terça-feira, 15 de maio de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (I)


O Caso do Tesouro do Templo de "Á-Má", novela de Francisco de Carvalho e Rêgo, foi inicialmente publicada na Revista Renascimento com o pseudónimo de Frank Moth. 
Nesta edição (Macau, Imprensa Nacional, 1949), refundida e aumentada, o autor refere que a novela não nasceu de mera fantasia, porque são reais as suas personagens, como real é o simples entrecho que fielmente conservei na intenção única de reviver, tanto quanto possível dentro da verdade, um caso que foi muito falado e que a crueldade do tempo fez esquecer.


Não há antigo residente desta colónia de Macau que não tivesse conhecido o chinês Lau-Hong-Sin, chefe da Polícia de Investigação Criminal, decidido detective a cuja inteligência e astúcia, aliadas a grande amizade a Portugal, muito deveu esta cidade, pela tranquilidade e sossego, que sempre desfrutou.
(...)
Foi numa tarde chuvosa de um quente dia de Verão que o destemido polícia me contou, a traços ligeiros, a façanha que aqui deixo em pequena novela descolorida, sem dúvida, mas plena de verdade (...). 

Francisco de Carvalho e Rêgo (Coimbra, 1898 - Lisboa, 1960), viveu em Macau cerca de 40 anos. Autor de várias obras, entre as quais se destacam o romance policial O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (1949), Da Virtude da Mulher Chinesa (1949), Cartas da China (1949) e Macau (1950), colaborou com Jack Braga e Charles Boxer em várias obras dedicadas a Macau. Com uma actividade cultural diversificada, Francisco de Carvalho e Rêgo, também conhecido por Francisco Penajóia, foi ainda fundador da Rádio local, estando também ligado à criação da Academia de Teatro e Música e da revista Renascimento.


O Caso do Tesouro do Templo de "Á-Má"

I 
No Ano Novo Chinês

Há cerca de quarenta anos, numa noite fria e molhada de Fevereiro, parecia interminável a romaria de fiéis que ao Templo de Á-Má se dirigiam para agradecer os benefícios recebidos durante o ano que findava e pedir felicidade e prosperidade para o ano a chegar.
A população marítima dos Tous, Tèangs e Tancás, ancorados no porto interior, não cessava de dar graças ao Alto, e as oferendas e promessas iam sendo registadas pelos bonzos do Templo, que rejubilavam de tanta fé.
O tesouro do templo estava exposto aos olhos dos fiéis, e tantas eram as oferendas, que algumas tiveram de ser recolhidas no interior, antes mesmo de terminada a cerimónia.
Consistia o tesouro numa imagem em bronze e ouro da Santa Venerada. A túnica, que a envolvia, toda de ouro, era debruada a rubis e esmeraldas, prendendo em laço, junto ao peito, por um fecho que consistia de dois brilhantes, aos quais, os entendidos atribuíam um valor extraordinário.
Não era muito antiga a imagem e nem mesmo os bonzos sabiam dizer quem a oferecera ao Templo.
Dizia a lenda, bem recente, que uns anos antes, por ocasião de uma terrível trovoada, que caíra sobre a cidade, uma faísca atingira o altar e, logo que o fumo desaparecera, a imagem surgira, para espanto e admiração dos velhos bonzos.
No interior do Templo, havia uma velha arca de pau-preto, marchetada de cobre, que fechava com velhos cadeados de segredo, onde a imagem era guardada, findas as cerimónias, arca que estava a cargo do velho bonzo Lau, que por ela daria a vida, se necessário fosse, tão grande era a honra de ter à sua guarda a venerada relíquia.
Já do lado nascente uma ténue claridade anunciava a chegada do dia e não terminava ainda o aparecimento de novos fiéis que, com a maior devoção, vinham orar junto à preciosa imagem.
Assim passou o dia do Ano Novo, com grande azáfama para a Bonzaria, até que o Sol, sempre encoberto, se deixou tapar por densa treva, molhada como a da véspera.
Chegara a noite e os bonzos, fatigados, recolheram o tesouro, que baixou à velha arca, deixando o Altar da esplanada do Templo aberto e abandonado à guarda dos fiéis.
O velho bonzo Lau, ao despedir-se do Superior da Bonzaria, disse-lhe contristado:
- Tenho andado todo o dia de hoje preocupado. Há qualquer coisa que não me deixa respirar bem. Pressinto desgraça e não sei como evitá-la.
- Não vejo razão para tanto - assim lhe disse o Superior - O nosso povo é crente e os castigos do Céu não descem aos que não ofendem a Deus.
- Preferia não dormir e ficar de vigília, toda a noite, ao nosso tesouro, a ter de me arrepender amanhã de qualquer descuido, por não escutar esta voz que me fala cá dentro e que me diz que alguma desgraça vai acontecer.
- Fazei como quiserdes - respondeu-lhe o Superior. - Lembrai-vos, porém, de que sois velho e de que não tendes força para resistir a tanta fadiga.
O gongo soou fora.
Eram três da madrugada.
Lau, o velho bonzo, ficando só nos aposentos, passeou agitado de um para outro lado e, certificando-se de que a arca estava bem fechada, deitou-se sobre ela, utilizando um tosco lenho, que encontrara no chão, para travesseiro.
A fadiga venceu o desejo do bom velho de permanecer acordado e, de mãos cruzadas sobre o peito, adormeceu.
Fora, o Céu abria-se em catarata e a água batia às chapadas na laje polida do átrio do Templo.
Um estralejar de pauchèong ouvia-se de quando em quando e, quando a chuva abrandava, era lúgubre o chiar dos remos das barcaças, que ainda se moviam no rio.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

Sem comentários: