quinta-feira, 29 de abril de 2010

Uma História do Tufão de 1874

Num artigo publicado em 1997 na revista Macau*, Ana Maria Amaro transcreve uma história relacionada com o catastrófico tufão de 1874, muito semelhante à popular "história da Tia Chencha", mas com protagonistas diferentes. Pertencente ao espólio da Drª Graciete Batalha, a história é narrada pelo Dr. Augusto Nolasco conforme sua avó, D. Francisca Bontein da Rosa, contava.

"Era um dia sem vento e muito quente e as pessoas passeavam em busca de fresco na Praia Grande, em noite de lua cheia. A lua apresentava um anel que anunciava tufão. Ao recolherem a casa começou a chuva e o vento com toda a força e todos trataram de pôr trancas nas portas e janelas e amarrar as persianas com fio-saco. Nunca tinha havido tão grande tufão. O mar cresceu tanto que uma lorcha da Praia Grande foi parar perto da Sé e muitos tancás do Patane foram levados até às ruas do Bazar.
Caíram telhados e casas e ateou-se um grande incêndio em Santo António.
Um casal idoso (cujo nome minha Avó indicou mas não me lembro), muito rico, pois possuía muitos sacos de prata, sentiu de repente um grande estrondo nas traseiras da casa e viram que o vento tinha levado uma grande árvore de pagode e feito desabar um muro muito alto sobre a casinha da criada, uma escrava timora muito boa que logo morreu. A porta da cozinha tinha sido arrombada pelas pedras do muro e o vento começou a levantar o telhado e a abrir as janelas. Eles só tiveram tempo de pegar em jóias e nalgumas moedas de ouro que levaram numa maleta e saíram. Quando o vento amainava conseguiam caminhar de porta em porta, mas sem saberem para onde. O vento arrastava ramos de árvores que lhes batiam nas pernas e uma telha partiu a cabeça da pobre senhora. Com a ajuda de um português de Portugal chegaram por fim à porta da igreja de Stº António. Nisto parou o vento e então viram que havia um grande incêndio muito perto. Pouco depois ouviram gritar. Ta Kip, Ta Kip! Eram os piratas.
O chefe trazia um bacamorte (assim pronunciava a minha Avó) outros chuços e espadas e ali mesmo arrancaram da mão da velhota a mala com o ouro e as jóias, enquanto feriam o português de Portugal que veio em sua defesa.
O vento voltou a soprar com muita força e os ladrões fugiram, e mais casas começaram a desabar e o incêndio alastrou-se a todo o Bazar.
Eles ali ficaram até passar o tufão, cedo pela manhã, e então cheios de pavor e de fome encaminharam-se para casa. Mas esta já não existia porque tinha ardido também. Tudo tinha ardido incluindo a grossa porta de teca com traves de pau-ferro da casa forte onde estava guardada a prata. Esta tinha sido levada pelos ladrões.
Abraçaram-se então os dois a chorar porque tinham perdido tudo, a escrava, a casa e o dinheiro e jóias. Nisto vieram novamente os ladrões e como nada mais tinham para roubar tiraram ao velhote os seus dentes de ouro. E assim ficaram pobres e foram passar o resto da vida na Santa Casa.
Quando esta história acabava estávamos todos a chorar. Mas, passado dias, pedíamos à Avó para novamente a contar.
É de notar que a escravatura já tinha sido abolida mas a designação "escrava" subsistia como sinónimo de mulher trazida de Timor."


* Ana Maria Amaro. «Uma História do Tufão de 1874». Revista Macau, II Série, nº 58, Fevereiro de 1997.

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