo portuário, o acesso a abastecimentos, e a aguadas - foram com certeza as primeiras vantagens pragmáticas vistas na terra."
"Fisicamente, a geografia não é a de uma ilha, mas de uma península, cujo pequeno istmo lhe dá configuração de minúsculo pseudópode estirado à entrada do Rio das Pérolas."
"Mas figura na cartografia primeva, vulgarmente, como "ilha de Macau" ou "quase-ilha" (presqu'ile) de Macau.  A nosso ver, com clara intenção política de inculcar tranquilidade ao centro político do Império chinês; substante à cedência dos mandarins de Cantão residia o receio de intrusão dos fulangi em terra do continente, pelo que a autorização de fixação num lugar de comércio era dado para as ilhas do estuário. Pesados os factores, a península oferecia mais necessárias condições e era quase uma ilha..."
Excertos de "O Topos Sagrado. Esboço de Mitografia Macaense" de Luís Sá Cunha. RC - Revista de Cultura, nº 34 (II Série), Janeiro / Março, 1998.

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