Henrique de Senna Fernandes. «Uma Pesca ao Largo de Macau». Nam Van.
domingo, 30 de abril de 2006
«O chique era a missa das onze horas»
Henrique de Senna Fernandes. «Uma Pesca ao Largo de Macau». Nam Van.
A Praia Grande
A Praia Grande, que foi a avenida marginal de Macau, desde a Calçada do Bom Jesus até à Estrada de S. Francisco, é, em conjunto com a Avenida da República, património de Macau.
Os sucessivos aterros afastaram-na do mar, e se hoje é marginal deve-se aos dois lagos artificiais que aí foram construídos.Quando, em 1831, Macau foi devastado por um violento tufão, que causou grandes estragos na cidade e na «principal praia chamada - grande - como das partes juntas», propôs, então, o Senado, que na Praia Grande se alargasse «mais o dito caminho para o mar». Em 1857, escrevia o autor do diário de viagem da embarcação americana Sara N. Snow: «o lugar do desembarque é uma praia ou baía e a rua que corre ao longo num oitavo de milha é muito linda, mas sem uma só árvore e o sol do meio dia era calcinante»(1). Não sei quando lhe colocaram as árvores, nem o Padre Teixeira o informa, mas chama a atenção para uma pintura de Chinnery datada de 1830 - «A Praia Grande Vista do Norte» - onde se erguem frondosas árvores por detrás de algumas casas. Árvores que lá existiam em 1869, quando um tufão as arrancou. Nesse mesmo ano, foi construído um aterro que estendeu a Praia Grande até ao Bom-Parto, enquanto a actual Avenida da República, seria construída no início do século XX.
Por volta de 1910, escrevia Álvaro de Melo Machado, então governador de Macau: «Está-se na avenida da praia grande, a curva naturalmente graciosa como poucas, que a bordo se avistou. A rua é larga; de um lado contornada por uma muralha contínua, onde as ondas vêm bater salpicando as árvores desenvolvidas e frondosas que a acompanham, e do outro por uma longa fila de casario onde se destacam a residência do Governador, o edifício das repartições públicas e algumas casas de arquitectura chinesa.(...) A cidade tem aqui um aspecto muito diferente. Acabou a aglomeração de gente e desapareceram as lojas e os toldos sujos; apenas alguns peões passam descuidadamente, um ou outro vendedor circula procurando atrair as atenções dos moradores ocultos e os jerinkshas particulares, puxados a dois culis em trajos coloridos, rodam silenciosamente e ligeiros no leito macio da avenida plana»(2).
Na praia grande situavam-se as mansões mais elegantes - dos condes de Senna Fernandes, de Pais de Assunção, de Floriano Álvares, de Gonzaga de Melo e de muitos outros, incluindo famílias chinesas ricas. Da casa dos condes de Senna Fernandes, à Praia Grande, que possuía uma «varanda invejável, como já as não há em Macau, admirava-se toda a graciosidade da baía, cujo traçado curvilíneo se estendia do Fortim de S. Francisco até aos granitos do Bom Parto», recorda Henrique de Senna Fernandes(3).
Nesta artéria chique situou-se o Hotel Riviera, demolido em 1971. Era um «imponente edifício», nas palavras do Padre Teixeira, do início dos anos 80 do século XIX, então conhecido por Macao Hotel, e dirigido por Pedro Hing Kee. Senna Fernandes refere-se ao hotel como «Hotel Hing Kee», onde «bebericavam os ingleses», e no Tourist Book de Hong Kong, por volta de 1900, o hotel aparece referenciado como «Macao Hing Kee's Hotel». Um outro escritor, Emílio de San Bruno, descrevia-o assim: «Não era um Hotel de luxo, mas havia em todos os seus serviços, o conforto sólido, sadio, disciplinado e limpo do Hotel inglês. E era china o seu proprietário! Mas tão bem educado na profissão hoteleira que a sua casa faria inveja a mais de um hotel de Lisboa, mantido por lusos e galegos»(4).
