VII
No Templo de "Tin-Hau"
Quando Lau-Sin, no seu disfarce de peregrino, se retirava do Templo, não ficou no espírito do Superior da Bonzaria qualquer dúvida da sinceridade do crente, que tão humildemente lhe pedira para ver, pela derradeira vez, a imagem da sua devoção.
Assim, como a noite se aproximasse, mandou fechar as portas de comunicação da Bonzaria para o Templo, deixando neste apenas o bonzo de serviço. E, enquanto lá fora os morcegos esvoaçavam de encontro ao arvoredo, quebrando o silêncio que pouco a pouco se acentuava, o Superior dizia ao bonzo Chan:
- Vejo com orgulho que continua, e se acentua ainda, a devoção pela Rainha do Céu. Este peregrino, que hoje veio visitar-nos, oferece-nos uma amostra bem clara dos sacrifícios de que é capaz um filho desta nobre província de Fu-Kien, pelo amor aos Deuses da sua devoção.
- Tendes razão - respondeu-lhe o bonzo Chan, seu interlocutor. - Porém, o acto que o devoto desta província praticou, pode muito bem vir a ser praticado também por um devoto da longínqua terra da porta da baía. Não acho esta arca com segurança bastante para guardar tão preciosa relíquia.
- Deixai! - exclamou o Superior. - Eu tenho nos meus aposentos, como sabeis, uma arca-cofre de ferro, cujo segredo do cadeado só de mim é conhecido. Pelo romper da alva, retiraremos dessa arca a preciosa imagem, prestar-lhe-emos o culto necessário e seguidamente será guardada em sítio onde a cobiça do homem não chegue.
- Lembrai-vos, porém, Senhor - exclamou Chan - que há dois valores a considerar na preciosa imagem: Um, o espiritual, e outro, o material, que reside principalmente nos dois brilhantes que servem de fecho à túnica da Santa. Ocorre-me, Senhor - e com isso não vejais o mais pequeno desrespeito - que bom seria desengastar as pedras e guardá-las com segurança numa casa de penhor, substituindo-as por pedras falsas, que dessem a impressão das verdadeiras. E, se mo permitísseis, iria agora mesmo a um ourives conhecido fazer a substituição, antes que amanhã tenhamos de arrepender-nos de qualquer demora.
- Fazei como entenderdes - disse o Superior. - Não acho de facto de desprezar a opinião. A gente de Macau é ousada, e o contacto com os portugueses dá-lhe ânimo incomparável. Bom é de facto que tomemos a precaução que indicais.
Fora, o gongo soava, indicando a hora do recolhimento, e o Templo projectava-se em silhueta plúmbea sobre o céu cinzento-claro, humedecido.
Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949
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