Venda de "Soi Sin Fá" em vésperas de novo ano lunar.
Fotografia de José Neves Catela. Museu de Arte de Macau
Percorrendo o Bazar
Fotografia de José Neves Catela. Museu de Arte de Macau
Percorrendo o Bazar
«Já retomaram as ruas, as lojas, as moradias chinesas, o aspecto exótico e pomposo das grandes festas.
Vésperas do novo ano! Pelo Bazar vai a azáfama que antecipa os dias solenes - as floristas não têm mãos a medir: flores de papel, de seda, de penas multicolores, de nácar, de filigrana. Os confeiteiros cristalizam os saborosos frutos orientais, flores, legumes, e até as raízes e sementes de algumas plantas como o gengibre e o lotus.
Nas montras prendem os nossos olhos as ricas sedas de variegadas cores e complicados arabescos. Os caracteres chineses indicam grandes reduções de preços e em volta dos balcões aglomeram-se as chinesinhas, delgadas silhuetas, de cabaias estreitas e cabelos luzidios. As suas mãozitas delicadas, de dedos afusilados, procuram, de entre as mais brilhantes, a seda de cor alegre, a mais vistosa, para os próximos dias de festa.
(...)
Vésperas do Ano Novo! Até as jóias diminuíram de preço. Soou a hora obrigatória de pagar as dívidas e quem tem dinheiro empatado precisa vender, embora com prejuízo.
(...)
Que lindo presente de ano novo! Em que cabelos negros irá poisar aquela flor tão branca? E já que falo das flores feitas de pérolas, porque não vos levar comigo pela rua das flores verdadeiras, criadas por Deus sob este sol de oiro que as coloriu e desabrochou? Peónias e peónias rosadas, lindas e perfeitas, alinham-se sobre prateleiras em anfiteatro, de um lado e outro da rua, e é uma só mancha cor de rosa, uniforme, a destacar-se do verde cinabre dos vasos de porcelana chinesa. Mais adiante, as árvores anãs, de troncos grossos e rugosos, de folha verde e copada que não excedem e por vezes não atingem três palmos de altura.
Com os seus bugalhinhos de oiro a luzir por entre a folhagem, dispostas em vasos, as tangerineiras pequeninas dão, mais além, uma nota de cor. Um pomar em miniatura para regalo dos nossos olhos! As dálias, os crisântemos formam massiços vermelhos, amarelos, brancos, cor de carne pálida! E os troncos dos pecegueiros? Símbolo do amor, quem não quererá levar para casa uma dessas hastes elegantes onde botões e flores mal entreabertas são leves toques de luz rosada? Mas o que por toda a rua se encontra, numa exuberância encantadora, é a flor do novo ano: «Soi Sin Fá». Traduzida à letra, quer dizer: Fresca flor da água, porque é dentro dela que os seus bolbos rebentam e florescem. De folhas verdes, lanceoladas, corola branca e transparente, de aroma perturbante, tem afinidades com os aromáticos junquilhos da nossa terra. Florindo só nesta época, a superstição chinesa consagra-lhe um grande culto.
(...)
Vai caindo a tarde, nas moradias chinesas acendem-se as grandes lanternas de papel envernizado que baloiçam ao vento, ladeando a porta de entrada. As frontarias brancas reflectem as suas sombras oscilantes. Mas só as casas particulares conservam ainda nas suas fachadas as tradicionais lanternas. A este povo, que tem um culto instintivo pela flor e pela luz, a electricidade deslumbrou-o. De dia, o sol penetrante que obriga a caminhar de pálpebras descidas. Luz esplenderosa em demasia, para nós ocidentais, mas para o qual, Deus, na sua infinita perfeição, criou os olhos oblíquos.
Oculto o sol, por detrás das altas montanhas, a noite cai rapidamente. O crepúsculo que atinge nestas paisagens uma suprema beleza, não permite êxtases. É belo, mas é rápido. Para afastar a noite e os seus pavores o céu enche-se de estrelas e o bairro chinês de luz. Milhões de lâmpadas eléctricas, apinhadas, formando arabescos, flores, aves, caracteres, iluminando as montras, as varandas, brilham num esplendor de apoteose teatral.
(...)
Brilham ainda numa intensidade e atracção diabólica as casas de jogo. O «Fan-Tan»! Quem, vivendo na China, desconhece o sortilégio dêsses dois monossilabos? Felicidade de alguns, desgraça de tantos! Jogo de uma morosidade que impacienta o ocidental, é aquele que mais interessa este povo que nunca tem pressa, que se extasia e pára ante uma flor, um pássaro, um brinquedo, quanto mais perante um monte de sapecas doiradas que lhe pode trazer a fortuna!
(...)
Estamos em vésperas de novo ano e pelas ruas do Bazar alinham-se as mesas do «Clu-Clu». A garotada rodei-as extasiada ante as cores garridas e os números tentadores, e os seus olhitos cintilantes contam de relance as pintas negras dos dados de marfim, enlevo de gente modesta que tenta fortuna com simples moedas de cobre.
(...)
Vésperas de novo ano! Nos interiores das casas ricas vão-se adornando as mesas de sacrifício, com flores e frutos, as mobílias com vistosas colgaduras; nas casas pobres lavam-se as paredes negras do fumo dos pivetes.
Que ao menos uma vez por ano a água ali entre na sua missão purificadora!
Observado de relance o aspecto alegre e bizarro do bairro chinês, em véspera de ano novo, subamos ao alto da Penha, com a sua igreja, bem portuguesa, donde a nossa vista alcança até muito longe... para além das montanhas azuladas.
Nas águas cinzentas do rio vão-se alinhando as lorchas de velas enroladas e mastros hirtos.
Vão-se arrimando ao longo da avenida marginal do porto interior, esperando a hora de se engalanarem, e são tantas, tantas, que em vão as contaria. Para cima de oitocentas, dizem-me, mas lá ao longe há mais velas que se aproximam...»
Maria Ana Acciaioli Tamagnini
"Vésperas do Ano Novo Chinês", da poetisa Maria Ana Acciaioli Tamagnini, foi publicado no Boletim Geral das Colónias Nº 53, Novembro de 1929 (disponível no Portal das Memórias de África e do Oriente)
Sem comentários:
Enviar um comentário