Depois da morte de Pedro Hing Kee, e com nova gerência do chinês Kuan Ioc Chan, isto por volta do ano de 1923, passou a ser conhecido por New Macao Hotel. Durou poucos anos, encerrando em 1927. Foi o «empreendedor e activo comendador chinês Lou Lim Ioc»(5) que tomou a iniciativa de reabretura do hotel, então com a designação de Hotel Riviera. Lou Lim Ioc faleceria pouco depois, em Junho desse ano, não assistindo à reabertura do hotel, cujas obras de remodelação prosseguiram sob a orientação do seu irmão Loo Huen Chong. Inaugurado a 15 de Janeiro do ano seguinte, contou entre os convidados com a presença do Governador Tamagnini Barbosa e do Bispo de Macau D. José da Costa Nunes.
Quando da sua estadia em Macau, em 1927(6), Jaime do Inso(7) se intala no «renovado Hotel Riviera, cheio de conforto e bem estar», recorda, ao penetrar «no hall luxuoso e moderno do famoso hotel, o seu antecessor, «triste e frígido, de tectos rotos, solitário como um convento desmantelado». Por essa altura já a Avenida da Praia Grande se encontrava pavimentada - obras que decorreram entre 1924 e 1925 -, «desde a Rua do Campo até à Calçada do Tanque dos Mainatos»(8), como também o jardim de S. Francisco, que Senna Fernandes recorda ter sido o Passeio Público, havia já sido mutilado. «A Fortaleza de S. Francisco, de bataria descoberta, onde algumas velhas peças negrejavam, ainda, pelas ameias, tinha já sido inutilizada pelos aterros que lhe subiam pelas muralhas, e até o pitoresco jardim (...) também já tinha sofrido o carmatelo demolidor do progresso e, cortado, mutilado e devassado, perdera aquele ar de recatado retiro provinciano onde se acolhe o bom burguês a escutar as bandas marciais quando tocam nos coretos»(9).
Com os aterros da Praia Grande, na década dos trinta do século passado, perdeu-se, então, parte da encanto da baía e o Hotel Riviera, que até então se situara à beirinha do mar, viu-se bastante recuado deste.
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Notas:
(1) in P. Manuel Teixeira. Toponímia de Macau. Instituto Cultural de Macau. 1997.
(2) Álvaro de Melo Machado foi Governador de Macau de 1910 a 1912; in Coisas de Macau, citado por P. Manuel Teixeira, Toponímia de Macau. Instituto Cultural de Macau. 1997.
(3) Henrique de Senna Fernandes. Nam Van. Instituto Cultural de Macau. 1997
(4) Emílio de San Bruno. O Caso da Rua Volong. Scenas da Vida Colonial. Lisboa. Tipografia do Comercio. 1928, citado por P. M. Teixeira.
(5) P. Manuel Teixeira. ob. citada. Lou Lim Ioc faleceu a 15 de Junho de 1927, antes de as obras de restauro estarem completas.
(6) Existe uma discrepância entre a data mencionada por Jaime do Inso - 1927 - e a inauguração do Hotel Riviera - 15 de Janeiro de 1928, data mencionada pelo Padre M. Teixeira.
(7) Jaime do Inso. Cenas da Vida de Macau. Instituto Cultural de Macau. 2ª edição. 1997. A primeira edição desta obra data de 1941 (Edições Cosmos, Colecção Cadernos Coloniais)
(8) P. M. Teixeira, ob. citada, p. 72-73.
(9) Jaime do Inso, ob. citada, p. 11
sexta-feira, 28 de abril de 2006
A festa do tempo em terras da China
Pregões em chinês: «Compre o ramo da sorte! O ramo da felicidade!»
Tendas de achares; barracas de frituras de peixe e de porco; sementes e frutas cristalizadas em açúcar; bolos de coco, de melaço, de feijão, de batata-doce, de gergelim; crisântemos, dálias, flor de pessegueiro.
(...)
Noite de Ano Novo chinês. Meio oculto no vão da porta, e imperturbável, o herbanário assiste ao espectáculo das ruas: homens e mulheres passando, eufóricos, com o ramo de pessegueiro erguido alto, como meninos pequenos segurando a amarra dos papagaios. Vão ao pagode apresentar oferendas, trocam presentes entre si, compram bolos pesados e enjoativos, comem e bebem, jogam jogos de azar, amam. (...) Rebentam com mais estrondo os panchões. O ar vai ficar completamente limpo à meia-noite, hora marcada para o nascimento do ano, quando o relógio da praça deixar cair solenemente as doze badaladas. Kung Hei Fat Choi - Festas Felizes!».
