quarta-feira, 21 de julho de 2010

O tufão de 1931

"Estragos do terrível tufão de 1931, na Praia Grande". Fotografia de autor não identificado publicada na RC - Revista de Cultura, nº 18, II Série, Janeiro / Março 1994

"(...)
No meio do optimismo geral que reinava em Macau, nos primeiros meses de 1931, deu-se um estranho acontecimento que muitos interpretaram como sinal de que a prosperidade iria encontrar o seu termo.
Este acontecimento foi o inesperado furacão de 19 de Abril que desabou sobre a cidade e cercanias, precisamente no dia seguinte à inauguração do "Capitol"(1) e quando no "Vitória" se estreava o "Sunny Side Up".
Os tufões são calamidades da natureza a que estamos habituados, mal desponta o Verão. Mas nunca eles surgem inopinadamente. Temos tempo de nos preparar, porque, mesmo sem consultarmos os boletins meteorológicos ou barómetros, a nossa experiência leva-nos a prever a sua aproximação, pelo intenso calor nas vésperas da sua vinda, pela observação do céu e do tempo, pelo aspecto do mar e pela recolha dos juncos ao Porto Interior. Em 1931, se não tínhamos os satélites nem os boletins emitidos de quarto em quarto de hora na rádio e na televisão, sabíamos pelos observatórios de Macau, de Hong Kong e da Ilha das Pratas, todo o movimento dos temporais que entravam no Mar da China.
Também estávamos habituados a ver levantar-se, de repente, um pé-de-vento que agita o mar em ondas alterosas, trazendo grossas rajadas do leste que tornam as viagens entre este Território e Hong Kong e arredores numa provação mais que incomodativa. São os tais "seack-vús" que causam avarias aos juncos e outras embarcações de pesca, mas que raramente resultam em tragédias.
Jamais, porém, houve memória dum furacão que caísse sobre a cidade desprevenida e mar à sua volta, com a fúria destruidora daquele.
Não nos lembramos se o dia nasceu molhado. O que se sabe é que nuvens negras se acumularam na parte da tarde, começando a cair sobre a nossa terra uma chuva torrencial por volta das 19,00 horas. Esta chuva foi engrossando, acompanhada de uma trovoada absolutamente anormal. As faíscas rasgavam o céu e os relâmpagos mostravam o negrume das nuvens e o véu espesso de água que nos fustigava. Para aumentar a desgraça, surgiu o vento com rajadas fortíssimas dum autêntico tufão e a superfície do mar entumesceu em vagas alterosas.
Durante algumas horas, a cidade morreu, num transe aflitivo. Árvores arrancadas, embarcações afundadas com algumas mortes e muitos feridos, a canhoneira "Pátria" e a lancha-canhoneira "Macau" sofreram avarias, algumas casas desabaram e, se a memória e as informações não nos falham, aqui e ali declararam-se incêndios.
Nós fomos apanhados pela tragédia quando nos encontrávamos, com os pais e irmãos, no "Vitória". O filme, esperado com grande expectativa, ficou interrompido logo no início. A trovoada era tão grande que o público encheu-se de pânico, começando a abandonar a sala de espectáculos. Apenas nos lembramos de ver a Janet Gaynor a cantar os primeiros acordes do "Sunny Side Up" e logo abriram-se as luzes. No átrio, apinhado de espectadores aterrorizados, víamos o fluir da torrente que vinha da Rua dos Mercadores para a Avenida Almeida Ribeiro. Não sabemos como o nosso pai conseguiu um táxi - um dos poucos que existiam em Macau e só pertencentes a garagens.
Ficámos molhados que nem pintos, ao entrar para o carro e durante o trajecto para casa. O motorista conduzia muito bem, felizmente, e defrontou a chuva que cegava, e o vento que parecia fazer saltar o automóvel, com calma e segurança. Quando chegámos a casa, estávamos quase em estado de choque, sem exagero.
No dia seguinte, o aspecto das ruas era desolador. Mas o que nos impressionou mais foi o panorama da baía da Praia Grande então ainda intacta, sem aterros que a destruíram para sempre. Havia juncos afundados e, a boiar, porcos e cães muito inchados e repugnantes, sabe-se donde.
A superstição chinesa, que vê nas calamidades súbitas da natureza em fúria o anúncio de graves acontecimentos políticos e económicos, ficou apreensiva e predisse uma mudança no mar de rosas de prosperidade. E não tardaria que factos viessem confirmar as suas apreensões.
(...)"
Henrique de Senna Fernandes. "O Cinema em Macau - II. 1930-31. A Emoção do Sonoro". in RC - Revista de Cultura, nº 18, II Série, Janeiro / Março 1994


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