VIII
Durante a noite
Lau-Sin, atravessando cautelosamente as ruas da cidade, regressou aos seus aposentos e, após uns ligeiros preparativos, que denunciavam uma intenção qualquer, apagou a luz e deitou-se.
De fora vinha o som dos mil e um pregões característicos das cidades chinesas, e a lua, rasgando a ténue cortina de humidade, projectava-se em lingueta de luz, pela estreita janela dos aposentos, deixando distinguir os objectos no claro-escuro do ambiente.
O polícia não dormia. Os seus pensamentos iam distantes, da realidade à conjectura, e as horas... passavam rapidamente.
Eram quase três horas da madrugada quando, muito suavemente, foi aberta a porta do quarto e, pé ante pé, alguém caminhou para o leito onde era de supor que Lau-Sin estivesse deitado. Um braço forte levou ao ar um punhal que com violência foi cravado no vulto, que se encontrava na cama.
Num instante, porém, o assassino caía de costas sobre o desconjuntado sobrado e, debaixo da cama, o hábil polícia, como um felino, lançava-se sobre ele, algemando-o depois de ligeiros momentos de luta.
Erguido de repelão, o assaltante foi forçado a sentar-se numa cadeira, que estava junto ao leito, e Lau-Sin, depois de tê-lo esmurrado com os seus punhos hercúleos, apontando-lhe uma pistola ao peito, falou-lhe assim:
- Julgavas que me apanharias desprevenido? Como te enganaste. Agora que estás aqui em meu poder e à mercê da sorte que eu te quiser dar-te, vais dizer-me o que desejavas deste quarto e porque vieste aqui tentar contra a minha vida.
Quis ainda o prisioneiro do hábil polícia resistir e conservar-se em silêncio mas, ante a determinação de Lau-Sin, ainda que hesitando, disse:
- Há anos, em Macau, fui preso devido aos eus esforços. Estive cinco anos preso e... quando me vi em liberdade jurei que poria termo à tua vida, quando tivesse oportunidade para tal.
Lau-Sin, rapidamente, atalhou:
- Foste tu, então, quem me seguiu na tarde de ontem por volta das 3 horas, na "Tai-Ma-Lou"?
- Enganas-te - respondeu o interrogado - Eu segui-te logo após a tua chegada. Perdi-te de vista por entre a multidão... e só depois consegui averiguar que estavas aqui hospedado. Quis certificar-me se eras tu o homem que eu procurava; fiz uma rusga aos teus aposentos e, se bem que nada tivesse encontrado, que me desse a perceber que eras tu quem aqui se encontrava, certo que a minha memória não me atraiçoava, vim agora cá para te matar. Foste previdente, e mais do que eu esperava e, assim, só resta que me entregues à polícia local para que eu tenha o fim que têm os homens da minha qualidade.
Lau-Sin, num relance, mediu a situação e viu o partido que poderia tirar desse homem pela gratidão e, agarrando-o pelos ombros, disse-lhe cara a cara:
- Se eu te deixasse ir livre e não te entregasse à Polícia serias capaz de ficar ao meu serviço durante a minha estadia nesta cidade?
Dominado pela força hercúlea do polícia e pela sinceridade da sua pergunta, o homem respondeu:
- Ficarei ao teu serviço e espero que cumpras a tua promessa.
Lau-Sin, abrandando a sua expressão severa, disse então:
- Vou deixar-te em liberdade; mas se tentares fugir ou voltar a vingar-te de mim, matar-te-ei pelas minha próprias mãos.
- Eu nunca falto à minha palavra - disse o homem receoso de que o polícia se arrependesse da promessa feita.
- Pois bem! - disse Lau-Sin, tirando-lhe as algemas. - Amanhã, às 10 horas da noite, estarás no mesmo fumatório de ópio onde hoje estiveste. Lá nos encontraremos e receberás as minhas ordens.
O homem, vendo-se solto,não se retirou sem que dissesse admirado:
- Mas como sabes tu que eu hoje estive no fumatório de ópio?
Lau-Sin, dando-se ares de mistério, exclamou:
- Eu sei tudo quanto queira saber. - Vai! E amanhã te espero no local indicado.
Mal o homem se retirou, o astuto polícia, falando consigo próprio, disse:
- "Não me enganei na minha primeira conjectura. O homem, que me seguiu na "Tai-Ma-Lou", não era este e, portanto, há quem saiba na Bonzaria do Templo de "Tin-Hau" que estou nesta cidade. Preciso dobrar de cuidados".
Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949
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