Maria Ondina Braga. «O Dia do Grande Frio», A China Fica ao Lado.
Macau di Tempo Antigo: a Rua da Praia Grande
«A Rua da Praia Grande era a artéria chique, onde residia a gente mais abastada do tempo. Ao cair da tarde, os dandies percorriam-na, caracolando os seus alazões ou a pé, até ao Passeio Público que era o Jardim de S. Francisco, na época, um jardim fechado e muito frondoso, cumprimentando e derriçando as donzelas que vinham de cadeirinha, acompanhadas dos papás circunspectos ou da inevitável chaperone. Ao lusco-fusco, assistia-se ao acender dos candeeiros de petróleo públicos que o encarregado fazia, subindo por uma escada que arrastava consigo, às costas. Nos dias em que a banda do regimento tocava no coreto de S. Francisco, a música chegava claramente até à varanda, à mistura com os pregões tristes dos vendilhões de canja e sopa de fitas e dos achares chineses.
Nas águas da baía, agitava-se o mundo flutuante dos juncos, das lorchas, das sampanas e dos tancares. Escutava-se a cada passo, o estralejar dos panchões, havia sempre o sonido dos gongos e o carpir duma flauta, o murmúrio dos rezos votivos para qualquer morto, perdido no mar.
Às nove horas da noite, depois do toque das almas e dos clarins de recolher do quartel, a cidade começava a dormir. A Praia Grande esvaziava-se e ficavam só os embalos do mar de encontro às pedras da muralha, o sussurro das árvores de pagode, ao sopro da viração (...)».
Henrique de Senna Fernandes, «Uma Pesca ao Largo de Macau», in Nam Van, 1997
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(1) O «Palácio das Repartições», construído em 1872-74 e demolido em 1946, integrava o conjunto dos edifícios públicos situados na Praia Grande.
quinta-feira, 27 de abril de 2006
Lin Fung Miu,o templo de Lótus
O rabo do dragão
Uma outra lenda sobre a aldeia de Mong Há e os seus supersticiosos habitantes, narrada pelo Padre Teixeira(1) – citando as Curiosidades de Macau Antiga, de Gonzaga Gomes – conta que os aldeões, originários de Fók-kim, assim que se fixaram no povoado, trataram de construir um pequeno santuário, para nele prestarem culto aos seus antepassados. Sendo agricultores, esforçaram-se por lavrar as terras em volta da aldeia; contudo, a terra era ruim e nela apenas cresciam estevas e silvas. Ora, um belo dia – e aqui vem mais um milagre! – viram, no meio dos arbustos, um rabo de dragão e, logo a seguir, ouviram um tremendo rugido, a terra tremeu, ao mesmo tempo que dela saía uma negra coluna de vapor. Apavorados, os supersticiosos aldeões, entraram em pânico, maldizendo os deuses que os castigavam daquela maneira... Mas, refeitos do susto, viram, então, que a terra, no lugar onde aparecera o tal rabo de dragão, era agora negra e húmida, excelente para a agricultura. Fora este milagre, para os bons aldeões, obra do dragão. E por esse motivo passaram a designar a aldeia por Lông-T’in Tch’un, o que, traduzido para a nossa língua lusa, quer dizer «aldeia das várzeas do dragão».
Lin Fung Miu, o templo de Lótus

O templo de Lótus possui vários átrios, sendo o principal dedicado a Tin Hau ou Deusa dos Céus; ainda no pavilhão central, mas num segundo átrio, encontra-se Kum Iam, a Deusa da Misericórdia. Nos átrios laterais existem vários altares dos deuses Kuan Tai, ou da guerra e das riquezas, I Leng, o deus da medicina, Seng Nong, o deus da agricultura, Kum Fa, a deusa das flores e das crianças, e mais outras tantas divindades. A construção do templo está ligada a uma lenda, que remonta ao tempo em que Mong Há era ainda uma pequena povoação de agricultores e de pescadores. Não passava de uma aldeia, na qual existia um tanque onde cresciam flores de lótus, e onde havia um poço, cuja água límpida era reputada pela sua excelente qualidade. Ora, aconteceu que, numa bela manhã, os aldeões foram encontrar o poço totalmente entulhado. Em desespero, julgam ser castigo dos deuses, e por tal razão nem os pescadores se fazem ao mar, pois como haviam sido castigados, nenhum peixe conseguiriam pescar. Sem água potável, também os horticultores ficavam sem possibilidade de regar as suas hortas. Desesperados e em pânico, resolvem ir falar com um homem chamado Tam Van, a quem os deuses haviam concedido poderes sobrenaturais (há, quase sempre, nestas histórias chinesas, alguém com tais poderes). Este homem, Tam Van, dedicava-se ao estudo da filosofia de Lao Tsé e à meditação, aspirando atingir o nirvana. Perante a situação dramática dos aldeões - que, por razões que não são explicadas, não foram capazes de desentulhar o poço -, Tam Van lá se decidiu a ajudá-los; e, por muitos dias, manteve-se recolhido, em profunda meditação. Por fim, numa noite, escura como o breu, são todos acordados por um enorme estrondo. Mais uma vez, os aldeões entraram em pânico - «mais uma desgraça caiu sobres as nossas cabeças», pensaram eles – e, receosos de demónios e monstros que lá fora, na noite escura, andassem a fazer tropelias, não se atreveram a sair das suas casas. Só sairam quando o sol nasceu. E então viram, que do poço desobstruído, a água voltara a ser límpida e cristalina. Correram, então, para dar a boa nova ao filósofo Tam Van, mas apenas encontram uma faixa vermelha do seu vestuário. Tam Van partira para o outro mundo ao realizar o milagre. A pequena aldeia tornou-se próspera e o pequeno santuário que nela existia foi reconstruído para dar lugar ao Templo de Lótus.
Voltando a este curioso templo: dizem que foi mosteiro de bonzos e que era aqui que se instalavam os mandarins chineses quando se deslocavam a Macau. E era aqui, também, que se reuniam com as autoridades portuguesas, tal como aconteceu quando da visita do comissário imperial para a proibição do comércio do ópio.
quarta-feira, 26 de abril de 2006
O templo de Tam Kung, em Coloane
Um deus criança, protector dos pescadores e das gentes ligadas às fainas do mar, Tam Kung destaca-se pelas suas qualidades sobrenaturais, entre elas a de poder controlar o tempo, fazer chover abundantemente ou, ao invés, acalmar as tempestades.
terça-feira, 25 de abril de 2006
No templo de A-Má

Janeiro de 2006: não vinha aqui há vários anos, desde 1999, e o sítio encontra-se bastante mudado. Fizeram-lhe um aterro, colocaram-lhe um lago - o Sai Van - e o templo de A Má, que antigamente tinha o mar aos pés, encontra-se agora bem recuado. O cais ainda lá está, mas com funções apenas decorativas. Recordo o cais, ainda com juncos ali ancorados, os velhos chineses, os marinheiros e os pescadores, por ali sentados, em conversa uns com os outros, ou apenas descansando...
Entrei no templo onde, em vésperas do ano novo, pintavam-lhe as fachadas. Há muito que não entrava num templo, e as imagens mais vivas que guardo de templos orientais são de templos japoneses, onde se evidência uma decoração simples e quase austera e, sobretudo, uma irrepreensível limpeza. Em Macau (e apesar da cidade estar muito mais limpa), o oposto. O chão sujo de papéis queimados, de flores murchas, de cinzas dos incensos queimados, e de uns potes de louça, cheios de água e onde boiam notas falsas, escorre a água, empapando tudo. E vêm-me à memória uma frase de Wenceslau de Moraes, do Dai-Nippon (1), escrita quando das suas primeiras viagens ao Japão, por volta de 1890: «É sair de uma caverna e entrar num jardim». O contraste é, na verdade, surpreendente, e embora não seja hoje, nem o «inferno amarelo» de Loti, nem a imundice referida por Moraes, é evidente que determinados predicados não se mudam facilmente.
Há várias versões da lenda de A-Má. Numa das versões - talvez a mais conhecida - uma jovem, conhecida pelo nome de Lin Ma-Tzu ou, ainda, por Ma-Chou, querendo deixar Fuquiem, esforçou-se por embarcar num dos juncos que estavam prontos para abalar. Em todos os juncos lhe era recusada a passagem, pois a jovem não tinha dinheiro para a pagar. Contudo, houve um velho marinheiro que se condoeu e se ofereceu para a transportar no seu velho junco. Durante a viagem, uma forte tempestade rebenta, ameaçando um naufrágio. De facto, todos os barcos se afundaram, excepto o velho junco, que, quando na eminência de também ele naufragar, a jovem Lin Ma-Tzu tomou conta do leme e o levou até a um porto seguro. Ao desembarcar, a jovem subiu a um rochedo e nunca mais foi vista. Os marinheiros convenceram-se, então, que se tratava da deusa Neang-Má. Agradecidos, mandaram construir o templo em sua honra, «o qual se chamou Mak-Kok-Miu (Templo do Promontório de Má), sendo Má abreviatura de Neang-Má» (3).
Neang Má (ou A-Má), também conhecida por Tin-Hau, a Rainha Celestial, deusa dos pescadores e mareantes, cujas origens remontam à dinastia Song, terá nascido entre os anos de 960 a 1127 da nossa era, na província de Fuquiem. Deificada pouco depois da sua morte, ainda jovem, passou a ser conhecida com Tin Hau, a Rainha Celestial.
Esclarece-nos o P. Manuel Teixeira, que todas as ruas, calçadas e travessas situadas na colina da Barra são designadas, em chinês, «por Ma Kok (Promontório de Má), devido ao pagode chinês, que ali existe, consagrado a Neang-Ma (nome abreviado em Amá e Má). Daqui derivou o nome de Macau (Amá ou Ma = deusa; Kau, Ngau = ancoradoiro, baía), isto é Baía de Amá: Amagau, Amacao, Macao e modernamente Macau. Note-se que ou de A-ma-ou é pronunciado em mandarin Ngau. O nome chinês mais comum é Ou Mun (Porta da Baía)» (4).
(2) João Aguiar. Rio das Pérolas. Macau, Livros Oriente. 2000
(3) e (4) P. Manuel Teixeira. Toponímia de Macau. vol 1. Instituto Cultural de Macau. 1997
Rua da Felicidade

Recordo-me da rua, no início dos anos 80, cheia de restaurantes, com as gaiolas, à porta, com serpentes, pangolins e outros animais. Hoje, o seu comércio limita-se a algumas pastelarias chinesas, uma «loja de canjas doce» (como será esta canja doce?), uns restaurantes e bares, e pouco mais.
Mas, entremos nela, com o Wenceslau de Moraes, no ano de 1890:
«Comprida, soffrivelmente estreita, pouco farta de sol. Um renque de casitas iguais de cada lado, baixas, de pobre apparencia, feitas de tijolo negro. Aqui, ali, algumas lojas chinesas, com especialidades colaos, que são os restaurantes desta gente. Fumegam nas caçarolas manjares desconhecidos, que os cozinheiros, sórdidos e quase nús, vão adubando com temperos. Uns migam verduras, outros depenam aves, outros amassam bolos; e no amplo vestibulo expõem-se, n’uma prodigiosa promiscuidade, patos assados e cosidos, patos seccos, porcos, peixes, legumes, hortaliças, mariscos, rans, por vezes ratos, tresandando tudo a bodum. (...) Mas é a população feminina, bem mais do que os janotas, do que os cegos, do que os vendilhões de flores, que formiga na Rua da Felicidade. (...) Vestem cabaias vistosas, usam braceletes e anneis, manilhas de prata nos tornozelos como as escravas. Umas passeiam dando-se as mãos, rindo e conversando, arrastando ruidosamente as grossas alparcas suspensas dos pés nús. Outras penteiam-se, acarminam as faces, mirando-se em espelhinhos reles. Fumam em cachimbos de estanho. Tomam chá. Jogam, acocoradas, as cartas. Dormem sobre esteiras (...)»(1).
Em 1924, o escritor Vicente Blasco Ibáñez (1867-1928), em Vuelta al Mundo de um novelista, descrevia esta Rua da Felicidade como «semelhante às que existem em todos os portos de mar, mas aqui oferece o interesse de serem unicamente chineses os que a frequentam». E, acrescenta: «Compõe-se de casas estreitas, cujo piso baixo é ocupado inteiramente pela porta. Através da sua abertura vê-se uma espécie de vestíbulo com o renque da escada que conduz às habitações superiores, e alguns assentos chineses, ocupados pelas donas e suas amigas. São mulheres de cabeça volumosa, membros delgados e tronco grosso, um nariz tão achatado que apenas se torna visível quando mostram de perfil o seu largo rosto, amarelo com cera. Estas fêmeas maduras, retiradas das pelejas sexuais, fumam grossos cigarros enquanto conversam lentamente. Outras penteiam-se entre elas à luz de uma lâmpada colocada diante dos seus ídolos predilectos. As pensionistas das ditas casas jogam no meio da rua como um colégio em férias (...)»(2).
Por volta de 1941, é com Jaime do Inso (1880 - 1967), em Cenas da Vida de Macau, que percorremos a rua:
«Rua da Felicidade – que fantasia, que irrisão! Fantasia que chega ao ponto de, quando da inauguração da Rua de Macau, na Exposição do Mundo Português, de 1940, a nossa imprensa ter anunciado, como coisa certa e indubitável, que aquela rua reproduzia um trecho da Rua da Felicidade, com os seus clubes (sic) de fan-tan, prédios de vários andares, pagodes, casas de chá e não sabemos que mais fantasias do bom repórter que, por certo, ficará muito admirado se um dia chegar a saber que naquela rua, de estilo tártaro, não há prédios de mais de um andar, clubes nem fan-tan, pagodes ou casas de chá, e que só há a felicidade da desventura de certas pi-pa-t’chai – chamemos-lhe assim – que, por um eufemismo, muito do gosto dos chinas, deram fama à rua, emprestando-lhe este nome tão querido dos chineses e cujo carácter ideográfico se vê espalhado por toda a parte – Fecilidade!»(3).
A Rua da Felicidade fazia parte do chamado Bazar, a cidade chinesa, com a sua confusão de ruas, vielas, becos e pátios, povoada de gente ruidosa. Um contraste com a cidade portuguesa, a cidade cristã, que ficava pelos bairros do Lilau, de São Lourenço, de Santo Agostinho e Santo António: «na parte alta, era o sossego do burgo português, das rótulas, das igrejas e travessas, do ambiente provinciano, duma grandeza decaída com a perda do antigo comércio e navegação», escreve Jaime do Inso . Em baixo, no Bazar, «o formigar estonteante da vida chinesa, com o colorido inimitável dos seus caracteres ao vento, as suas lojas escancaradas, como montras, com tudo à venda, as cozinhas pelas ruas a abarrotar de arroz, sopa de fitas, peixe, molhos esquisitos para o nosso paladar, carne em bocadinhos, hortaliças, etc., tudo como em picados para bonecos, que se comem levados à boca com dois fai-t'chi - era a música dos cou-laus e o cantar dolente das pi-pa-t'chai»(4).
Ching Ming
O Ching Ming, ou Qingming Festival, ou Qing Ming Jie, realiza-se no 106º dia após o solstício de inverno (a 4 ou 5 de Abril), e é o dia para recordar e honrar os mortos. No tempo em que Wenceslau de Moraes aqui viveu, existia o chamado «terreno neutro», onde «os chinas de Macau e dos lugares vizinhos» enterravam os seus mortos. Não sei onde se localizava esse «terreno neutro», mas ficava para além das Portas do Cerco, assim o confirma Moraes, já que afirma passar «para além dos nossos domínios». Mas deixem-me transcrever um trecho de Wenceslau de Moraes sobre o «Tsing-Ming» (ou Ching Ming): «Em que misteriosos meandros do desconhecido pairam, por toda a eternidade, os espíritos dos chinas que vão morrendo, não sei eu dizê-lo; (...) É certo, porém, segundo me explicaram pessoas entendidas, que em dada época do ano aqueles espíritos vagabundos se reúnem às velhas ossadas, e ali aprazam as famílias para uma extraordinária conferência. É de estilo e de bom exemplo o não fazer esperar muito os mortos; quem pode, a grande maioria do povo, corre no primeiro dia a celebrar a piedosa entrevista; os retardatários irão no segundo ou terceiro, e o morto esperará; mas desgraçado daquele, tão ímpio de entranhas, que atire ao olvido a memoria do velho parente, pois grandes provações o esperam, acarretadas com a maldição do defunto, cujo espírito cansado de esperar abandonará de vez a poeira dos seus ossos.Ora assim fica explicada a festa do tsing-ming. Considerando que o sentimento que os chinas mais veneram, a essência mesma de todas as suas devoções, é o respeito pelos antepassados, não admira o afã com que eles, no dia do tsing-ming, invadem as montanhas, onde dormem o eterno sono os remotos avoengos. (...) Não é uma cena de desolação e de mágoas, como se podia julgar, mas antes uma festa íntima com um conviva a mais, que vem de longe e tem pressa em retirar-se»*.
Nos dias que antecedem o Ching Ming, as lojas de venda de artigos cultuais estão cheias de uma variedade imensa de objectos, todos feitos em papel – carros, roupas e sapatos, relógios, jogos de mah-jong, casas, mobílias, telemóveis, etc. – que serão oferecidos aos mortos. Todos estes objectos – até comida, em papel, como leitões assados e fruta – serão consumidos pelas chamas. O ritual do Ching Ming inclui, ainda, a visita ao cemitério, a limpeza das campas e a oferta de comida e vinho chinês aos defuntos, que é colocada junto às campas.
Na véspera do Ching-Ming ou dos finados fui ao Chok Lam Si, um templo particularmente interessante, pois é utilizado para cerimónias associadas ao culto dos mortos. Tem um jardim interior, com vários canteiros de bambus, vários vasos com plantas e bonsais, gaiolas com tartarugas e um pequeno lago habitado por carpas.
No interior do jardim, num pequeno anexo, todo envidraçado, encontram-se armazenadas algumas reproduções desses objectos em papel – e lá estava uma casa, com mobílias e electrodomésticos e vários automóveis – que, penso, são para venda. Há também um pequeno balcão onde se vendem pivetes, velas, e diversos papéis coloridos – a dourado, sobretudo -, que são queimados em fornos com a forma de pagodes.
segunda-feira, 24 de abril de 2006
Dóci falar di Macau
Tera di fé, qui Dios j’abençoá,
Casa qui têm sosségo, têm pám;
Fogo sandino pa vêm lumiá
Alma fichado n’iscuridám.
Tera di chiste co formosura,
Retrato di Sol na Primavera;
Riva, Ceu azul; basso verdura;
Fora, mar chám; dentro sánto tera.
Sã Macau! Nôsso bérço cristám,
Jardim na pê di Mundo semeado...
Sã Macau, qui têm su coraçám
N’unga dilúvio di amôr banhado.
(...)
Aqui têm pagode antiquado,
Ali, gréza arto co su sino,
Rua co travessa consertado,
Ornado co casa piquinino.
(...)
«Macau, Béleza di Passado» (Dizémbro di 1984)*
O “dóci papiá de Macau” ou “dóci língu di Macau” é, provavelmente, originário de Malaca, do “papia kristang”; leio, num trabalho da Universidade de Hong Kong – «Languages in Contact: Creole morphology» - que, quando da conquista de Malaca pelos holandeses (em 1641) ocorreu a migração de população de Malaca para Macau, essa população – já cruzamento de português com malaio e indiano – terá trazido a sua língua, o papia kristang de Malaca. Mais tarde, no século XVIII, a juntar a esta população, mistura de portugueses, chineses, indianos e malaios, vieram os cristãos do Japão e das Filipinas. Foi nas primeiras décadas do século XX, e com a imposição do português como língua oficial, que a “dóci língu di Macau antigo” começou a perder importância. O macaense José Inocêncio dos Santos Ferreira, Adé, foi o grande divulgador do “macaísta chapado”.
* Macau Di Tempo Antigo (Poesia e Prosa). Edição do Autor. Macau, 1985